Avançar para o conteúdo principal

O SONHO





  O SONHO


São nove da noite. O dia de trabalho foi cansativo e ao caminhar apressado para a entrada do metro do Saldanha a minha mente está fixa em casa onde desejo chegar o mais rápido possível para me livrar do fato e da gravata que me fazem lembrar o árduo e desgastante dia de trabalho que tive. Mentalmente falo comigo próprio como se existissem dois Eu.
- Eu que pensava que quando chegasse a esta idade e ocupasse a posição que ocupo iria ter mais tranquilidade em termos profissionais!
- Pois! – respondeu o meu outro eu – do jeito que isto vai lá para os setenta anos ainda estás a trabalhar dez horas por dia!
O meu nome é David e sou um executivo, que trabalha num grupo financeiro e ultrapassei a barreira dos cinquenta anos recentemente, apesar de manter uma frescura e uma pujança física que faz inveja a muitos homens de quarenta anos. Em termos profissionais já atingi o topo da carreira há alguns anos atrás, mas a vida pregou-me uma partida e recentemente tive de recomeçar a vida profissional alguns níveis abaixo do topo.
O frio parecia querer rasgar-me o rosto e o vento teimava em entrar pelos intervalos dos botões do sobretudo, que tinha abotoado até ao pescoço. Era inverno a as baixas temperaturas que se faziam sentir pareciam quer fazer-me recordar isso a todo o custo.
A entrada no túnel do metro proporcionou-me um aumento considerável do nível de conforto. Apesar disso, apenas quando cheguei junto da linha é que deixei de sentir o ar frio da rua.
Após alguns momentos de espera o metro anunciou a sua chegada com uma entrada ruidosa, que foi acompanhada de um aumento do volume da música que se faz ouvir nas estações para embalar os nossos pensamentos e nos dar uma sensação de conforto, frequentemente desmentida pelo apinhar de pessoas, cotoveladas e empurrões que tantas vezes experimento, sobretudo nas horas de ponta.
Àquela hora da noite a estação estava quase deserta e a meia dúzia de pessoas que aí se encontrava estavam absorvidas pelos seus próprios pensamentos e pelo semblante carregado era possível adivinhar as preocupações que lhes iam na alma e que nos últimos tempos haviam tomado conta da alegria e boa disposição dos Portugueses.
O metro parou e eu entrei.
Apesar de existirem muitos lugares vagos mantive-me de pé, encostado às costas do assento que ficava mesmo junto à porta de saída. À minha frente ficavam os assentos virados para o meio da carruagem e num dos lados encontravam-se sentadas duas mulheres de raça negra, embora com claros vestígios de miscigenação. Elas podiam ser mãe e filha mas apesar da diferença de idade ambas possuíam um corpo esbelto. Do outro lado, mesmo em frente delas encontrava-se um homem, que devia andar na casa dos 30, e de especto descuidado, quase aparentando ser um sem-abrigo, mas com um porte atlético considerável. Pela conversa das mulheres pude perceber que ele não tirava os olhos da mais nova e que isso a estava a incomodar.
- Não sei o que este individuo pensa ou quer, mas com aquele aspeto tão porco só me mete nojo. – Disse a mais nova.
- Olha que ele é bem bonito. Se tomasse um banho, fizesse aquela barba e vestisse umas roupas lavadas ia ter muitas mulheres babadas à sua volta. – Disse a mais velha.
- Pois mas eu prefiro homens mais velhos e que saibam cuidar da sua aparência sem que eu tenha de fazer de mãe deles. – Disse a mais nova, olhando para mim de forma intencional.
- Eu sei Rita. Tu estás muito mais virada para o senhor da gravata. – Disse a mais velha, num tom mais alto, ao mesmo tempo que me piscava olho.
Aquilo apanhou-me de surpresa e a única reação de que fui capaz, foi o esboçar de um sorriso tímido que foi o suficiente para fixar a atenção da mais nova. As mulheres sempre me disseram que eu tinha um sorriso encantador e que quando eu sorria era capaz de fazer derreter uma montanha de gelo. Apesar de pensar que tudo isso não passava de falsos galanteios, parece que com aquela jovem estava a funcionar, pois ela não conseguia tirar os olhos de mim.
- É verdade Salomé, eu com o senhor de gravata era capaz de ir até ao fim do mundo. – Disse a mais nova, pronunciando as últimas palavras com os olhos fixos em mim e olhando-me sem pestanejar.
Subitamente, fui invadido por uma vontade louca de me sentar ao lado daquela mulher, a abraçar e de beijar os seus lábios carnudos que se entreabriam para, mim num deleite extasiante. Mas por mais que a minha mente insistisse nessa ideia o meu corpo não se mexia, parecendo estar preso ao assento onde me havia encostado.
Entretanto, o homem que estava sentado no lado oposto da carruagem levantou-se, aproximando-se das mulheres e disse, mostrando os seus dentes amarelos:
- Olha princesa se o que tu queres é uma viagem pelo mundo do prazer, eu posso proporcionar-te algo que aqui o velhadas nem sequer consegue imaginar, quanto mais fazer.
Mal tinha acabado de pronunciar estas palavras o comboio parou e ele saiu.
Eu estava completamente siderado e embora sentisse que estava presente naquela cena parecia que o meu corpo se comportava como se eu fosse um mero espectador de uma pelicula qualquer, que por mais que quisesse não conseguia entrar na tela para participar na cena. Quando tentei articular algumas palavras os meus lábios mexeram-se mas não produziram qualquer som. De forma desesperada lutei com o meu corpo para me mexer e aproximar daquele olhar sedutor e convidativo, que me lançava um convite irrecusável. Apesar de usar todas as minhas energias o corpo não se mexeu e eu saí de dentro dele para me olhar a mim próprio com espanto e perfeitamente incrédulo.
- Como é possível que tu não te mexas! Anda! Vai ao encontro dela. - Dizia eu, invetivando o meu próprio corpo.
- Sabes o que aconteceu hoje à minha colega que trata dos quartos do piso quatro do hotel? – Perguntou a mais nova, falando com a mais velha, por entre os olhares que não parava de me dirigir.
- Qual foi o disparate que ela fez? Essa não é aquela a quem acontecem todos os acidentes? – Perguntou a mais velha.
- Desta vez ela não foi culpada. Imagina que quando estava a fazer uma cama pisou em cima de um carregador de um telemóvel, que estava quase debaixo da cama e o estragou.
- Mas isso foi um acidente! – Retorquiu a mais velha.
- Pois mas o cliente reclamou e o chefe dela diz que ela tem de pagar um novo e da mesma marca, o que lhe vai custar €250. – Disse a mais nova.
- Mas como é possível um carregador custar isso tudo? Isso é quase o ordenado dela, não é?
- Pois é. Mas o pior é que só depois de ela recusar ir jantar com o chefe é que ele lhe disse isso. Ela não quer que isso se saiba, mas quando me contou eu disse-lhe logo que se fosse comigo fazia queixa dele. – Voltou a dizer a mais nova.
- Eu também acho que ela devia fazer queixa. – Disse a mais velha.
- A verdade é que se ela fizer queixa, mesmo tendo razão vai perder o emprego. É por isso que eu quero um homem experiente ao meu lado para me proteger, para além disso os cabelos brancos deixam-me de tal forma excitada que eu tenho que fazer um esforço enorme para me controlar. – Disse Rita, sem tirar os olhos de mim.
Nesse momento como que por milagre consegui arrancar o meu corpo da prisão a que estivera sujeito e dei dois passos em direção a ela, possuído de uma excitação que fazia o meu coração bater a um ritmo impróprio para cardíacos. A antecipação do prazer de beijar aquela boca era indescritível, tal era a intensidade com que se fazia sentir. Quando isso aconteceu o comboio travou de forma brusca e eu levantei a cabeça para olhar para o exterior. Nesse momento rodei sobre mim próprio e acordei deitado na cama ao lado da minha mulher!





