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Zero - O Romance

Zero

  


Autor: Paulo Amaral André







“Espero mudar totalmente e converter-me noutra pessoa, pois estou fartíssimo do Jorge Luís Borges.”


Jorge Luís Borges












Zero.



Non nova, sed nove ou qualquer coisa assim





“Desejei ser feliz como se não pudesse ser outra coisa.”


André Gide





Desculpem-me por começar desde o zero. Não é maneira de começar uma história. Supõem os tempos modernos que a coisa se inicie com meia dúzia de factos ou descrições que abram o apetite. Lamento decepcionar os senhores leitores, mas a coisa para o torto mais para a frente. Mas, para que não tenham dúvidas, digo-vos que o que aqui ouvirem e apesar de esta história não estar aparentemente dentro dos limites da verdade, tudo aconteceu de facto; aconteceu-me justamente a mim, o único de entre os não-eleitos a quem poderia acontecer. Tive apenas o cuidado de ocultar todos os nomes que se atravessaram no meu caminho sob pseudónimos toscos que fui buscar ao inconsciente, e que irão descobrir quando eu estiver absolutamente perdido. Também localizações geográficas, sítios e afins apenas têm verdadeiro significante na minha cabeça.
De qualquer forma, não se vejam obrigados a entender as páginas que vão seguir- se. O que é que podemos dizer uns aos outros? Pouco mais do que nada. Não se iludam, caros senhores. É  isso  que eu tenho para contar: nada de novo. Talvez vos agrade a forma. Ou talvez a achem tosca. Nil novi sub sole. O novo século está e esta história servirá melhor se vestida em boas capas de couro em mobílias de cerejeira.
   Aquilo que aconteceu naquela noite poderia ter dado em nada, significar nada, mas aconteceu-me a mim. Aqui está. Aconteceu-me. A mim. A mim, o ser mais importante do universo desde o ponto em que me encontro. Aconteceu-me enquanto ensaiava uns passos hesitantes por maus caminhos para me tornar numa melhor pessoa. Tudo isto numa noite na minha cidade. E eu até estava bem, não me podia queixar. Nessa altura, preparava uma recensão sobre os ensaios dantescos de Borges. Andava a juntar uns cobres para o meu último capricho. Desistira de escrever porque achava o acto em si mais feminino do que fazer croché. Revi todas as noites sentado em frente do computador a alinhavar palavras umas atrás das outras e achei o acto tão delicado que  transformava um gigante de dois metros a escrever por quem os sinos dobram no mais mariquinhas dos seres humanos. Comecei a lembrar-me do meu avô agricultor atrás de um arado e envergonhava-me sempre que pegava na Parker 21 para rabiscar umas frases. Por mais sofrimento que daí adviesse, não podia deixar de me sentir um fingido a fazer renda com os pensamentos. Virei-me para a crítica e uma editora aceitava-me como mais brilhante do que os autores em que eu descarregava fel mês após mês.
Foi ao fim da noite com o ar frio nos pulmões. Quase sol. Tinha sido mais uma daquelas noites. Noites em que as cores da vida resultam num outro tipo de existência. Sedutora, malévola. Com álcool a girar turbinas. anos que eu me alimento desses hiatos entre o ser e o nada para viver. Quando a escuridão rasga o dia e os contabilistas nos perdem de vista. Nessas alturas torno-me numa criança com vícios e muito dinheiro. Como todos os que encontro então, sou um morto-vivo por opção. Não agradeço o que me deixaram nem me preocupo com os que vierem depois. Sou um mimado que recusa qualquer encargo que possa tornar-me responsável. Nunca esperei nada da vida.
Mas não vamos perder-nos em angústias desnecessárias. É apenas de mim que se trata. Sentem-se. Se tiverem tabaco à mão, fumem à vontade. Eu estou a fazê-lo neste preciso momento. Nem uma página sai daqui sem um cigarro. Gostaria que fossem Luckies, mas acabaram-se ali em baixo na mercearia do senhor Almiro, esse personagem maior, mas que pela minha boca nunca saberão porquê.











Um.



