Vinte.
Na net ninguém
desconfia que eu sou um cão
Na segunda-feira, por volta das dez horas, comecei
a tratar de assuntos
inadiáveis. Já tinha passado a fase crítica. Ia ser uma bela semana. O primeiro assunto tinha a ver com os meus oitenta quilos - em quinze minutos
preparei e tomei o pequeno almoço;
o segundo também - encomendei provisões
para mais duas semanas
e, desta vez, deixei-me levar pela gula: ostras, profiteroles, lagosta - que eu preparava segundo uma receita de Fritz e Nero Wolf - Don Perignon,
Madeira e outros quantos pecados
do paraíso pantagruélico. Ia ser uma bela semana.
Por volta das onze horas marquei
o número da editora. Atendeu-me uma voz débil que
eu não conhecia. De rapariga. Ela também não conhecia a minha voz e atrapalhei-me ao explicar quem estava deste lado da linha. Não estava à espera daquilo. Normalmente era reconhecido e rapidamente passado ao sr. director que não tinha linha directa e insistia nas propriedades cancerígenas do telemóvel. Senti-me
quase um estranho e não havia
maneira de fazer
entender à pobre
da rapariga que o sr. director tinha sempre toda a disponibilidade do mundo para mim, que eu fazia parte
do Conselho Editorial e que o nome que aparecia todos os meses a assinar a terceira
página da revista era o meu - a fotografia também era a minha, mas era uma vaidade
do sr. director. Ela não parecia
entender este palavreado e acabei por pedir simplesmente para me ligar com a sra. D., a nossa inestimável relações públicas.
Passada a chamada,
antes ainda de me ligar ao sr. director, fiquei a saber que
alguém tinha ligado para a editora para falar comigo.
A senhora D. acabou por lhe dar um
dos números de minha
casa, pelo que me pediu desculpa. De facto, não era
comum nem eu achava aconselhável. “A pobre senhora começou para aqui a chorar,
Andrés, eu não sabia o que havia de fazer. Pareceu-me sincera. E depois, assegurou-me que te conhecia muito bem, bem até demais,
disse ela, não sei o que quis dizer, desculpa mencioná-lo Andrés,
mas achei que era importante dizer-to, e que tinha o teu telefone
mais não sei o quê, que o tinha perdido.
E disse-me tudo isto a soluçar, compreendes? Eu também fiquei aflita e acabei por lhe dar o número.”;
“Não interessa. Não se preocupe. Até para a semana.
Um beijinho.”
Cinco minutos depois já tinha explicado ao pai da Patty, diminutivo de não sei o
quê, que não estava muito bem e que muito provavelmente não poderia sair de casa toda
a semana. “Mas já foi ao médico sr. doutor?”, “Não se preocupe
sr. director.”;
sosseguei-o e despedimo-nos educadamente, como convém. Oitenta quilos
a peso de ouro sempre ditavam a sua lei. Quando eu pudesse, voltava ao trabalho. “Beijinhos à Patty.”; “Falou de si no outro dia.”; “Eu telefono-lhe depois.”
Enquanto tratava destes assuntos
vi ao longe algumas nuvens que se estendiam
em slow motion por cima do parque e
que pouco depois me escureceram a face contra o vidro da janela da varanda. “Não se preocupe,
sr. director.” Não há-de ser nada.
“Beijinhos à Patty.”, não imagina onde, sr. director. Levantei-me e aproximei-me do vidro
duplo onde semanas
atrás eu fumara
o último Lucky
Strike da noite e alguns
dias depois contemplava apavorado
a imagem que via à minha frente,
decalcada contra os contornos escuros
da minha cidade.
Desde então Eu nunca deixara
de ser “Eu”, sei-o agora. Mas não me era a mim. Era apenas eu a lutar por mim, evitando o confronto físico e o julgamento dos olhos da rua.
