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A mostrar mensagens de 2018

O PAI NATAL BATEU À PORTA

O PAI NATAL BATEU À PORTA Carlos, aos oito anos de idade, estava convencido que conhecia as dificuldades da vida. Fazia dois anos que o pai tinha desaparecido. Apaixonou-se por uma angolana, depois de estar a trabalhar no país durante um ano e deixou de ter qualquer contacto com a família. Aquele ato impensado do pai pareceu-lhe injustificado e muito cruel. Ele era o seu ídolo e a mãe não se cansava de elogiar o sacrifício que ele fazia ao ir trabalhar para África. Mãe e filho sentiram-se traídos. Apesar disso, ela nunca disse abertamente mal do marido. «Talvez um dia ele nos explique as suas razões.» Dizia a mãe O carinho, o amor e o constante apoio da mãe acabaram por ajudar Carlos a ultrapassar a situação. No entanto, nada conseguia compensar a falta do amor do pai e o impacto da falta do dinheiro que a sua ausência provocou. Ele tinha um irmão e uma irmã e a mãe tinha de sustentar a família sozinha. Embora não lhe faltasse, nem teto nem comida, felizmente a casa estava

A SALA DE EMBARQUE

A SALA DE EMBARQUE A viagem tinha surgido de forma inesperada. A delegação de Camberra necessitava de um membro com a sua especialização e só existiam cinco em todo o mundo, estando todos os outros ocupados. «Tens que ir três meses para a Austrália.» Tinha dito o chefe sem rodeios. Provavelmente não existia uma boa altura para este tipo de deslocação quando se está casado, sobretudo durante os primeiros anos. No entanto, esta era, sem margem para dúvidas, a pior altura. Bruno ficou a olhar para o chefe sem dizer nada. Ele também sabia as dificuldades porque o seu casamento estava a passar. O facto de ter um filho com um ano de idade e de ir a casa apenas para dormir, quando ia, estava a por em causa a sua relação. A mulher já lhe tinha dado um ultimato. «Ou abrandas o ritmo e te dedicas um pouco à família ou não precisas de voltar para casa, nunca mais!» Aquela ausência significava uma promoção que traria consigo não só uma melhoria substancial em termos financeiros, mas ta

PROMESSAS DE FIM DE ANO

PROMESSAS DE FIM DE ANO A história repete-se de forma inexorável! Aproxima-se um novo ano e somos invadidos por um fôlego renovado. Uma vontade rejuvenescida de mudar algumas das coisas da nossa vida. Promessas de mudança que fervorosamente fazemos e que, de forma ingénua mas genuína, nos propomos colocar em prática. Queremos deixar de fumar. Queremos fazer dieta. Queremos ter mais regras. Queremos quebrar as regras. Queremos deixar de beber café. Queremos levantar-nos mais cedo. Queremos estudar mais e ter melhores notas. Queremos ser melhores profissionais. Fazemos promessas relacionadas com uma grande variedade de coisas, com objectivos diversos e pelas razões mais díspares. Fazemos promessas porque queremos mudar. Queremos mudar coisas que entendemos não estarem bem, seja qual for a razão! Trata-se de uma lógica inquestionável. Assim, a razoabilidade e coerência deste raciocínio legitimam a questão. «Porque razão a maioria das promessas não são cumpridas?» Antes de avan

NATAL DE IRMÃOS

NATAL DE IRMÃOS João completava doze anos em Dezembro. Tinha uns pais que o adoravam e uma irmã, seis anos mais nova, que ele idolatrava. No início do verão a família sofreu um revés. O pai que era diretor numa multinacional ficou desempregado. Como trabalhava havia pouco tempo na empresa o valor da indemnização foi muito reduzido. Os pais explicaram a situação ao João e este, apesar de perceber que estava prestes a perder muitas das coisas a que estava habituado, reagiu muito bem. Aquilo que lhe ia custar mais era sair do Externato Marista de Lisboa e ir para uma escola pública. Não pelo facto de deixar de andar num colégio, mas por ser aí que andavam todos os seus amigos. «Eu ajudo naquilo que for necessário. Vai ser difícil mudar de escola, mas não se preocupem que eu consigo.» Disse João. O pai fez um esforço descomunal para não chorar. A mãe percebendo isso envolveu pai e filho no mesmo abraço, escondendo dessa forma as suas próprias lágrimas. Lúcia a irmã, que fazia s

AUSENTE

AUSENTE Aurélio era um nome pouco comum. Invocava as memórias do grande imperador romano, mas ajustava-se perfeitamente a ele. Tinha a autoridade de um imperador, a generosidade de um governante e a nobreza de uma alma pura. Demasiado pura talvez! Ela era quase o inverso. Quando queria atingir um fim, normalmente não olhava a meios! Nessa noite ela tinha decidido que ele lhe pertenceria, ainda que fosse apenas por algumas horas. A ideia era fazê-lo ingerir um estimulante sexual e depois dar em cima dele. Para estarem na mesma onda ela deu a si própria um tratamento semelhante. Excecionalmente, ele bebeu mais do que a conta. Quando se apercebeu do facto já era um pouco tarde: também ela tinha bebido ligeiramente mais do que a conta. Antes que isso fosse notório ela tomou a iniciativa. «Vou para casa e levo o Aurélio, dado que ele não está em condições de conduzir.» Os amigos acharam a situação normal, dado que eles eram vizinhos e grandes amigos. Mal entraram no carro o A