Com o rumor da noite colado ao corpo





Seis e meia da manhã. Fim da noite. O ar frio nos pulmões. Quase sol. no caminho para casa, cansado, encontrei um velho com olhos à Peter Lorre sentado numa boca de água à beira do  passeio. Pus-me à conversa com ele. Mulheres. Bares. Noites para passar. tinham sido milhares. Noites que acabavam com os maços de cigarros vazios. não pertencia a este tempo. Estendeu-me uma garrafa com não sei o quê e enquanto bebíamos - a única coisa que me interessava àquela hora era atrasar a ressaca - falava de manhãs que ninguém via e como isso o irritava por ser um iluminado e estar na merda enquanto os outros dormiam em casas grandes e quentes. De vez em quando deixava a cabeça roçar o chão entre as pernas para se reerguer de seguida e engolir ar em grandes golfadas. não pertencia a este mundo sem alma. Isto, disse-lho eu, quase a sorrir e com uma pancadinha nas costas. Não gostou. Agora, apenas queria uma morte em paz. Sem agonias de última hora. Sem ressacas da vida. Nem dos acessos de génio. Nem da alma que arrastava atrás de si como um peso e que pensou um dia que poderia ser grande para  sempre. Em momentos de tentação. Assim que me tomavam, disse, rumava ao bar mais próximo e bebia até acabar à pancada com um filho da puta qualquer. Não nada mais triste do que estar à espera de ficar nos anais da história quando tanta coisa que pode satisfazer um gajo logo ali enquanto está vivo. “Sabe, eu não tenho jeito para esta vida. Estou farto de tipos que... tipos que não são mais do que eram à hora de nascer, que nunca criaram do nada e nãs são nada para além do que têm, é o que é, andam a foder o mundo para poderem ter um mundo melhor, é o que é, a inteligência a toda a prova, se as florestas fossem de plástico andavam a arrancar árvores para construir ventiladores de oxigénio”. O que está este cabrão para aqui a dizer?
Um gole de cerveja e abrimos um novo capítulo sobre os momentos. “Mas esses momentos  desapareceram, deixaram de me incomodar” - dizia. “Só me doem de noite. Depois, o Sol acaba sempre por nascer. Toda a vida tem sido assim. Tenho a coragem de recusar o génio. Não sei se o tenho, mas recuso-o todos os dias. Não sou como esses ratos das  capelinhas. Vivo. Um dia destes deixo a carcaça ao mundo. Mais nada. Há-de ficar arrumada num sítio qualquer com duas datas a pro- var que vivi.”
Havia qualquer coisa perto da verdade no que ele dizia; mas era a lata de cerveja que eu tinha acabado de tirar da máquina atrás de mim o que me interessava. Eu só pensava em adiar a ressaca para dali a dois anos.
Do outro lado da rua havia putas; mas eram como a conversa do Peter L., podia ser muito bom, mas não para hoje. “E agora não vale a pena” - continuou. “Quando chegamos a velhos essas coisas acabam por perder o cheiro. a ideia de glorificar uma mente genial no corpo de um velho dá-me vontade de vomitar. E não duvides que eu não o faço. Antes sonhava com tudo isso e como era bom mas, sabes, é o cheiro das coisas que realmente conta, é a Primavera que me enche os pulmões. Nas mulheres, então... nas mulheres... é sempre a Primavera que eu procuro no corpo das mulheres.” Comecei a pensar que o tipo se tinha esquecido de tomar a medicação e estávamos ali os dois a brincar à psicanálise. estava farto e comecei a levantar- me. Devagar. Pus a mão direita no chão.
Tinha sido mais uma daquelas noites onde se misturam gajos demasiado vivos com outros que ainda não deram conta que estão mortos. Uma noite igual a todas essas outras noites. Mas a ressaca iria ser pior. Senti-o. Não me estava nos ossos. “O corpo das mulheres é o mapa da minha vida, mas é o cheiro de todas as flores de todas as Primaveras que me conduz na procura das  mulheres desses corpos.” Levantei-me. Estou de pé. Abanei a cabeça. Estiquei as pernas. “Agora... Nada vale a pena. Nunca valeu. Fui bom demais. Deixei que me tirassem tudo.” Acendi um cigarro, vi-o procurar qualquer coisa nos bolsos e afastei-me com os olhos a arder. Acendiam-se luzes nos edifícios em volta e uns putos cantavam uma velha canção dos Velvet. “But one day she heard a New York station...”. Aquilo era mais do meu tempo do que do deles. Era de manhã e o Sol tinha nascido.
