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O IRMÃO (segundo momento)










 O IRMÃO (segundo momento)



Os seus últimos pensamentos foram tomados de assalto pelo Furtivo. Isso não era propriamente novidade porque a recordação o trespassava com frequência. Fechou os olhos na tentativa vã de afastar o pensamento que o sufocava. O efeito alcançado foi exatamente o oposto. O corpo estremeceu e ele engoliu em seco, tal era o impacto daquilo que via de olhos fechados. O Furtivo estava ali, de pé, à sua frente. A vegetação rasteira e o arvoredo, iluminados por um sol tombando para o ocaso, emolduravam a imagem. Era sempre assim a forma como recordava o capitão da UNITA: o rosto tranquilo, um sorriso franco e um olhar que transmitia o mesmo grito que os braços estendidos. «Vem!». O pensamento divagava livre, sem controlo! «Tínhamos a mesma mãe.» Levou as mãos ao peito que explodia de dor. «Eu matei o meu irmão!». Os olhos turvaram-se de lágrimas e o grito da águia ecoou no seu cérebro. Ele não viu o seu voo rasante, nem o bando de pombos que levantou voo assustado, deixando nas garras da águia um irmão inocente. Não viu o tremor das árvores, nem a vergonha do sol, escondendo-se atrás das nuvens, apenas sentiu a sombra que descia sobre si. Quando os olhos secaram ele ouviu o estampido e sentiu o peito estilhaçar-se. «Amanhã eu gostava…». Não existia amanhã.

(baseado num texto de José Eduardo Agualusa)


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