Essa convicção produziu-lhe um grande bem-estar e deu-lhe uma força muito maior, que a motivação que costumava ter, para ir trabalhar todos os dias. Uma frase não lhe saía da cabeça: Nunca digas nunca, a não ser para dizer que Nunca é tarde!
Às sete horas da manhã o
despertador tocou e Hugo levantou-se, como acontecia todos os dias úteis da
semana e dirigiu-se para a casa de banho, de forma lenta e preguiçosa. Acordar
àquela hora matinal era um suplício! Sempre fora, mas com o passar dos anos o
corpo pesava-lhe cada vez mais. Era nessa altura que as vozes discutiam entre
si, ignorando a sua própria existência. «Não será o teu Ego que está demasiado
inchado?» – Disse uma das vozes. «Chega! Para com isso. Ainda é muito cedo para
começares já com os teus dilemas!» – Disse a outra.
Ainda meio a dormir passou
água pelos olhos e levantou a cabeça para se olhar ao espelho. Era nesse
momento que o ritual diário de engrandecimento do seu Ego começava. A segunda
voz assumiu o controlo e disse: «Tu não estás tão velho assim, na verdade a tua
aparência é bastante jovem». «Tu estás bem menos gordo que a generalidade das
pessoas da tua idade». «Tu alcançaste uma posição bem acima da média dos teus
amigos». «Tu és bem mais inteligente que a cambada de imbecis que te rodeia». Estas
e outras reflexões, injectadas no seu pensamento, por aquela voz, alimentavam o
seu Ego e davam-lhe a dose de energia diária de que necessitava.
Do outro lado do espelho a sua
imagem não contestava esta apreciação, embora, uma vez ou outra, ele tivesse
vislumbrado um arquear de sobrancelhas, que o fez olhar mais atentamente para o
seu reflexo. Era nessa altura que sentia aquelas alfinetadas da dúvida, como se
a sua imagem questionasse a veracidade da sua auto apreciação. Nesse dia, foi
exactamente isso que aconteceu. Mas ao invés de olhar mais atentamente, para a
imagem que o espelho reflectia, para detectar a veracidade do movimento das
sobrancelhas, ele fechou os olhos e desejou que a imagem não estivesse ali.
Quando abriu os olhos percebeu
que os papéis se haviam invertido. Agora era ele que estava do outro lado do
espelho, enquanto a sua imagem se passeava pela casa de banho, satisfazendo a
sua curiosidade, em relação aos inúmeros objectos que ele utilizava diariamente.
Ele gritou para lhe chamar à atenção, mas da sua garganta não saía qualquer
som. Desesperado, deu vários murros no espelho, mas a sua imagem continuou a
ignorá-lo.
Hugo começou a ficar
desesperado, pois queria libertar-se da prisão em que se encontrava, mas para
isso precisava que a sua imagem se disponibilizasse a trocar novamente de
posição consigo, o que exigia uma sintonia entre os dois, que deixara de
existir, quando Hugo passou para o outro lado do espelho. O mais estranho, era
que a sua imagem, quando era reflectida pelo espelho, seguia todos os seus
gestos e movimentos, mas agora, que ele estava do outro lado, ela parecia ter
adquirido uma vida própria. Hugo olhou atentamente para a sua imagem, vagueando
pela casa de banho, e interrogou-se: «A imagem que estou a ver, será a do meu
outro Eu?»
Foi devido a esta tomada de consciência
que conseguiu estabelecer o primeiro contacto entre ele e a imagem dele, que se
movimentava livremente fora do espelho. Lentamente, a imagem voltou-se para ele
e fixou-o. Aquilo que Hugo viu, estampado no rosto da sua imagem, deixou-o
pálido. A sua imagem era feia, tinha uma cara que parecia a de um monstro e
olhava para ele com desdém. Perante a palidez de Hugo e o espanto reflectido no
seu rosto, a imagem abriu os lábios num sorriso, que era simultaneamente
sádico, cínico e trocista.
- Essa não é a minha imagem! -
Disse Hugo, num grito de desespero.
Esta exclamação de desespero
fez com que a sua imagem soltasse uma gargalhada sonora, que ecoou pela casa de
banho de forma estranha, pois parecia ecoar dentro da sua cabeça.
As vozes voltaram. Desta feita,
era a primeira voz que falava. Na verdade, ela não falava, ela comunicava
directamente com o seu cérebro, sem que Hugo soubesse onde ela estava,
exactamente.
- Esta é a tua verdadeira
imagem. Não a tua imagem física, mas a imagem daquilo que tu és no teu interior.