No fim da noite estava de rastos. Quis sentir-me morto e acabado. Apesar de tudo, o velho tinha-me ateado qualquer coisa na alma. Ou talvez fosse a cerveja branca que me estivesse a dar voltas ao estômago. Eu quase bebia cerveja preta por recei- ta médica. O Pol dizia-me sempre, foge da cerveja branca como diabo da cruz. Mas era fácil para ele dizer estas coisas a um desgraçado que depende de cerveja como os peixes da água. E quando não houver uma Guinness à mão senhor doutor? Não bebas. Vai à merda Pol. És tu e o velho. Os cabrões dos velhos que acabam sempre por saber tudo vinte ou trinta anos antes de termos consciência de como é tramado andar com um tubo ligado à pichota e um saco amarrado à perna, ou ter de substituir a anca por uma prótese de ferro fundido ou cimento armado. Vistas as coisas à distância, aquele velho, como muitos outros, não era estúpido. Não que eu me tivesse convertido à sua ladainha. Mas fiquei com uma sensação nas pontas dos dedos de que naquela noite qualquer coisa se estava a perder no universo. De forma constante. Como o mar desgasta as praias. Sem pressas. Alguma coisa se perdia e eu sempre prezei o instinto que me segredava ao ouvido coisas na forma de mil ciclos à espera de serem descodificados.
Mas não foi aí, porém, que o meu eu se transformou noutro eu. Tudo estava ainda por acontecer. Era a luz, aquela luz com que o velho se lavava todas as manhãs, que sabia a hora. Aquela luz iria abater-se sem piedade sobre os olhos que me vêem todos os dias no espelho grande da casa de banho. Eu não o sabia mas pressenti-o. Quando saí da casa de F. com a saliva de F. no meu pénis e o punho do marido no olho direito. F. foi uma verdadeira puta, como sempre. E o marido um homem. Como nunca, suponho. Eram duas ou três da manhã, a noite estava longe de acabar, e eu a calçar os sapatos sentado num relvado qualquer. Ainda não tinha acontecido o meu encontro com o velho, a lua conduziu o meu corpo pelas ruas e eu apenas tive de o seguir.
Quatro e tal da manhã. A noite é enorme mas a minha cidade é ainda maior. E aquela era, como diria o velho, uma noite por cumprir-se. Meia hora depois, estava à porta do único bar onde poderia ir parar naquele estado. GARFIL. O olho estava mal e a ficar cada vez pior. Praticamente não o abria. Entrei. Eu não estava nem que- ria estar melhor do que o olho. O olho, meus senhores, onde tudo começou para mim. O direito. Compus as lapelas do Hugo Boss antracite e entrei. Objectivo: Bloody, 1 metro e 95, magro mas com anos de ginásio, cabelo oxigenado, o barman eleito pelo melhor do meu fígado, o único que me abria através das entranhas o impreciso caminho da alma. Do melhor do meu fígado para o pior da minha alma encavalitado no shaker de Bloody. Com um bilhete de ida, apenas.
Apesar de mui nobre, o objectivo que me levou a subir a Rua da Atalaia e abrir caminho nas Portas Largas entre dezenas de gajos indiferentes às minhas necessidades primárias foi abortado em trinta segundos. A mãe do Bloody, cinquenta e nove anos, alta, elegante nos seus cinquenta e nove anos, olhos negros e o cabelo sempre apanhado num carrapito, andava mal coisa de meio ano; naquela sexta-feira sentiu uns calores na cara, quebra de tensão com desmaios e passou a noite nas urgências. Bloody, apesar de matulão, ainda vivia aos trinta e seis com a mãe que adorava e não saiu de ao dela. Como não ia ter ninguém para cuidar de mim, amuei e decidi passar o resto da noite na casa-de-banho, longe dos decibéis assassinos que faziam pular toda a gente numa violência artificial.
De qualquer forma estava eufórico e nada podia impedir-me de sentir a minha alma ali ao lado, à  espera. Peguei num rolo de papel higiénico, mergulhei-o em água, espremi-o e improvisei uma compressa. Estava decidido, passaria ali o resto da noite e beberia toda a cerveja que houvesse na máquina do lado esquerdo dos lavatórios. Graças a Deus havia litros e litros de Guinness à disposição. Caso contrário teria de me arrastar até à porta do lado e nunca se sabe o que nos pode acontecer na casa-de-banho das meninas do GARFIL. Sentei-me num banco alto e iniciei o fim da noite.












