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O BURRO TAMBÉM EMIGROU




O BURRO TAMBÉM EMIGROU!

   Na sexta-feira passada fui, como de costume, passar o fim-de-semana na zona de Sesimbra com a minha família. Como já não chegamos cedo decidimos ir jantar fora, tendo arrastado a parte da família que habita na zona, para este repasto em forma de convívio improvisado. Ao entrar em Sesimbra, pela entrada norte, passamos por umas vivendas, mesmo por debaixo do castelo, logo seguidas de uma  zona de mato onde, por regra, se encontra um burro, num abrigo algo distante da estrada. Já se tornou hábito comentar aquilo que o burro está a fazer, quando nós passamos, gerando-se uma espécie de competição para ver quem percebe primeiro, o estado em que o burro se encontra. É um daquele hábitos rotineiros, que surgiu não se sabe como e se mantém sem que ninguém saiba bem porquê. Na sexta feira passada o episódio repetiu-se.

    - O que está a fazer o burro? – Perguntei eu, impedido de ver por ter de focar a atenção na condução.
   - O burro não está lá. – Disse o meu filho mais velho.
   - Que estranho! É a primeira vez que aqui passamos e não vemos o burro. O que lhe terá acontecido? – Perguntou a minha mulher.
   - O burro emigrou! – Disse eu brincando com a situação e arrancando uma gargalhada familiar com o comentário.
   Quando paramos de rir o meu filho mais velho disse, frisando a palavra também:
   - O burro também emigrou
   O comentário do meu filho inspirou-me a escrever uma fábula onde os protagonistas são animais ou objetos animados, mas que bem podia ser o retrato da vida atual em Portugal.
   No tempo em que os animais falavam e os objetos tinham vida própria, o mundo estava dividido em várias quintas onde viviam grupos de animais e objetos variados, tendo cada um a sua função, de forma a garantir que as quintas fossem auto-sustentáveis no espaço e no tempo. Algures no tempo, num momento que ninguém sabe determinar muito bem, começaram a operar-se movimentos tendentes a criar espaços com vantagens sobre os outros, como forma de gerar desequilíbrios de poder, quer político, quer económico, que levassem à submissão das zonas mais fracas.
   Foi nesse contexto que se criou a União Europaliar (EU), juntando várias quintas sob um conjunto de regras comuns, mas mantendo a independência de cada quinta bem como os seus usos e costumes, nomeadamente os seus vícios. Por isso lhe deram o nome de Europaliar, uma vez que a união era apenas aparente e não de verdade.

