Onze.
Quantum mutatus ab illo!
O dia seguinte,
à excepção das refeições, passei-o a tirar notas no diário. Isso levou-me algum tempo por causa das polaróides que acrescentei para ilustrar
melhor o estado do meu estado. Fotografias de todos os ângulos. Cronemberg
fotograma a fotograma. Era fantástico ver as
fotografias assim espalhadas
no chão da sala. Absolutamente natural, sem corantes nem conservantes. O que se tornava pecaminoso era o meu humor. Nem eu próprio o aguentava. Tentava controlar-me mas tudo o que conseguia era provocar esgares que me irritavam tanto como os gemidos histriónicos que me escapavam por entre os lábios e que eu sentia retorcerem-me a cara.
Ordenei as fotografias e colei-as num caderno de capas negras e duras acrescentando a data e uma descrição
mais ou menos tosca. O que havia para ver estava à vista. Escrevi
a data em letras
de máquina e pus o caderno dentro
de uma pasta: Face
esquerda. Face direita. Frente. Legenda quase adequada - o sonho impossível
de Tod Browning.
O mundo encerra um número ilimitado de combinações. Desde a loucura até à loucura.
Mas não era disso que se tratava aqui. Talvez
com Gustav Mahler de comboio. No Irlanda-Mauritânia. Prados
verdes. Passagem pela planície
de Ampurdán com Dali e Gala a acenarem da casa de Port Ligat, ou Cadaqués,
não me recordo onde os vi. Areias luminosas. O Sol a bater escaldante nas polaróides. Mas não aqui. Faltava acrescentar as notas. A descrição
possível do improvável. O CD continuou. A Terceira
no prato 1; o ‘Langsam’ à espera no 2. Seleccionei a função Repeat all. Ía ser assim a tarde toda. ‘Bimm Bamm, Bimm Bamm...’. Se um dia me
for, que me vá assim.
Voltei a olhar-me no espelho enquanto
lavava as mãos. Confirmei, pela segunda
vez, como eu, naquele momento,
dependia mais do meu aspecto
do que daquilo que era suposto
ser capaz de fazer
e para o qual, exclusivamente, me pagavam.
Era mesmo assim, “Bimm Bamm, Bimm Bamm...”.
Quando arrumei a pasta junto do computador, cheguei a pensar seriamente na causa daquilo. Seria inédito?
Já teria ocorrido? Talvez a alguém tão escrupuloso
quanto eu que ocultou a sua
monstruosidade ao resto do mundo. Era-me
quase impossível qualquer conjectura naquele momento. Que podia eu saber? Foi numa
noite, com Dante, Borges e um desejo vil. Nada mais. Haveria ali o dom divino?
Não quis pensar mais nisso.
Já com a noite perto da varanda comi uma lata de milho doce Heinz e bebi uma
cerveja Guinness. Apenas os verdadeiros amantes Guinness a podem beber em
casa. Os procedimentos devem
ser precisos para não tornar a melhor cerveja
do mundo numa mijoca
preta sem vida. Enquanto
lanchava, recebi um e-mail do escritório, depois um fax e, por fim, uma mensagem no gravador. Tudo do dono da revista.
O senhor director, editor e presidente que assinava documentos importantes com
canetas feitas por medida. Talvez um dia vos conte a história. Não tenho qualquer simpatia por esse cabrão que todos os meses me põe um balúrdio no banco. Menos ainda depois do que aconteceu a Jean-Pierre, um velhote francês
que trabalhava no departamento de segurança.
Aturo-o por causa da filha, a Catarina, e porque me dá
um certo gozo obrigá-lo a aturar-me a mim. Ele sabe-o, mas é um animal e, sendo eu o Sr.
Prof. Doutor, o menino-prodígio da casa, ainda não teve tempo para endireitar a espinha. Nessa tarde eu também estava sem tempo para ele. De qualquer
forma, lembro-vos, era segunda-feira e eu tinha ainda vinte e quatro horas para entregar as
provas, corrigidas e anotadas. As correcções, já eu, entretanto, as tinha feito, e as notas podiam muito bem sair em anexo, se bem que, nos livros que leio, as prefira em rodapé. É verdade,
até eu tinha direito à preguiça em todas as frentes. A imobilidade total.
A imobilidade total. Curioso.