Dois.



O fim da noite...





Tipos que entravam e saíam. Não conseguia responder ao que me perguntavam. Estava a ficar cada vez mais bêbado. Demasiado bêbado. Eles também. Não lhes respondia mas ria-me com eles; ensaiava passos idiotas quando a música entrava com o movimento da porta. Dançava, cambaleava, ria-me com eles. Éramos todos camaradas sem o sermos. de saída, seis da manhã, passei pela pista onde quase enlouqueci com as luzes e as lolitas que dançavam como se estivessem a cumprir estágios para streapers do Crazy Horse. As mini-saias plissadas não cumpriam a função, ou cumpriam; pais que deviam ser presos por incitamento à pedofilia. Em casa ainda lhes sabia as bocas e os corpos de mulher desenhados em pele de bebé. Os corpos, o resto nem por isso, não me lembro. Terríveis lolitas, de todas as cores e tamanhos. Até hoje, nunca mais o síndrome de Mason me abandonou. Como é que tudo começou para o pobre? Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma  viagem pelo céu da boca... Pornografia do melhor que se fez.
Pois bem, seis horas; de saída, de novo a rua; nos olhos, o reflexo das luzes da pista, mais no esquerdo do que no direito, com as meninas no coração quase a saltar-me das calças. E depois o velho. Subtil. E depois tanta coisa que via e ouvia em off, sem interesse, e eu, ali, inexplicavelmente quase atento. Talvez a escutá-lo. “As coisas perdem o cheiro demasiado...” Qualquer coisa assim. Acendi um cigarro, afas- tei-me e deixei-o só, sentado no passeio com putas do outro lado. Tinha os olhos a arder. Era o Sol, a manhã tinha nascido e eu preparava-me para renascer com ela. “Miúdo”, era para mim, “tira duas cervejas e eu conto-te a noite que passei com uma tipa com idade para ser minha mulher e que acabou com o marido dela a apanhar-nos nus à lareira, a beber champanhe e a aquecermos o corpo com as melhores posições do Kamasutra.” Cervejas, okay. Histórias, negativo. São as duas para ti, velhote. Eu tenho que chegue. Conheço bem demais essa história e tenho que chegue. E tinha.











Três.



