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COINCIDÊNCIAS


COINCIDÊNCIAS




Humberto saiu do escritório logo que a reunião do conselho de administração terminou. Eram dezoito horas. Vitor, o sócio maioritário, já se tinha acostumado às saídas intempestivas e, embora o colega e amigo não fizesse confidências sobre o assunto, pairava no ar um clima de romance. Ao vê-lo sair assim, desaustinado, como que em estado de urgência, Vitor não conseguiu evitar um sorriso e veio-lhe à mente a imagem da sua esposa, cuja similitude de comportamento era notável, às quintas-feiras, quando se ausentava para a aula de dança, que se prolongava entre as dezanove e as vinte e três horas. Coincidências!

Aquela era uma noite muito importante porque Juliana, a amante de Humberto, iria dar-lhe a resposta porque tanto ansiava. O seu futuro dependia inteiramente do sentido dessa resposta! Vezes sem conta eles haviam trocado juras de amor e Juliana idolatrava o homem que, sendo quinze anos mais novo, dizia amá-la profundamente. Apesar dos seus cinquenta e três anos de idade Juliana conservava uma beleza incomum que dava ainda mais fulgor ao corpo escultural que possuia, resultado de muito exercício, uma alimentação regrada e algumas plásticas. Tudo somado era uma mulher muito interessante e que fazia inveja a muitas com menos vinte anos de idade.

- Tu és um homem maravilhoso e estar contigo faz-me sentir jovem, desejada e amada. Está decidido. Vou deixar o meu marido, por isso podes contar com a minha colaboração. – Disse Juliana.

- Estás segura de que consegues obter os documentos que comprometem o teu marido. Eu sei que estamos a cuidar do nosso futuro, mas odeio colocar-te nessa situação - Disse Humberto.

- Não te preocupes meu amor. Eu tenho a minha independência e não tenho direito a nenhuma parte nos bens dele nem preciso. Nem isso me prende a ele! Se ele te enganou tem de pagar por isso. Para além do que, tu vais ter de comprar a parte dele na empresa. Os documentos apenas vão ajudar na negociação, tornando o valor mais objetivo e a saída dele inevitável. – Disse ela.

A ingenuidade é uma das características das pessoas apaixonadas e Juliana estava definitiva e perdidamente apaixonada.

Nessa noite Vitor decidiu não ir para casa e foi jantar a um restaurante onde era cliente habitual. Quis o destino que se cruzasse com uma amiga da filha mais velha. Vitor tinha dois filhos, resultantes da sua primeira união, mas não tinha conseguido convencer a segunda mulher a dar-lhe filhos e isso era uma barreira no seu relacionamento. Quando chegou a casa Juliana estava cansada mas feliz. Tão feliz que acedeu a ficar um pouco à conversa com ele.

- Sabes quem encontrei ao jantar? - Perguntou ele.

- Quem?

- A Cristina Benito, a amiga da minha Ana. Agora imagina a coincidência, ela está de casamento marcado com o meu sócio Humberto?

- O que? - Perguntou Juliana, num grito, ao mesmo tempo que dava um salto no sofá.

Vitor contou todos os detalhes da história. Aparentemente, Humberto ia vender a sua participação na empresa e ia juntar-se ao pai de Cristina, no Porto, onde planeavam desenvolver um negócio qualquer. Juliana tinha ficado muda e estava branca como a cal. O marido ao vê-la nesse estado ficou preocupado e ela num momento de raiva e fraqueza contou-lhe tudo. A discussão que se seguiu foi muito feia e violenta, recheada de acusações mútuas, mas depois de dizerem tudo o que lhes ia na alma, conversaram de forma adulta, pela primeira vez desde o casamento. Surpreendentemente a noite terminou com os dois amando-se como nunca se tinham amado! 

Entretanto, Humberto dormia tranquilamente sem sequer imaginar que na calada da noite se preparava a vingança. Esta seria servida de forma fria, impiedosa e de consequências violentas.

Dois dias depois Juliana entregou a Humberto os documentos acordados e este iniciou o processo formal para tentar espoliar o sócio, tudo num ambiente cordial. Ao mesmo tempo, Vitor  convidou-o para uma churrascada em sua casa, no dia seguinte, sábado e este aceitou pendurando nos lábios um sorriso trocista. Mentalmente visualizou o quão divertido seria estar em casa deles sem que estes imaginassem o golpe que preparava. O que ele desconhecia era que Humberto não só sabia de tudo como tinha ainda conhecimento do desfalque que ele vinha fazendo, nos últimos dois anos. Num momento de entusiasmo Humberto tinha aberto o armário dos esqueletos a Juliana!

Decorrida uma semana a polícia judiciária, acompanhada dos fiscais das finanças, apareceram na empresa e Vitor foi intimado a responder a uma série de acusações. Humberto estava ao lado deles, funcionando como delator do sócio e alimentando a acusação com informações que pensava serem relevantes para implicar o sócio na fraude de que era acusado. Humberto tinha conseguido colocar o sócio em maus lençóis!

A reviravolta aconteceu quando chegou o advogado de Vitor. Este tinha preparado convenientemente a sua defesa sem denunciar o seu jogo. Ao fim de poucas horas tornou-se evidente que os documentos fornecidos por Humberto à judiciária eram falsos e ficou ainda claro que este tinha desfalcado a empresa em quase dois milhões de euros.

No fim do dia Humberto tinha perdido tudo o que possuía, o amigo, a mulher, a amante, a fortuna e até a liberdade.



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