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O FISCO, O BURLÃO E O CONTRIBUINTE





O FISCO, O BURLÃO E O CONTRIBUINTE

Como de costume, Alfredo havia deixado alguns dias de férias para poder gozar o período que mediava entre o Natal e os Reis, no sossego de sua casa. Sentado à lareira, na sua casa de fim de semana, ele gozava o repouso merecido. Alfredo tinha trabalhado o ano todo com afinco e tenacidade, ultrapassando com eficácia todos os obstáculos que lhe surgiram, o que tonou possível transformar um ano, de uma forma geral complicado, num período de prosperidade para a sua empresa.

Alfredo era um homem íntegro, que pautava a sua vida por um conjunto de princípios éticos que faziam dele um homem respeitado e respeitador. A cautela e o acerto com que conduzia os negócios da empresa e os pessoais permitiam-lhe gozar aqueles momentos com uma tranquilidade imperturbável, que foi bruscamente interrompida por várias pancadas fortes na porta. Quando a abriu deparou-se com um agente de execução que, acompanhado das autoridades, vinha reclamar a posse daquela casa, no âmbito de um processo que envolvia dívidas ao fisco, por parte de um tal Alfredo Ribeiro Martins, cuja residência oficial era a casa onde se encontrava. Apesar da coincidência de nomes, a pessoa notificada tinha um número de contribuinte distinto do dele em apenas um algarismo.

Aparentemente, alguém com o mesmo nome, ou agindo falsamente e com um número de contribuinte quase igual, dera aquela morada como residência oficial e conseguiu convencer a autoridade tributária de que era proprietário da mesma, tendo aceite entregá-la para pagamento de dívidas fiscais, na fase final do processo de execução. De forma descuidada e com total falta de profissionalismo, as autoridades fiscais aceitaram como boas as declarações do burlão, sem dar a devida importância à diferença dos números de contribuinte, tendo aceite esta como um erro.
Apesar de se ter apercebido da existência do erro, o executor prosseguiu com o processo, alegando que Alfredo iria ter de contestar o mesmo pelas vias legais ao seu dispor. Assim, de forma inesperada, injusta e injustificada, ele foi colocado no meio da rua com a família, tendo regressado a Lisboa, onde tinha a sua residência oficial e tendo iniciado um processo de contestação da execução. A ânsia de obter receitas dos contribuintes, devidas ou não, tinha levado a Autoridade Tributária a cometer vários erros de notificação que permitiram que o processo chegasse à fase de execução, sem que o verdadeiro proprietário da moradia disso tivesse conhecimento.

A paz e tranquilidade das férias do Natal e fim de ano tinham sido destruídas e aquele homem viu-se a braços com o ónus de ter de provar a falta de fundamento de uma execução, resultante de uma burla, apenas possível devido a um conjunto de erros e descuidos da Autoridade Tributária.
No meio de tudo aquilo ele deu consigo a questionar alguns dos princípios que sempre haviam norteado a sua ação, perguntando-se:

Então eu pago impostos para sustentar uma organização que pactua com burlões, para roubar pessoas honestas, quando era sua obrigação fazer o oposto?

Esta é uma história fictícia, mas baseada em factos bem reais que nos devem levar, por um lado, a ficar atentos, por outro, a refletir sobre o que podemos fazer para mudar este estado de coisas!



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