Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2020

A PRISÃO

A PRISÃO O granizo pintou de branco a paisagem. Não durou mais de meia hora, mas a intensidade da saraivada foi tal, que o gelo se acumulou sobre o tereno molhado. O verde resplandecente foi substituído pelo branco baço. Estávamos em Fevereiro, por isso o sol, rapidamente, colocou a cabeça de fora. Era como uma jovem loira, afastando os cortinados para espreitar a rua. Brilhou intensamente. O branco ofuscou. Policarpo arrastou o corpo e veio sentar-se no pequeno jardim. O sol aquecia-lhe os membros entorpecidos pelo frio, que a idade aconchegava em vez de repelir. O andarilho ajudou-o a dar dez trôpegas passadas, até chegar ao seu poiso. Sentou-se. O chapéu de palha protegia-lhe a cabeça e ensombrava o rosto e o corpo rejuvenescia, aquecido pelo sol. Os filhos partiram para longe, espalhados pelo país e pelo estrangeiro, com exceção do mais novo com quem vivia. Ligavam quase todos os dias e vinham quando podiam, mas não era como se vivessem ali ao lado, como nos tempos de anti

A JORNALISTA | PARTE V | CAPÍTULO 8

A JORNALISTA | PARTE V | CAPÍTULO 8  – O Divórcio Maria Eduarda levantou-se mal o marido saiu. Ele ia apanhar o avião das seis e quarenta da manhã e ela iria apanhar o comboio do divórcio. Tinha três dias para reunir o máximo de documentação que pudesse, quer sobre as aventuras do marido quer sobre os seus negócios. A verdade é que já tinha imensa informação sobre o assunto, mas existiam alguns dossiers que precisava de completar. Falou com os seus contactos entre os quais se encontrava um dos sócios da LTCBK e colocou o processo em marcha. A reunião com o advogado foi longa mas muito produtiva. A prova documental que ela possuía era avassaladora: incluía fotografias, vídeos e documentos diversos. «A senhora tem consciência que para se divorciar não necessita de apresentar a grande maioria destes documentos.» «Sim.» «O meu conselho é que procure um advogado de criminal para a aconselhar.» «Penso que é importante ter na sua posse uma cópia destes documentos todos, pois

ONDE PARA O CARNAVAL

ONDE PARA O CARNAVAL A notícia tinha caído como uma bomba e tinha-se espalhado como um rastilho: o carnaval tinha desaparecido. Primeiro apareceram os rumores sobre os desfiles de carnaval. Por qualquer razão, que ninguém parecia conhecer, não haveria desfile no Rio, nem em Salvador, nem em Olinda, nem... Aprofundado o assunto, identificou-se a dimensão da desgraça: não haveria carnaval! Porquê? Interrogavam-se as pessoas. Ninguém parecia ter resposta para a pergunta. O carnaval não tinha apenas desaparecido das ruas, o próprio calendário tinha apagado o seu registo.   A própria história tinha esquecido as Bacanais , as Saturnais , as Dionisíacas ou os Rituais da Fertilidade . Nada, do carnaval nem vestígios! Os primeiros arautos anunciaram que a Igreja tinha vencido. «Finalmente acabaram com o carnaval!» Ouviu-se em clamor. Rapidamente apareceram outros culpados, que desapareceram com a mesma rapidez.   O desconhecimento gerava ansiedade e esta gerou algo muito pior. Uma se

A JORNALISTA | PARTE V | CAPÍTULO 7

A JORNALISTA | PARTE V | CAPÍTULO 7  – A Revelação Maria Eduarda ficou em estado de choque. O aniversário do irmão tinha sido pretexto para juntar toda a família, com a exceção dela que, por estar em Portugal, não comparecera. O assalto correu mal e a família foi chacinada.   Os vizinhos foram o seu suporte e confirmaram a vaga de assaltos. A grande diferença é que este tinha sido o único que terminou de forma tão definitiva. A campainha da porta tocou.   «Boa tarde D. Maria Eduarda.» Aquele rosto não lhe era estranho mas ela não conseguiu, de imediato, associar-lhe um nome. «Boa tarde. Em que posso ajudá-lo?» «Eu sou o inspetor Marcus. Estou a investigar o assassinato da sua família.» «Marcus Vinicius?» Disse ela, recordando-se do jovem com quem brincava em criança. Ele sorriu e assentiu com a cabeça. Maria Eduarda franqueou-lhe a porta e os vizinhos aproveitaram para se despedir. Por alguns minutos eles recordaram a infância. Houve uma época em que ele pensou que

LEALDADE

LEALDADE A rua estava quase deserta. O choque paralisou-o. Poisou a mochila para poder fechar a parka, o que o fez sentir mais aconchegado. Estava um frio danado! O ar gelado entrava por todos os lados e aguilhoava-lhe o corpo. Sentia-se desconfortável, demasiado desconfortável. Apressou o passo para tentar aquecer. Não resultou. O frio acometia-lhe o corpo, mas o que lhe gelava a alma era a recordação da conversa que acabara de ter. A vida parecia-lhe mais vazia do que nunca. Questionava-se sobre o sentido de tudo o que tinha feito. Como podiam eles brincar com a sua vida? O pensamento voou para o passado. Um passado recente e penoso. Os últimos seis meses tinham sido duros. O processo negocial tinha exigido muito dele e da equipa, mas tinham concluído o negócio com sucesso. No clímax da transação tinha sido obrigado a tomar uma decisão. Os compradores queriam que ele ficasse à frente do negócio, mas o vendedor não o libertou. Invocou a sua lealdade, receoso das consequências p