- Disse a primeira voz. – Se quiseres podes imaginar que é o teu outro “EU”.
- Não! Não é possível, eu não
sou um monstro! – Gritou novamente Hugo.
- Talvez…Talvez não sejas um
monstro mas o teu Ego é e, ao deixares que ele comande as tuas acções,
pensamentos e desejos, tens vindo a assemelhar-te cada vez mais a ele.
Enquanto a voz dizia estas
palavras, a imagem começou a virar-se, deixando de olhar para Hugo, ao mesmo
tempo que este sentiu que a linha de comunicação, que existia entre eles, se
quebrava.
- Não, espera! Não te vás
embora. Talvez eu não seja bem a pessoa que apregoo ser. – Disse Hugo, num
apelo desesperado. – Diz-me quem são as vozes que falam comigo?
Ao mesmo tempo que a imagem se
virava novamente para Hugo, a voz disse:
- Esta voz que agora fala
contigo, neste tom tranquilo, é a voz da Consciência. A outra, aquela que fala
em tom mais exaltado, é a voz do teu Ego.
A imagem voltou a fixar o seu
olhar em Hugo e agora a sua expressão era de grande expectativa. Perante o
silêncio dele a Consciência disse:
- Então reconheces as tuas
monstruosidades ou não?
- Bem eu ainda não consigo
acreditar que aquilo que vejo seja a minha imagem. Ajuda-me a compreender, por
favor! – Disse Hugo.
Estas palavras tiveram o
condão de amenizar um pouco o rosto de monstro da imagem. Embora Hugo ficasse
com a sensação de que o seu próprio rosto se deformava um pouco, como se os
rostos dele e da imagem se transformassem, para se aproximarem um do outro.
- Pensa um pouco. Diz-me
quantas vezes tu usaste as pessoas que trabalham contigo, independentemente da
sua posição hierárquica, para as culpar dos teus erros, ou para justificar as tuas
falhas? – Disse a Consciência.
- Não, eu…
- Tens a certeza que queres ir
pelo caminho da negação? – Perguntou a Consciência, interrompendo-o.
- Tens razão eu fiz isso
algumas vezes. – Disse Hugo, de forma resignada.
- Algumas vezes? – Perguntou a
Consciência.
- Não. Eu fiz isso muitas vezes.
Na verdade, foram raras as vezes em que eu assumi que falhei, ou que me enganei.
- E qual foi o sentimento com
que ficaste depois de uma e outra situação? – Perguntou a Consciência.
Hugo não respondeu de
imediato, antes deu espaço à sua memória para viajar no tempo e analisar os
seus sentimentos, em cada uma dessas situações. E olhando para elas, à
distância, percebeu aquilo que na altura não quis entender ou preferiu ignorar.
- A verdade é que sempre que
assumi os meus erros e falhas saí mentalmente reforçado da situação e aprendi
alguma coisa com o erro.
- O que se passou nas outras
situações? – Perguntou a Consciência.
- O erro foi atribuído a outro
e eu, ao não reconhecer que errei, continuei a cometer o mesmo erro, não
aprendendo nada com este. Para além disso, carregava comigo a culpa de ter
deixado que fosse outro a pagar pelo meu erro.
Hugo sentia o seu rosto ficar cada
vez mais rijo, mas infelizmente não tinha a possibilidade de observar essa
transformação, pois a única coisa que podia ver era que o rosto da imagem se
tornava cada vez mais humano.
- Diz-me agora, quantas vezes
deixaste que o teu egoísmo levasse a melhor, sobre os sentimentos de amor e
amizade, que te ligam à tua família e aos teus amigos?
- Eu não sou egoísta! –
Respondeu Hugo, de imediato.
Hugo ficou quase sem respiração
e o seu corpo dobrou-se em dois, enquanto os seus pulmões sorviam todo o ar que
podiam, não sendo este suficiente para satisfazer as suas necessidades.
- Tem calma. Levanta a cabeça
e olha para mim. - Disse a Consciência.
Hugo fez um esforço sobre
humano para endireitar o corpo e à medida que o conseguiu, a sua respiração
melhorou e ele conseguiu olhar de frente para a imagem.
- Obrigado. Já estou melhor. –
Disse Hugo, num tom humilde.
- Então qual é a tua resposta?
– Perguntou a Consciência.
- Tens razão eu fui muitas
vezes egoísta e o meu bem-estar sempre foi muito importante para mim, chegando
a sobrepor-se aos sentimentos de amor e amizade.