   Uma das quintas que se juntou à União Europaliar foi a Portupálido, cuja dimensão geográfica era muito reduzida e que sempre havia experimentado grandes dificuldades em sobreviver, a não ser nos momentos em que tinha subjugado outras quintas, cujos habitantes eram menos desenvolvidos e que por esse facto aceitaram que os seus recursos fossem partilhados com a Portupálido. 
   Quando se juntou às restantes quintas da União Europaliar, a Portupálido experimentou uma sensação de enriquecimento, como resultado do recebimento de uma parte da riqueza das quintas maiores e mais desenvolvidas, pertencentes à mesma união. Infelizmente, isso foi passageiro e ilusório, tendo levado os habitantes da quinta a consumir mais do que produziam e a pedir recursos emprestados aos parceiros, para sustentar a ostentação em que viviam, dado esta não ter suporte em termos de riqueza criada.
Esta moda de viver de aparências não era apenas apanágio da Portupálido, mas tinha-se estendido a todo o mundo, com mais ou menos exagero. Quando essa situação se generalizou, o mundo tomou consciência desta e começou a questionar os valor das coisas, tendo com isso provocado uma crise mundial pois o valor transacional dos bens era muito superior ao seu valor real. O impacto dessa crise foi muito grande em quase todas as quintas, tendo sido dramático na Portupálido. 
   As proporções da crise na Portupálido foram tão grandes que esta teve de pedir ajuda aos seus parceiros, sujeitando-se à imposição de restrições económicas e financeiras quase impossíveis de suportar. 
   A Portupálido era uma quinta pequena e com uma riqueza natural pouco significativa, vivendo da exploração dos seus belos prados e das frondosas matas, do aluguer dos espaços, para que os habitantes das outras quintas usufruíssem do sol que brilhava com intensidade uma boa parte do ano e do mar, que banhava a sua costa de areia branca, transformando-a numa bela praia.
   A quinta tinha uma estrutura social onde era possível identificar apenas duas classes, uma de elites e outra do povo. Entre as elites destacavam-se a financeira, a empresarial, a administrativa e a política. O povo era fundamentalmente constituído por carneiros e burros, embora existissem uma grande variedade de outros animais e objetos, mas em pequenas quantidades.
   A elite financeira era dominada pelas aves de rapina e abutres, animais poderosos que se alimentavam dos restantes e, dependendo da sua própria natureza, podiam alimentar-se de outros animais vivos ou apenas das suas carcaças.
   A elite empresarial era constituída fundamentalmente por três animais. Os leões velhos, que se limitavam a rugir para afastar a competição do seu território, mostrando os dentes ou as garras, quando as circunstâncias o exigiam. Os galos, que se limitavam a subir ao seu poleiro, todas as manhãs e a proclamar  o seu status de empresário, exigindo mais apoio e subsídios dos políticos ou da administração da União Europaliar. Finalmente, existiam os furões, animais pequenos, mas com grande agilidade e inteligência, que buscavam as melhores oportunidades de negócios dentro da quinta ou no seu exterior, sem medo de entrar nos buracos mais escuros e longínquos que existiam. Infelizmente estes eram uma pequena minoria!
   A elite administrativa também era composta por três animais. Existiam os elefantes, que faziam todo o controlo dos mercados e geriam o banco central da Portupálido. Eram animais inteligentes mas demasiado corpulentos e com uma lentidão em termos de atuação, associada à sua própria dimensão, que os levava a chegar sempre demasiado tarde, não conseguindo evitar as sucessivas situações de descontrole.  Para além disso, quando arrancavam e ganhavam velocidade, levavam tudo na sua frente causando muitas vezes mais danos do que seria desejável. A sua incapacidade de atuar em tempo útil levava-os a criar uma estrutura de obrigações e responsabilidades que tornava as empresas ainda mais ineficientes. 
   Existiam os hipopótamos, que controlavam a justiça e que viviam num mundo à parte, banhando-se nos lagos de água fresca. Quando decidiam atuar abriam a boca e trituravam, com as suas fortes mandíbulas, tudo o que estava à sua mercê. Como quando abriam a boca perdiam a capacidade de ver o que estava à sua frente, atuavam de forma cega. 
   Finalmente, existiam as preguiças, que eram fundamentalmente os conselheiros ou diretores de topo da parte administrativa do estado. Por regra eram nomeados pelos gangues políticos a que pertenciam e passavam o tempo todo a dormir, vivendo do rendimento que os cargos lhes proporcionavam. Quando despertavam procuravam assegurar a sua alimentação com um novo “tacho” que lhes permitisse passar mais uma temporada a dormir.
   A elite política estava organizada em gangues que  podiam ser identificados por uma cor. Existiam muitos gangues na Portupálido, mas apenas cinco tinham alguma preponderância, a saber: O gangue laranja, o rosa, o vermelho, o azul e o preto. Tratando-se de gangues, naturalmente que apenas defendiam o interesse da quinta quando este coincidia com o do seu gangue.
   O gangue laranja, que governava a quinta em aliança com o gangue azul, era chefiado por um Coelho, que era um animal simples e trabalhador que esburacou a quinta toda à procura de encontrar forma de satisfazer as exigências dos credores. Mas a quantidade de buracos que fez foi de tal forma elevada que a erva que nascia à superfície secou ou cresceu muito pouco, tendo um efeito maléfico sobre a riqueza produzida na quinta.  Isso levou a que ainda mais animais ficassem sem trabalho e sem sustento. Não tendo conseguido encontrar riqueza nos buracos, reduziu a parcela que cada animal recebia, para viver, para juntar recursos para satisfazer os parceiros que estavam a ajudar a quinta. Apesar dos parceiros aparentarem estar satisfeitos com o Coelho, os habitantes da quinta não estavam felizes e começaram a mudar-se para as quintas vizinhas.