Nunca chegou a passar-me
pela cabeça. A esta hora
até os senhores se devem ter já perguntado se eu não me preocupei com a possibilidade de morrer ‘daquilo’.
Que não morri, é óbvio. Quanto a considerar a possibilidade de, bem, simplesmente não me ocorreu.
Sentia-me mais um Quasímodo equipado com HB e Armani.
Não. Nunca me ocorreu. Na altura em que dei conta do que se
passava apenas me preocupou
a minha imagem e depois já devia ser tarde demais para a coisa se tornar letal. E, no fundo, eu sentia-me
bem. Já o disse e reafirmo-o,
eu sentia-me bem. Preocupava-me
mais como enfrentar a vida. Esta vida que se estendia à minha frente sem que eu tivesse movido um dedo por ela. Eu sou imortal.
Esta era a minha maior angústia.
Como suportar assim a eternidade.
Entretanto, outra Guinness. E outra, e várias preparadas ao mesmo tempo e bebidas
ainda mais rapidamente. As latas amontoadas na mesa pequena
ao pé da varanda. Esgotado o que tinham dentro, veio outra coisa. Se já viram uma lata Guinness
devem ter reparado em dois números,
8º e 11,5%. Se já beberam Guinness depois de
uma hora passada pelo frigorífico e vestida numa caneca grossa de vidro sabem
o que
esses números significam. Eu deixei de o saber meia hora depois. Novamente abertas as portas da percepção, voltei a sentir-me
o senhor do mundo e despedi-me
da gravidade física que me prendia ao chão. Os níveis de consciência clarificaram-se até ao absurdo
e a realidade tornou-se complexa
demais para que eu a pudesse suportar sozinho. Da caixa de discos saltou o vinil da família Stone e a dança começou.
O Sr. Sly iluminou-me e deu-me energia
suficiente para esmagar um elefante.
Estava na altura de enfrentar os meus rins. Bexiga.
Uretra, e por aí fora sempre a descer. Novamente - estava a tornar-se uma verdadeira obsessão
- passei pelo espelho da casa de banho. Voltei a olhar-me
olhos nos olhos.
O Sr. Sly tocava na sala. Não se pode dizer que tivesse
sido um tipo bonito. Não na minha opinião de heterossexual com algum
sentido
de
estética
masculina.
Provavelmente, estarei enganado. Mas estava ele na sala e eu, por acidente, de frente para o espelho. Bêbado.
Completamente bêbado.
Embriagado. Ébrio. Em suma,
bêbado que nem um cacho. Como nunca, devo dizer-vos, senti o estado em que estava. E chorei. Chorei porque apenas então a minha alma se deu conta do corpo em que
estava metida. Soube naquele
momento. Já não era o eu racional, mas uma qualquer parte oculta e vigilante que impunha a sua autoridade obscura e sem limites.
De novo, a garra afiada que não conhece contemplações e que recusa a análise antes de destilar o pânico frio e delirante
veio cravar-se-me no peito. Como o soube naquele instante. Eu rumava sem norte e estava já perdido
de toda a razão. A espiral
era toda a descer e os gemidos
na sala eram notícias da minha perdição. Arrastei-me para a sanita com a carapaça enfiada até ao pescoço e mijei tudo o que tinha para mijar, enquanto
que quase tinha
forças para chorar. Depois,
não sei o que aconteceu. Sei que no dia seguinte acordei
não na cama mas no sofá, enrolado
num cobertor e numa
toalha húmida e sem o humor insuportável da tarde anterior; sei ainda que pela
noite fora
despachei uma garrafa de Porta dos Cavaleiros onde anotei no rótulo
“Quantum mutatus ab illo!!!”.
De facto, como só então me dei conta.
Doze.
Ser um zero à direita. Sem vírgulas.
Tenho 29 anos. Doutorado
aos vinte e sete com uma tese sobre Berkeley. Solteiro. Amo os meus pais e eles não me amam apenas por ser o
único filho que têm. O meu nome é Andrés Filip; a maior parte do tempo acho-me uma merda, o resto do tempo, um
génio. Adoro mulheres,
cerveja preta e Gustav Mahler. Apaixonei-me uma vez na vida, mas tarde demais. Gosto de ajudar os outros e ainda pretendo um dia ser feliz. Eu
- tudo o resto é acessório.