A NOTÍCIA

A NOTÍCIA Tinha que atender aquele telefonema. «Era muito importante!» Dissera a secretária. O suficiente para interromper a reunião. Não conseguia respirar! A lividez de morte no rosto. A dor que o tolhia. Sentou-se. O desgosto era tão profundo que nem uma lágrima conseguiu verter. Doía-lhe a alma. Sentiu-se claustrofóbico. Com gestos desesperados abriu a portada que dava acesso ao varandim. Com um olhar vítreo fixou a cidade. Nunca tinha percebido que os edifícios eram tão grandes e tão feios. Tudo era feio. Os edifícios, enormes, agigantavam-se sobre ele como se o quisessem esmagar. Ele era apenas um ponto minúsculo. Sentiu-se insignificante. Debruçou-se sobre o varandim, sorvendo uma golfada de ar. A mão amiga sobre o ombro, precavendo o pior. Não. Não ia saltar. Virou-se. Quis agradecer, mas a emoção finalmente tomou conta dele. Chorou. Chorou durante muito tempo, ignorando tudo à sua volta. Estava exausto. Veio o remorso: deveria ter ficado no hospital com ela, embora iss

A JORNALISTA | PARTE V | CAPÍTULO 6

A JORNALISTA | PARTE V | CAPÍTULO 6  – O luto Perestrelo tinha acabado de jantar e sentou-se para ler um pouco. O pensamento voou para Anabela. Teve de fazer algum esforço para não lhe ligar. Tinha que a esquecer. Concentrou-se no livro. O toque do telefone interrompeu-lhe a leitura. «Será a Anabela?» Pensou. O coração bateu acelerado enquanto se dobrava para pegar no aparelho que estava em cima da mesa do centro, ao lado de uma pilha de revistas. Era a Mónica Fonseca. «Já tenho o acordo preparado para ser assinado. Tentei ligar à Anabela, mas o telefone está desligado. Podemos combinar a assinatura para amanhã às doze horas?» «Apenas posso falar por mim, por isso terá de contactar a Anabela amanhã de manhã. A hora parece-me bem, mas só irei se a Anabela concordar em ir também.» «De acordo.» Respondeu Mónica, desligando em seguida. Perestrelo fechou o livro e foi deitar-se. Acordou às seis e meia da manhã com um pesadelo. Tinha brigado com a Anabela e o desfecho tinha

O PAQUETE PRÍNCIPE PERFEITO

O PAQUETE PRÍNCIPE PERFEITO Vila Marim ia ficando para trás e à medida que isso acontecia sentia a pressão no peito aumentar. Era uma espécie de angústia que lhe estrangulava a garganta e lhe dificultava a respiração. Pensou na mulher de quem tanto gostava, mas isso apenas piorou as coisas. Fixou o olhar no exterior buscando auxílio na paisagem. À ponte dos patos, uma ponte romana, seguiu-se à ponte do Cabril, um pequeno rio afluente do Corgo. Na reta de Parada de Cunhos, olhou para a direita e conseguiu ver, ao longe, a casa. Uma lágrima inundou-lhe os olhos e encostou a testa à janela da carrinha para esconder o momento em que esta se lançou se lançou, numa correria desenfreada, rosto abaixo. Não tardou nada e começaram a ser sacudidos pelas curvas do Marão.  Pararam no Porto e em Coimbra e ao fim do dia entraram em Lisboa. A cidade parecia ter vida própria. A quantidade de luzes que existia era surpreendente e as ruas estavam cheias de pessoas apressadas. Era como se toda a

A RAIA

A RAIA O padrinho tinha mandado palavra: precisava de ter dois dedos de conversa. Gostava muito do padrinho e estava com ele muitas vezes, embora isso acontecesse com menos frequência, desde que este ficara entravado. Abraçaram-se com amizade. O padrinho era um proprietário agrícola, descendente de um morgado. Era uma pessoa nobre e justa, que não negava a merecida ajuda a quem dela precisasse. Isso já lhe tinha causado alguns problemas, no passado, dos quais um advogado famoso, da capital, o tinha livrado. Era um homem respeitado por todos e venerado por muitos. Sorvidos os primeiros goles de néctar dionisíaco, surgiu o pedido. «Preciso que me faças um favor. Trata-se do filho de uma pessoa a quem devo muito.» A sentença estava dada. A resposta não podia deixar de ser positiva. Faustino poisou o copo devagar e fitou o padrinho. Pelo ar dele não devia ser coisa boa. O filho do amigo andava fugido à PIDE-DGS e chegaria, mais ou menos, dentro de uma semana a Figueira de Caste