Porque esta ia ser uma grande
semana andei toda a manhã
electrizado, num estado quase neurótico que me obrigava a sentar-me e a levantar-me de forma impulsiva. Eu dispunha da minha vida como queria, apesar de tudo. A liberdade que o meu estatuto me proporcionava era para mim uma coisa formidável. Inexplicável, mas formidável. A estima profissional que o sr. director tinha por mim não conhecia limites e
eu apenas me preocupava em esticá-los até ao infinito. Apesar de tudo a vida era uma festa. The party will go on. Esta era a vantagem de eu me achar uma merda e sofrer
de depressão contínua. Esta semana ia telefonar aos meus pais e dizer-lhes “Está tudo bem.”. Para dizer a verdade,
eu só desejava ser feliz como se não pudesse
ser outra coisa. Alguém já o disse e era como se o sussurrasse agora ao meu ouvido.
Fiz mais café. Era a única coisa que me acalmava nos grandes momentos.
Café seguido de um Lucky Strike. Toasted. Liguei
o Pentium e fui ter com os meus amigos. O Eric e a Kate (afinal sempre pertencia
ao género feminino)
estavam a discutir porque
ele tinha começado
a andar com uma miúda que era aluna dele na Universidade. Parece que eles tinham tido qualquer
coisa durante o tempo em que eu não apareci.
A discussão arrastou-se ao resto do grupo e como eu não me queria meter naquilo fiquei calado e não disse nada. Sentei-me na chaise-longue enquanto
assistia ao arrufo. Foi então que, inesperadamente, o Songo-Han me perguntou, “Gustav - era o meu nome de guerra -, o que achas disto? :)”. Eu ainda não tinha entrado.
Como ele sabia que eu estava ali era algo que
escapava às leis que vêm regendo o nosso
mundo. Ele não era como os outros.
Acabava sempre por me surpreender, o que criava entre ele e eu uma relação
especial. Respondi, “No idea ;)”; “E o teu problema. Estás melhor?”. O espírito
dele pressentia-me. Aquelas
coisas que eu vi sobre
os orientais e sobre os discípulos de Shaolin quando aos seis anos fui pela primeira vez
ao cinema com dois vizinhos
mais velhos devia ser verdade.
“Yap, falamos depois”.
Para dizer a verdade, era impossível ouvirmo-nos a todos, tal o nível que atingia o calor
da discussão sobre
o arrufo de Kate com Eric. Foi então que o meu telefone sem fios
tocou. Tinha-me esquecido de o desligar
depois da chamada
para a editora. Era F., a amiga de cuja casa eu saíra com as calças na mão havia um mês.
Vinte e um.
F.
Pois é, meus caríssimos senhores. Há muito tempo
que eu não pedia a vossa atenção. Mas não adormeçam, é ainda para vós que conto estas últimas semanas
da minha vida. F. estava bastante transtornada, quase histérica. Tive de gritar-lhe
para que se acalmasse mas, dado o seu estado, não tive coragem
para lhe dizer o quão
desagradável achava aquela
gracinha de arrancar
o meu telefone à senhora
D.; sempre achei que o que tinha para tratar com as minhas namoradas
devia ser feito frente a
frente, de pé, deitado, enfim, fisicamente e nunca por telefone. Mas desta vez F.
tinha bons motivos para ter feito
uso de todos os expedientes para desencantar o meu
número. “Ele morreu, Andrés, morreu.”
Morreu? Quem? “O Samuel morreu...
morreu hoje.” Não fazia a menor ideia sobre quem estava a falar. “Quem?”, “O Sam, o meu
marido.”, e deixou sair um gemido, arrepiando o meu silêncio
por largos momentos.
Recomeçou então a chorar, suspirando descompassadamente. Nunca
soube o que dizer nestas situações, especialmente quando o morto também não me dizia nada a mim. O que era o caso. Nem sequer sofria com isto que acontecia com F., ou
melhor, com Samuel. O que poderia
eu dizer?, digam-me.
O que deveria eu dizer? Porque há coisas que se devem dizer nestas alturas.
