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A GUERRA


A GUERRA 

 No derradeiro momento. Na hora mais solene. O pensamento foi para o jovem que matou no Bié. Foi o seu primeiro morto. Não, foi o seu único morto! À medida que o paraquedas se aproximava de chão firme, descido do céu, Manuel Jove Antequera, um major paraquedista cubano teve a visão do inferno. O chão pejado de corpos desfeitos, emanava um cheiro intenso e incomodativo. Por entre os corpos inertes o blusão que ostentava as divisas de coronel ganhou vida. No meio do fumo um sorriso e uma mão que voava para o bolso interior do blusão. Ele disparou à queima-roupa. O jovem coronel tombou para o lado com os olhos arregalados e ostentando a cigarreira na mão. Morreu aconchegado no seu colo, sorvendo o cigarro que Manuel lhe colocou nos lábios. Uma semana depois, o paraquedas, danificado pelo fogo inimigo, não o conseguiu suster. Manuel caiu em cima de uma árvore que lhe salvou a vida, deixando-o estropiado. Fraturou umas quantas costelas e um braço. Perdeu uma perna e a mobilidade, ao danificar a coluna. Perdeu também a mulher, uma Cabo Verdiana, bela e airosa, que o foi visitar ao hospital militar de Luanda, mas cujo sorriso morreu à entada da porta do quarto. «As minhas mãos são para agarrar o volante de um carro e não uma cadeira de rodas» Disse ela sem papas na língua. Manuel Antequera introduziu o silenciador da pistola na boca e ironicamente o seu pensamento voou para o coronel. Gostava de o ter conhecido melhor. Gostava de ter privado com ele. Ele ia descer ao inferno. Talvez lá se encontrassem e se pudessem conhecer. “Não devo acabar com a vida» Pensou. «Qual vida?» Interrogou-se. O seu corpo era mais um que fazia parte da sementeira. A sementeira da guerra! Um estampido. Milhares de imagens em frações de segundo. Um corpo inerte.

(baseado num texto de José Eduardo Agualusa)

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