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GRITO DE AMOR!

 




GRITO DE AMOR!


Os dias amenos de que a cidade de Lisboa beneficia durante a maior parte do ano convidam quase sempre a um passeio ao ar livre e a deslocação entre a casa e o escritório proporcionava-lhe esse prazer diariamente.
O facto de o escritório ficar perto de uma estação de metro permitia-lhe utilizar esse meio de transporte para ir todos os dias trabalhar, ao mesmo tempo que lhe proporcionava a possibilidade de contactar diariamente com o ambiente citadino logo pela manhã. Sempre gostara de observar as pessoas que se cruzavam consigo, na rua ou nos transportes e isso permitira-lhe perceber que o semblante que apresentavam, para além de refletir o seu estado de espírito, mudava ao longo do dia.
Naquele dia a manhã solarenga reforçava o convite para um passeio e a deslocação entre a paragem do metro e o escritório estava a ser uma experiência revigorante, pois a aragem fresca da manhã despertava-lhe os sentidos ainda meio adormecidos.
Concentrado no trânsito cruzou a rua e ao retomar o passeio, do outro lado da mesma, o homem que caminhava em sentido contrário chamou de imediato a sua atenção. Quando os seus olhares se cruzaram o semblante do estranho refletia de tal forma aquilo que lhe ia na alma que os seus olhos lançavam um grito de socorro impossível de ignorar!
Como que por um qualquer milagre ou arte mágica ele mergulhou no íntimo do estranho, através dos olhos, como quem entra numa casa por uma janela aberta e, por breves instantes, que na altura lhe pareceram uma eternidade, pôde sentir exatamente aquilo que o estranho vivenciava naquele momento, como se dele próprio se tratasse.
A densidade dos sentimentos experimentados por aquele homem de cabelos grisalhos e semblante carregado era tão grande e a sua intensidade tão profunda, que ele sentiu um choque e o seu corpo estremeceu quando os experimentou pela primeira vez.
O estranho era um homem casado há mais de duas dezenas de anos e embora esse facto não o fizesse infeliz, a causa da sua perturbação era exatamente o seu casamento, que naquele momento lhe gerava sentimentos de frustração e injustiça à mistura com uma desilusão e perplexidade profundas. Estes sentimentos não resultavam nem do facto de não amar a sua mulher, sentimento que ele experimentava com grande intensidade, nem do facto de não ser correspondido, pois era amado de verdade!
Ao mergulhar no íntimo daquele estranho ele sentiu-se como que envolvido por um mar de sentimentos que chocavam entre si, provocando autenticas descargas elétricas, estando este a pontos de explodir. Quando o estranho tomou consciência da sua presença dentro dele sentiu a necessidade de explicar a razão daqueles sentimentos, como se tivesse que justificar-se por se sentir tão profundamente perturbado.
 A sua grande frustração resultava do facto de não conseguir entender a sua mulher, apesar do longo caminho que ambos tinham percorrido na vida, em conjunto. Não conseguia entender, nem encontrava justificação, para as suas constantes mudanças de humor, sem causa aparente e aparentemente sem consciência do mal que estas lhe causavam, pois era um homem extremamente sensível, embora não gostasse de o deixar transparecer. 
 A injustiça provinha da permanente desconfiança dela que embora pudesse fundamentar-se em razões do passado, não encontravam nenhum eco no presente e evidenciavam um ciúme crescente, que caminhava para um ponto onde ameaçava tornar-se doentio. Para além disso, era impossível ter uma conversa com ela porque ela não era sensível a qualquer tipo de argumento, nem estava disponível para o diálogo, preferindo fechar-se nas suas convicções e assumindo ser dona da verdade. Para além de injustiçado aquele estranho sentia-se diminuído aos olhos da mulher que amava, pois nada do que fazia ou dizia parecia ter crédito.
A desilusão era uma consequência do estado de espírito gerado pelos sentimentos de frustração e injustiça. Era essa desilusão profunda que lhe dava vontade de desaparecer para sempre, como se fosse possível ele esfumar-se e passar a viver numa realidade distinta, onde todos aqueles sentimentos pudessem ser evitados. Mas era também uma condenação do seu próprio comportamento como quem se culpa a si próprio por ter falhado e não ter conseguido uma relação estável.
Finalmente, o sentimento de perplexidade resultava fundamentalmente do facto de não conseguir entender como o comportamento dela podia oscilar entre o mais carinhoso e mais amoroso e a completa ignorância, chegando quase ao nível do desprezo e vice-versa. Resultava ainda do facto de ele, apesar de viver naquela ansiedade e de toda a revolta que sentia, não conseguir calar o amor que sentia por ela e o desejo profundo de encontrar a sua intimidade.
À medida que o diálogo imaginário, que constituiu a justificação dos sentimentos nutrido por aquele estranho, se ia desenvolvendo o seu rosto foi-se desanuviando e o no seu íntimo registou-se uma alteração substancial. Tudo agora estava calmo. Isso coincidiu com o exato momento em que ele se cruzou com o estranho e não pôde deixar de constatar que o grito de socorro se havia transformado em algo muito mais doce e tranquilo. Os lábios do estranho apresentavam um ligeiro sorriso e no último momento em que trocaram olhares o do homem que se cruzava consigo soltava agora um Grito de Amor!
O seu coração encheu-se também desse sentimento e, instintivamente, pegou no telefone para ligar à sua amada…










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