...e um par de óculos





De qualquer forma, o sono foi à vida com o amor à pressa com F. e tinha em casa Jorge Luís Borges e o inferno de Dante à minha espera; o que a certa altura me pareceu impraticável." À medida que a manhã avançava contra mim, senti os olhos a piorarem e comecei a ir contra coisas e pessoas que saíam das esquinas obstinadas. Era a manhã de sábado e as ruas perdiam o cheiro da noite. Ao cruzar-me com uma mulher baixa e pesada, esta virou-me o ombro esquerdo para abrir caminho e, investindo com determinação, atirou-me para dentro de um supermercado contra os carrinhos das compras. Enquanto cambaleava, impecável no meu blazer de caxemira do Afeganistão, percebi que não iria ouvir qualquer explicação e tive tempo de ver o rabo gordo que a seguia logo atrás e que fez questão em me apresentar. Não se podia exigir nada a semelhante criatura, que se movia a muitos quilómetros por hora, ocupando no seu movimento pendular toda a largura de um passeio de três metros. Estou atirado contra os carrinhos.
Perturbado pela súbita mudança de luz, voltei a cambalear entre as prateleiras das sopas Campbell e dos caldos Knorr. Enquanto obrigava o olho esquerdo a refocar as coisas, que não me pareciam fantásticas, a minha atenção parou num expositor vertical montado sobre uma cópia da Torre Eiffel com a bandeira tricolor; um expositor de óculos  de  sol.  Eu  estava  mais  bêbado  do  que  pensava:  a  marca  era  Le  Pen. Comprometi-me a voltar ao supermercado com mais sangue do que álcool a correr- me nas veias para confirmar o nome mas, como verão, nunca cheguei a tirar as dúvidas.
Fosse qual fosse a marca, acabei por encontrar a solução para enfrentar o Inferno de Borges. Ao acaso, como muitas outras coisas que me aconteceram durante aquela sexta-feira. Estendi a mão,  sem olhar, e tirei os primeiros óculos que os meus dedos tocaram. Uma vez postos, assentavam como uma luva. Paguei e sai. A rua, de novo. Mas diferente. Tranquila, pouca gente, como um fim de tarde de Verão, com o Sol a meio gás, aquela rua que apenas os miúdos que jogam à bola conhecem, em cores de fogo de lareira através das brasas ao fundo da sala. Cores com cheiro. Havia qualquer coisa de poético que se podia respirar. Aproveitei e enchi os pulmões até à última costela. Lembro-me de chegar a casa a sentir-me bastante melhor.
Assim que despi tudo menos as calças peguei em vários tomates, esvaziei meia garrafa de Absolut, preparei uma jarra de bloody-mary e fui aliviar-me dos restos da cerveja. Foi na casa de banho que pela primeira vez vi o aspecto físico do milagre por cima do nariz. Iguais a dezenas de óculos que eu vira antes em tendas de feira. As hastes em plástico, os aros em metal escuro, as patilhas de apoio do nariz em borracha transparente e as lentes ovais e escuras. Muito escuras, para ser exacto. Nesse pormenor estava a razão da singularidade do objecto no seu todo. De facto, numa observação mais cuidada, estes não eram uns óculos vulgares. Mais parafuso menos parafuso, mais plástico menos metal, a estrutura era igual à de qualquer par de óculos de Sol que os senhores possam imaginar. Mas as lentes eram barreiras que se erguiam entre o mundo e os meus olhos, ao ponto de se tornar impossível vislumbrá- los. E tudo me parecia diferente. A vida quase suportável.
Estava satisfeito com a compra e começava a encarar as aparências da realidade com novo ânimo quando me sentei em frente da Sony com o Inferno nas mãos. Lia “De majestade plenas, quatro sombras/ sem prazer ou tristeza no semblante.// E logo após do meu mestre ouvi:/ ‘Aquele que na mão traz uma espada/ E à frente vem dos três, tal mago rei,// Homero é, dos poetas o maior...’...’, quando, sem modéstia nem vergonha (dou-me agora conta, que belo motivo para que a mão de Deus me acariciasse violentamente a face), me ocorreu a ideia de que a cegueira transpõe para a alma a pureza da luz das coisas e que talvez eu, semi-cego como me encontrava, estivesse nesse preciso momento, e justamente por meio das lentes, a metamorfosear-me num Homero ou num Borges. Tal foi o delírio que apenas me permiti um mísero talvez’. Mas a verdade é que no mais íntimo do que eu sou tinha sucumbido à tirania do mais sombrio dos desejos. Qual, perguntam os  senhores, terá sido o desejo sombrio que acalentou o coração deste jovem o fim daquela noite de sexta- feira? Qual. Pois bem, sejamos honestos: o pior de todos. Da facilidade com que me ri do velho que para mim era um sucedâneo desgastado do P. Lorre, um velho a destilar charme para poetas enquanto sorve vinho de pacote na beira dos passeios, perdido pela Primavera e pelas mulheres ao quão rapidamente encarei a probabilidade de vir, a partir dessa noite, a ser alguém, um iluminado, um eleito de trazer por casa. Mas não foi apenas a forma como encarei essa probabilidade. Ao sentir-me um cego como Borges e Homero e Milton admiti terríveis circunstâncias para a realização obscura do que foi para mim uma obsessão repetia o infortúnio dos mestres com a certeza da glória paga em adiantado. A facilidade. Sem juros. Sem prestações. A pronto. O pecado da soberba personificado no cuco de oitenta quilos que eu fui por breves momentos. O suficiente para me perder da mão de Virgílio e dar de caras com um leão esfaimado, como se pode ler na Comédia.
Para aquele que guarda para o pensamento o último reduto da consciência e de tudo o que ainda é honesto, este foi o momento que desencadeou o processo de que vos é dado conhecimento. Arrependido pela barbaridade, deixei-me cair nos pesadelos que me aguardavam ali mesmo, no sofá, com o livro de Borges no peito, pensan- do no velho, na luz que lhe faltava e na luz que eu não mais teria.

Continua na próxima semana





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