Eu. Duas semanas atrás. Sem tempo para o senhor director, pai de uma menina mimada que conseguia ser mais perversa
do que ele; o senhor director que estimava os
meus oitenta quilos a peso de ouro. Eu não precisava
disso. Não devia precisar disso. São os confortáveis sucessos que enterram os homens. Hábitos terríveis que se cultivam como virtudes. Não. Fui enganado.
Oitenta quilos e deixei que me empurrassem para trás. Enganado. Eu não era nada. Estes acontecimentos fantásticos mostravam-me isso mesmo. A vida
deixava de me poupar ‘às coisas mais obscuras’.
Tinha acabado de pedir mantimentos para vários dias. Haviam-se
acabado no dia anterior com as últimas caixas de cerveja Guinness.
Desliguei o telefone e o computador. Agora, era de mim que se tratava. Não podia continuar a adiar o futuro que me
restava ad aeternum, como uma representação nos poucos espelhos que me restavam.
Pensei em ligar para os meus pais, mas a angústia que eu sabia que lhes iria
causar tudo aquilo seria para mim ainda mais insuportável do que todas as desesperações que me haviam trespassado
nos últimos dias. Era impensável. Como iria eu explicar-lhes tudo aquilo? Explicar-lhes que, subitamente,
algo me fazia falhar uma vida
já de si falhada. Ainda que não soubesse o quê.
Fiz a lista das minhas necessidades quase decalcada da anterior com duas ou três
excepções; juntei-lhe também uma escova de dentes. Pedi que as coisas me fossem deixadas à porta com o código de pagamento
da web que entretanto eu perdera.
Eu não queria confrontos desnecessários.
Treze.
O artigo estava entregue
Dia 19. O artigo estava entregue. Apesar de tudo, o artigo estava entregue.
Algures a meio dessa terceira
semana. Eu estava a ligar o modem para fazer qualquer coisa quando reparei numa folha a uns dois metros do fax, debaixo
da minha chaise-longue. Dizia apenas: ÓPTIMO,
FANTÁSTICO, ATÉ SEGUNDA.
Era por isto que eu gozava de toda a liberdade
do mundo. Todos os meses me saía um óptimo,
fantástico, até segunda.
Já devia estar ali desde o dia anterior. Era de Gustav, um
publicitário espanhol que trabalhava no departamento de marketing e que na minha
opinião percebia mais de literatura
do que todo o conselho editorial da revista, consultores e demais “oculinhos” com aspecto de cerzideiras, sem ofensa para as cerzideiras. Pesava nisto a paixão ainda pura que ele tinha pelos livros.
A mesma paixão
que o levava a surripiar e ler os meus artigos
antes dos ditos
censores. Um tipo à
maneira. Com umas camisas um bocado maricas,
mas à maneira.
Passei o resto
da semana a ver televisão, o que pode parecer-vos uma forma
improcedente de lutar pela minha integridade intelectual, ou qualquer
outro tipo de integridade. De facto, não é.
E posso
argumentar como os antigos
romancistas, vejam: da mesma forma que o médico receita o repouso para o corpo cansado
e não a actividade física, também o alheamento de uma fonte de preocupações constituirá melhor medicina do que a cisma, e por aí fora. Garanto-vos, a única coisa que me passava pela cabeça era ficar ali, em frente da televisão, a zappear o cérebro.
Quando não estava a ver televisão,
estava a dormir, a comer, no quarto de banho
em frente ao espelho, vigiando-me, ou a viajar
na net, alturas
em que aproveitava para procurar casos
semelhantes ao meu; esta última actividade dava-me grande prazer; é que, tendo-me ligado há poucos meses, fiz já grandes amigos. Havia a Kate,
de Little Rock, Arkansas, 1 metro e 70, 58 quilos, medida 36, loura e olhos azuis; eu continuo a desconfiar que é um homem de barba rija. Em Paris, estava o Eric, advogado, 35 anos. Costuma
deliciar-nos com detalhes perversos
que usa nas defesas. No início não nos era muito simpático, no entanto, um dia em que chegou de férias,
não me recordo onde, contou-nos uma história por que passou e deixou-nos a todos,
tal
a emoção que nos causou,
convictos de que tinha coração,
apesar de tudo.
Talvez mesmo igual ao nosso, com dois ventrículos e duas aurículas.
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