- Diz-me agora quantas vezes
não te esforçaste o suficiente para obter o melhor resultado possível, do teu
trabalho e estudo, justificando o teu insucesso com obstáculos que não
existiam? – Voltou a perguntar a Consciência.
- Sempre. Eu não concebo que
possa falhar, portanto, se eu falho, alguém ou alguma coisa tem que ser o
culpado, mesmo que isso não corresponda à verdade. – Disse Hugo.
- Finalmente, diz-me quantas
vezes exageraste os teus feitos, tornando-os grandiosos, para te elevares aos
olhos dos outros?
- Muitas vezes. O poder
alimenta-se de mais poder. Cria em nós uma necessidade crescente de ter mais e
mais… Sempre mais! Quando damos por nós já não é suficiente ser um profissional
bem conceituado, mas é necessário ser socialmente e intelectualmente reconhecido.
Quando terminou, Hugo sentiu
que uma lágrima escorria pela sua face direita. Estranhamente, apenas um dos
olhos chorava! Hugo limpou a lágrima com um dedo e reparou que a lágrima tinha
uma cor escura, como se fosse água suja. Aquilo era efectivamente muito
estranho! Hugo purgava a sua consciência, chorando lágrimas de culpa.
Quando terminou de limpar a
lágrima, apercebeu-se de que do outro lado do espelho estavam agora duas
imagens suas. À imagem que já lá estava antes, juntara-se uma outra, em que ele
estava representado por um homem atlético e bem parecido e com uma idade
indefinida, mas aparentando ser mais jovem do que efectivamente era. Foi então
que se ouviu a outra voz.
- Olha lá ó meu cretino, desde
quando é que tu dás ouvidos à voz da Consciência? Até agora viveste feliz e sem
problemas, vendo a imagem de ti que querias ver e que, agora, está ao lado da
que a Consciência te tem estado a mostrar. Essa é que é a tua imagem e não
aquela que a Consciência te está a impingir!
- Quem és tu? – Perguntou
Hugo.
- Eu sou “Tu”. – Disse a voz.
- Como é isso, tu és “Tu” ou tu
és “Eu”? Explica-me o que se passa. Tu não és a única voz que habita na minha
cabeça.
- Olha para te facilitar a vida,
podes assumir que sou a voz do teu Ego. Portanto, podes chamar-me Ego.
- Então o que tens tu contra
aquilo que a Consciência tem estado a dizer-me? – Perguntou Hugo.
- Depois de te ajudar a
acordar, hoje de manhã, eu pensei que podia dormir descansado, mas tu foste
acordar a Consciência e isso, normalmente, é sinónimo de problemas. Não tarde
nada estás a entrar em depressão, com todas as lamechices dela. – Disse o Ego.
- Mas o que tens tu a
argumentar em relação ao que a Consciência disse? – Perguntou Hugo.
- Trata-se de um chorrilho de
mentiras para te fazer sentir culpado e te vergar à vontade dela. – Disse o
Ego.
- E tu não fazes o mesmo?
O Ego, vendo que a Consciência
tinha conseguido lançar a dúvida no espírito de Hugo, lançou-se numa luta, corpo
a corpo e foi em silêncio que Hugo assistiu a essa cena. No meio do entusiasmo
da refrega, as imagens jogaram-se de cabeça contra o espelho e, sem perceber
como, Hugo viu-se novamente na casa de banho, a olhar para a sua imagem,
reflectida no espelho.
Hugo não sabia explicar
exactamente o que se havia passado consigo. Parou um pouco e focalizou a mente
na sua nuca, que era o local donde provinham as vozes que falavam consigo.
Nada. Apenas silêncio. As vozes haviam-se calado e apenas o seu pensamento
desenvolvia raciocínios lógicos, para tentar perceber o que se havia passado
com ele.
Mentalmente, reviu tudo o que
as vozes lhe haviam dito e percebeu que nem sempre havia agido da melhor forma,
na sua vida. Revendo os acontecimentos, percebia que as coisas que aconteceram,
não podiam ser alteradas, mas que algumas podiam ser compensadas. Percebeu,
sobretudo, que a sua atitude e o seu comportamento, podiam mudar e tornar-se
bem diferentes.
Essa convicção produziu-lhe um
grande bem-estar e deu-lhe uma força muito maior, que a motivação que costumava
ter, para ir trabalhar todos os dias. Uma frase não lhe saía da cabeça: Nunca digas nunca, a não ser para dizer que Nunca é
tarde!
Comentários
Enviar um comentário