O quê? Nada. Fiquei quieto no
meu silêncio a ouvir F. e entre o choro e os vazios pensei na minha falta de emoção
em certas situações que me deviam merecer mais consideração. Já o disse e volto a
dizê-lo, eu não podia deixar
que este final
de século me arrefecesse a alma como parecia ser o grande objectivo colectivo.
Vá, acalma-te. Conta-me o que aconteceu. Pouco depois, conseguiu
falar.
- Ele tinha-se
cortado numa das mãos há dois meses, na serração. - O marido dela
era madeireiro. - E a mão infectou,
e ele nunca ligava a estas coisas - calou-se e recomeçou a soluçar.
- Então,
querida, estou a ouvir-te.
- Não me chames querida! - gritou-me.
- O meu marido morreu. Não me chames
querida - e continuou a soluçar.
Tapei o bocal com a mão. - Merda! - e pedi-lhe desculpa.
- Ai, Andrés. O que vai ser de mim.
- Não há-de ser nada.
- Eu avisei-o - entretanto, começou a chegar qualquer coisa ao meu fax e o ecrã do
PC piscou um par de vezes; pedi-lhe
um segundo para tratar disso
e, pouco depois, ela continuou. - Era um casmurro.
- Mas diz-me, como é que uma ferida na mão pode...
- Não era uma ferida - interrompeu ela. - Era um corte.
- Okay, desculpa. Como é que um corte...
- perguntava eu outra vez, mas ela começou
a falar sozinha, a murmurar
coisas que eu não percebia,
até que, mais nitidamente para os meus ouvidos,
se lamentou por o marido ter continuado naquele emprego, que ela achava perigoso
e que era mal pago, depois repetia que ele nunca lhe dava ouvidos e isto e aquilo. Depois,
de um momento para o outro,
calou-se, aclarou a voz e começou a
explicar-me serena e pausadamente
que a infecção alastrou pelo corpo e o marido,
Sam, ficou com os músculos
rígidos chegando ao hospital com grandes dificuldades respiratórias. Morreu poucas horas depois de coisa incerta. Aguardava o relatório da autópsia. Acabei por lhe prometer
que passava lá em casa, talvez na semana seguinte. Ela sentia-se
muito só e triste e precisava de um ombro amigo. É claro
que quando fosse,
se fosse, não levaria apenas
o ombro mas todos os meus
oitenta quilos. É que, apesar de tudo, apesar das lágrimas,
apesar de ser uma boa rapariga,
ela não era uma boa mulher, quer
dizer, não o foi antes e eu acreditava que ela continuava a ser a mesma F. que eu visitava de vez em quando à sexta-feira.
Vinte e dois.
Pol...
Faltam três dias para tudo acabar. Estou sentado no chão encostado ao sofá de pele negra,
tenho um e-mail
de Pol nas mão e tento ordenar as
ideias. Havia uma lógica
simples em tudo o que acontecera e eu tentava limpar os espinhos à rosa que o destino
me enviara. O aquilo que me afectara,
segundo Pol, autoridade científica, era idêntico às descrições de sintomas
dermatológicos de antigos guarda-florestais provocados por uma seiva que se encontrava em determinadas espécies
de plantas; eu acabava de receber um telefonema de F. e o marido dela, o mesmo que me acertara no olho, acabava de morrer com um corte na mão que resultou
“em coisa incerta”. A mão que me
acertou no olho era, muito provavelmente, a mão onde começara
a coisa incerta. Pois bem, mais incerto do que eu não devia existir ao cimo da Terra. Pol falava
ainda de cortisona e de me ter batido
à porta havia uns dias. Não perdi mais tempo com ilustrações psico-esotéricas.
Liguei o número do consultório, falei com ele, pedi-lhe
cortisona e não lhe respondi
a nenhuma pergunta. Disse-lhe
que com sorte ainda jantávamos nessa semana. A cortisona
chegou-me três quartos
de hora depois num ritual que se tornava cansativo
e quase impraticável à luz do dia. Injecções e comprimidos. Comecei
a tomá-la de imediato.