Comentários

Mensagens populares deste blogue

O SEMÁFORO

O SEMÁFORO Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina. No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL As palavras não me ocorrem perante a imensidão do sentimento que me invade o peito. Digo-te aquilo que adivinhas pois os meus olhos e os meus gestos não o conseguem esconder. Amo-te! Amo-te desde o primeiro dia em que entrei na empresa e tu me abriste a porta. Os nossos olhares cruzaram-se e, por instantes, olhamo-nos sem pestanejar. Senti que tinha encontrado a minha alma gémea. O meu coração acelerou quando me estendeste a mão e te apresentas-te. Apenas uma semana depois soube que eras casada. Chorei a noite toda. Não conseguia aceitar que não fosses livre para poder aceitar o meu amor e retribuí-lo como eu tanto desejava. Desde esse dia vivo em conflito: amo-te e por isso quero estar a teu lado, mas não suporto estar a teu lado, sem poder manifestar-te o meu amor. Quero fugir dessa empresa, não quero mais ver-te se não te posso ter, mas não consigo suportar a ideia de não te ver todos os dias. Tu és o sol que ilumina o meu dia, mas és

O BILHETE

O BILHETE Com os cadernos debaixo do braço ele subiu a escadaria do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real. Vivia numa aldeia próxima e tinha vindo a pé. Tinha vários irmãos e como estavam todos a estudar, tinham de poupar em tudo o que era humanamente possível. Já estava com saudades das aulas! Era irónico que tal fosse possível pois os jovens preferem as férias. Não era o seu caso. Tinha vindo de Angola e, por falta de documentos, tinha ficado um ano sem estudar, trabalhando na quinta, ao lado do pai, enquanto os irmãos iam para as aulas. Estudar era, portanto, a parte fácil. Procurou a sala onde a sua turma tinha aulas: Ala este, piso zero, sala seis. Filipe era um aluno acima da média, mas a sua atitude era de grande humildade: esperava sempre encontrar alguém melhor que ele. Dado que tinha ficado um ano afastado da escola estava com alguma expectativa em relação à sua adaptação, mas confiante nas suas capacidades. Não tardou em destacar-se e no fim do primeiro tri