   O gangue rosa era o segundo maior gangue, pelo menos na época aqui retratada, e era chefiado por um Seguro. Tratava-se de um ser cauteloso que já tivera de passar vários anos poisado em cima de uma secretaria da administração da União Europaliar, esperando uma oportunidade e que tinha assumido recentemente a liderança do seu gangue. Os membros do gangue rosa sentiram-se seguros com o Seguro durante algum tempo, mas por causa dos resultados das eleições para a Europaliar, gerou-se alguma confusão dentro do gangue o que fez com que desse à costa dos rosas um animal, que ainda não tinha sido devidamente classificado e que tinha passado os últimos anos na administração da capital, depois de uma breve passagem pelo governo central.
   O gangue vermelho era chefiado por um Carvalho. Tratava-se de uma árvore secular, mas completamente estéril, pois nem bolota produzia, embora alimentasse o sonho permanente de dar boa e bela madeira, no dia em que fosse abatida. Sendo um carvalho de grandes dimensões, a sua sombra e as suas raízes inutilizavam uma grande porção de terreno à sua volta, tornando-o perfeitamente improdutivo. Este gangue nunca teve ambição de governar, por isso proclamava uma política de terra queimada, sem qualquer sustentabilidade caso alguma vez viesse a ser governo.
   O gangue azul era chefiado por uma Portas que tinha a caraterística de aparentar estar sempre segura de si, rodando sobre as suas quatro dobradiças, mas que se dissimulava de uma forma admirável, parecendo estar aberta quando estava fechada e vice versa. A verdade é que sendo plural ela era sempre duas coisas ao mesmo tempo. A forma como a Portas se apresentava era  de tal forma difusa, que nunca ninguém conseguia perceber o seu real estado, podendo estar ao mesmo tempo aberta e fechada ou ser em simultâneo opaca e transparente. O facto de participar no governo da quinta tinha diminuído a popularidade deste gangue, pelo que eles haviam optado por se manter aliados ao gangue laranja em atos eleitorais futuros.
   O gangue preto era governado por um Bloco de Pedra, mas ao invés de ser um bloco maciço tratava-se de um gabião, em que várias pedras pequenas assumem a forma de um bloco, pelo facto de estarem unidas com uma poderosa rede metálica. Infelizmente a rede havia perdido qualidades e rebentou, sendo que cada pedra rolou para o seu lado, desfazendo-se desta forma o bloco que comandava o gangue. Isso não agourava nada de bom para o futuro desse gangue, sendo elevada a expectativa em relação ao seu futuro.
   Ninguém podia adivinhar o futuro que estava reservado a esta quinta e as variáveis a considerar eram muitas, adivinhando-se uma grande tempestade no horizonte, que ameaçava causar danos profundos. O adensar das nuvens resultava de um vasto conjunto de acontecimentos que tiveram lugar num curto espaço de tempo e cujas consequências não era possível antecipar, a saber:
Muitos carneiros já haviam procurado outras pastagens e até os burros, que eram animais mais pachorrentos e não tão exigentes em termos da sua alimentação, tinham começado a abandonar a quinta.
   Os hipopótamos continuavam a triturar a ação do governo, mordendo o orçamento e deixando os gangues laranja e azul à beira e um ataque de nervos.
   O Coelho não parava de dar saltos pelos prados, proclamando que o pior já havia passado, mas sem conseguir tranquilizar os habitantes da quinta que olhavam para o lado e viam cada dia mais pobreza.
   O gangue rosa, ao invés de se constituir como alternativa aos dois gangues no poder, procurava lidar o melhor que podia com a enxurrada que tinha dado à costa, estando cada vez mais inseguros do Seguro. Mas com Costa  ou com Seguro queriam que no fim do verão o governo caísse de maduro.
   O bloco de gabião que chefiava a gangue preto desfez-se e o gangue deverá ir pelo mesmo caminho, devendo cada uma das pequenas facções juntar-se a outros gangues, o que poderá vir a criar algum desequilíbrio de forças entre estes.
   As aves de rapina e os abutres que lideravam as finanças agitaram-se pois descobriram que uma das aves, conhecida por Abutre do Espírito Santo, tinha destruindo por completo um dos ramos do sector e lançando o caos nas finanças da quinta.
   As preguiças despertaram e, receosas que uma mudança de poder as possa vir a substituir por outras, ameaçam passar todo o verão despertas e ativas.
   Perante tudo isto a única coisa possível de antecipar era que depois da quinta ter vivido  um “verão quente” em 1975, tudo indicava que se preparava para viver um verão “escaldante” em 2014. 



Comentários

  1. Pois é... No meio destes rebanhos de animais (a maioria são carneirinhos), alcateias de lobos maus, varas de porcos sem tino e bestas que nunca mais acabam, faltam alguns leões fortes e resolutos que desbravem a floresta e ponham cada bicho no respetivo sítio em termos de a quinta poder continuar sem os donos das outras, sempre a dar ordens que, boas ou más, de pouco valem porque os animais desta quinta ainda pensam que pensam e que fazem alguma coisa com isso quando não mexem realmente que é a única coisa que na verdade falta, é mexer, e mexer com os animais todos...

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  2. Tens toda a razão. É fundamental mexer! Mas é preciso saber o que mexer e quando mexer.

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