O PAI NATAL DE CARTÃO

O PAI NATAL DE CARTÃO Ainda era de noite, mas era óbvio que o dia iria clarear um pouco mais tarde que o normal. O céu, carregado de nuvens, anunciava chuva e o vento uivava nas esquinas, reclamando os seus domínios. Era sempre assim: a ausência do sol prolongava as noites e tornava os dias cinzentos. A noite fria entorpeceu-lhe os músculos e gelou-lhes as articulações. «Parece que vamos ter outro dia de chuva!» Pensou. O chão da arcada, que lhe serviu de teto, estava gelado. Com gestos lentos, arrumou as mantas, tudo acomodado num denso rolo que colocou às costas. Os cartões, juntamente com um cobertor esburacado, ficam a marcar o lugar. Era um lugar protegido do vento e da chuva. Um privilégio que não podia perder. As luvas, já gastas nas pontas dos dedos, o gorro enfiado até às orelhas, o casaco velho e roto, sobre várias camisolas, são as armas que usa para combater o frio. O vento ignora tudo isso e descobre forma de lhe tocar na pele. Que gelo! Desconforto! Toca a andar!

AO ACASO

AO ACASO Acabou de almoçar no restaurante do costume, mas tinha a sensação de estar perdida. Levantou-se e, de forma instintiva, levou a mão à bolsa retirando a carteira. Ficou a olhar para ela sem saber o que fazer. «São oito euros e trinta e cinco cêntimos.» Disse o empregado. Pagou. Arrumou a carteira e saiu para a rua. Os sítios eram-lhe familiares mas não conseguiria dizer onde estava. Caminhou ao acaso. Existiam duas pessoas dentro dela. Uma comandava os seus passos, como algo natural: uma recordação de um hábito, centenas de vezes repetido. A outra que descobria caminhos nunca antes percorridos, navegava pelas ondas da imaginação, buscando o inatingível, desejando o etéreo. Os sapatos palmilhavam a calçada em linha recta e de forma cadenciada. A imaginação estava em todo o lado ao mesmo tempo. «O que fazia ela ali?» Interrogou-se. Não era aquela a vida que tinha escolhido ela. Tinha-lhe sido “sugerida” pelos encontros e desencontros da própria vida. Nunca imaginara n

A REDE

A REDE A escola ficava num dos bairros mais antigos da cidade. Era um bairro onde o comércio e os escritórios predominavam, sendo atravessado pela avenida principal da cidade: A Avenida Fonseca Paiva. Lado a lado com a câmara municipal, mesmo ao fundo da   avenida, na fronteira do bairro, os dois edifícios erguiam-se de forma imponente. Nas suas traseiras escondia-se a Vila Mariana, um casario meio abandonado, que tinha sido o berço da cidade. As casas térreas, de perpianho imperfeito, encontravam-me em estado de quase ruína. Apenas meia dúzia de velhos casais e alguns viúvos e viúvas, resistiam a abandonar o local. Eram a última barreira ao avanço do progresso. Os velhos do Restelo, nas palavras de muitos. Para chegar ao miradouro, que dava sobre o rio, com uma vista deslumbrante, tinha de se atravessar a Vila e contornar o velho cemitério. Tinha sido ali que tudo tinha começado, com um foral régio de Dom Diniz. A manhã era sempre muito animada. Os jovens subiam a escadaria,

O PAI NATAL ENVERGONHADO

O PAI NATAL ENVERGONHADO Jena tinha emigrado para os estados unidos muito nova. Fora com promessas de um contrato chorudo como modelo. Peter resgatou-a da prostituição dois anos depois de ter entrado na rede. Ela ser-lhe-ia eternamente grata. Passados doze anos e dois filhos, tinha perdido a frescura de outros tempos. A falta de descanso, a dureza do trabalho e as preocupações tinham sido inexoráveis. O corpo acabou por se render ou se revoltar e a elegância de outra esfumou-se. Teve de abandonar o emprego de dançarina e trabalhar num restaurante. Peter perdeu o interesse nela e buscou o aconchego de colos mais jovens. Ela acabou só, com os dois filhos. O bairro de Bronzeville, em Chicago, a partir da rua quarenta e sete, era habitado por gente pobre, maioritariamente de raça negra. A ascendência africana de Jena permitiu-lhe encontrar aí refúgio, quando teve de se mudar para uma casa mais barata. Os filhos estranharam a mudança, mas como viviam no quarteirão da quadragésima