Avançar para o conteúdo principal

O IRMÃO (primeiro momento)




O IRMÃO (primeiro momento)



Jemuel Nebunga recusou a venda. Ainda muita coisa havia de acontecer e ele queria ser testemunha viva. Com as mãos amarradas atrás das costas olhava para o local onde se encontrava o jovem major, que comandava o pelotão, sendo invadido pela mesma sensação de familiaridade que o assombrava sempre que olhava aquele rosto. Pensou no jogo de xadrez que ganhara na noite anterior «Porque fora tão fácil ganhar?» interrogou-se. «Aquele movimento da rainha foi um sacrifício maternal» disse, em voz alta, olhando-o nos olhos. Como resposta obteve uma contração dos maxilares e um olhar vacilante, que durou apenas uma fração de segundo. O furtivo, nome que fazia jus à sua capacidade de se infiltrar nas hostes inimigas, com era conhecido o Jemuel, Capitão da UNITA, fora capturado na batalha da tomada do Huambo, apenas porque ficou preso pela derrocada de um muro. Os ferimentos ligeiros pesavam-lhe menos que o orgulho ferido, mas não podia queixar-se do tratamento que lhe tinham dispensado. Era como se esperassem algo em troca. Ele agradecia. Enquanto recuperava matava a ociosidade num tabuleiro de xadrez. A expressão enigmática enganava os adversários e iludia-o a ele, era como se estivesse longe daquele lugar. O alarde dos dois gipes, ao travar frente à caserna, fê-lo levantar a cabeça e olhar a floresta que os rodeava. «A tarde começa de uma forma auspiciosa!» murmurou. Um bando de pássaros negros levantou voo assustado. «Será um presságio?» pensou. 

«Vamos» ordenou o soldado, com voz suave mas firme. 

Entrou no jipe sem resistência nem entusiasmo. Os quatro homens que acompanhavam o major projetavam a sua musculatura no espaço, parecendo não caber dentro do uniforme e as feições duras deixavam adivinhar aquilo a que vinham. Ele olhou para fora do gipe e soube que não mais se sentaria à frente do tabuleiro de xadrez. Deixou-se conduzir apático como quem faz uma viagem desinteressante. «Assim é a minha Viagem.» pensou. «Não era bem isto que tinha imaginado». O silêncio, reconfortante no início, tornou-se ensurdecedor, mas antes que fosse quebrado chegaram a uma clareira, com uma paliçada de madeira num dos extremos. As viaturas imobilizaram-se e o único som que quebrou o silêncio foi um longínquo troar. Eram os sons da guerra.

(baseado em texto de José Eduardo Agualusa)


Comentários

Mensagens populares deste blogue

O SEMÁFORO

O SEMÁFORO Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina. No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca ...

A ESPIGA RAINHA

A ESPIGA RAINHA O outono já marcava o ritmo. Os dias eram cada vez mais pequenos e as noites mais frias. O sol pendurava-se lateralmente no céu e apenas na hora do meio-dia obrigava os caminhantes a despir o casaco. Na agricultura, a história era outra: as mangas arregaçadas, aguentavam-se até ao fim do dia, graças ao esforço físico. Outubro ia na segunda semana e esta previa-se anormalmente quente para a época. Apesar dos dias quentes, os pássaros já procuravam abrigo para passar o inverno e as andorinhas fazia muito que haviam partido. Na quinta do José Poeiras era altura de tirar o milho dos lameiros. A notícia percorreu a vizinhança como um relâmpago: era a última desfolhada, portanto havia lugar a magusto e bailarico. José Poeiras era um lavrador abastado, mas isso não lhe valia de muito. As terras eram pobres e em socalcos e não lhe permitiam obter grande rendimento. O que lhe valia era a reforma de capitão do exército. Tinha ficado com a perna esquerda em mau estado ...

MUDANÇA

Caros seguidores, Por razões de eficiência e eficácia, decidi mudar a ancoragem do Blog, deixando O BLOGGER.COM e passando para o WORDPRESS. Assim, se quiserem continuar a seguir os meus escritos, agradeço que sigam o link em baixo  e façam clik na barra de seguir. https://opensamentoescrito.com/   Obrigado pelo vosso apoio que espero se mantenha neste novo formato. Cumprimentos