O maior problema,
então, foi o da escolha. Injecções ou
comprimidos. Depo-Medrol ou Medrol.
Eu apostava tudo no segundo, mas a literatura
inclusa empurrava-me para o primeiro. É óbvio, até para leigos como eu, que uma injecção
é mais rápida, mais eficaz, mais tudo. Mas também era mais do que óbvio para
mim que não gosto de objectos de metal introduzidos no meu corpo, ainda que por breves segundos - o que nem era obrigatoriamente certo no caso da cortisona, no folheto que vinha com as ampolas
só faltava dizerem “Injecção a ministrar a dois milímetros
por hora, não se brinca com os corticosteróides”. Havia ali mais literatura impressa do que na maior parte dos
contos de Borges. Aquilo devia dar que pensar ao comum dos mortais mas não assustava o ex libris das coisas incertas.
Desembrulhei todos os instrumentos de tortura e enchi a seringa. Depois, retirei a agulha, fui sentar-me
no sofá, segurei
um espelho entre os joelhos,
arreganhei os dentes e espetei-a no meio da testa. Quer dizer, tentei.
Tentei, mas tudo o que consegui
foi dobrá-la como se fosse uma palhinha de plástico. Entrou
uns dois centímetros, dobrou e quase partiu. Rangi os dentes e soltei um gemido;
uma reacção
psicológica já que, apesar
de não gostar de intrusões metálicas no meu organismo, foi com alívio que verifiquei que a agulha não me provocou
qualquer tipo de sensibilidade. Para dizer melhor
isto que estou a dizer, posso garantir-vos que não senti absolutamente
nada.
Como não conseguia
arrancar a agulha retorcida com as mãos, fui à cozinha, procurei numa gaveta ao pé do forno, tirei um alicate,
voltei a segurar o espelho entre os
joelhos e, com uma calma de morte, puxei o corno em miniatura que arrastou consigo
um líquido denso de cor amarela-esverdeada.
Por esta altura já nada me surpreendia. Mas isso, os senhores já o sabem. À segunda,
agi com a convicção de quem sabe o que está a fazer. Foi assim,
o ritual que repetiria
nos dias seguintes
depois do pequeno-almoço e lanche: retirei
o ar como se vê fazerem nos filmes, com uma pequena
ejaculação aquosa que eu esperava não fosse estéril;
como não sentia
qualquer dor apliquei a agulha já com a seringa; peguei-lhe
pela base entre o polegar
e o indicador, onde esta se une com a seringa,
segurando a seringa
entre os outros
dedos e a palma da mão e fiz pressão, devagar, até a agulha
começar a desaparecer
no meio das lentes. Dado que a minha qualificação biogenética continuava a dar-me como um animal semi-emocional não consegui evitar um pequeno gemido.
Os primeiros milímetros acabariam sempre por ser os mais duros porque
era à
superfície que a pele estava mais calejada. Depois de a agulha ter desaparecido
totalmente pressionei o êmbolo devagar
e quando este chegou ao fim puxei a agulha
para fora. No mesmo ritmo cauteloso.
Abençoada cortisona. Lamento muito por todos os sofredores das mais diversas
maleitas que tenham morrido
antes de 1968. Logo no dia seguinte
o meu corpo acordou regenerado. Nem sinal dos quatro volumes
de Luckies consumidos pelo trabalho das últimas semanas. Senti um bem-estar quase pecaminoso. Sangrei um pouco do nariz e vi o meu corpo a inchar por fora e a portar-se como cortiça
por dentro mas o que era isso comparado
com a ausência de matéria? Admira-me não ter saído
em suspensão pela janela.
Como já era noite, comi qualquer coisa,
engoli duas ostras com sumo de limão
e fui- me deitar. Isto estava a acabar-se. Para já, acabava-se a segunda-feira.
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