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O Barco das Aparências

Era uma vez um barco chamado… Por agora vamos chamar-lhe apenas Barco!
O Barco navegava orgulhoso, de poder hastear uma bandeira e de comandar uma frota de sete barcos, alguns deles de dimensão considerável, onde também tinha autoridade para hastear a sua bandeira. Por esse motivo, era designado por barco Mãe (ou seria barco Pai?) e escrevia-se sempre com letra maiúscula.
Apesar da frota que comandava, o Barco navegava orgulhosamente só, ou seja, isolado do resto do mundo!
Os barcos que constituíam a frota eram muito distintos entre si, quer devido à dimensão, quer ao tipo de pessoas que neles navegavam, no entanto, tinham em comum, o facto de não ter direito a hastear uma bandeira própria. Para além disso, encontravam-se a diferentes distâncias do Barco, o que tornava as trocas de pessoas e bens, entre eles, mais rápida e fácil para uns, do que para outros.
Dois dos barcos mais pequenos, estavam muito perto do Barco e, devido a isso, as pessoas que neles viajavam eram muito semelhantes ente si. Apesar disso, as pessoas que viajavam no Barco sentiam-se mais importantes que as outras, considerando-as menores. Por sua vez, aqueles que viajavam nesses dois barcos, sentiam-se inferiores aos do Barco e não resistiam à tentação de querer viajar neste, ou, pelo menos, de ir lá aprender algumas artes, para depois as desempenharem nos barcos, tornando-se, dessa forma, mais importantes que as restantes pessoas que viajavam nestes. O seu complexo de inferioridade era tão elevado, que a forma de o ultrapassarem era tornarem-se, aos olhos dos que viajavam no mesmo barco, idênticos aos que viajavam no Barco.
Os restantes cinco barcos encontravam-se mais afastados do líder e, para lá chegar, os botes, que transportavam as pessoas e os bens entre eles, demoravam vários dias. A maioria das pessoas, que viajavam nesses barcos, eram de uma raça diferente das do Barco líder, no entanto, todos os negócios e artes eram propriedade de pessoas da mesma raça, dos que viajavam no Barco. Para além disso, as leis e regras eram as mesmas que vigoravam no Barco e as autoridades que as administravam também eram pessoas oriundas do líder.
Dois desses cinco barcos, apesar de não poderem hastear bandeira própria, tinham uma dimensão muito superior ao líder e as condições em que se viajava neles começaram a ser tão boas, que as pessoas originárias do líder começaram a ir viver para esses barcos, sem vontade de regressar à origem.
A desigualdade económica entre as duas raças, que viajavam em cada um dos barcos, começou a criar descontentamento na raça mais pobre, que era quem desenvolvia todo o trabalho braçal, sem deter qualquer poder económico e político. Esse descontentamento levou a um conflito entre as raças, que degenerou em luta armada, obrigando os comandantes do Barco a enviar pessoas, para os vários barcos da frota, para combater os contestatários. Acontece que a raça contestatária era também aquela que estava em maioria nos barcos, numa proporção muito elevada. Por outro lado, a raça maioritária tinha perdido o registo das migrações do passado e, mesmo sem ter a certeza de onde eram originários, reclamava o direito de hastear a sua própria bandeira, arrogando-se como a raça originária desse barco. No entanto, eles próprios estavam divididos sobre qual a bandeira a hastear, tendo-se criado vários grupos, cada um a defender a sua.
O barco líder viajava ao lado de outros barcos, com bandeiras diferentes. A distância entre esses barcos era muito pequena, podendo quase saltar-se de uns para os outros, desde que se obtivesse autorização para isso. Como as condições em que se viajava no Barco da nossa história eram más, muitas pessoas tinham obtido autorização para saltar para outros barcos, ou tinham aproveitado a calada da noite para o fazer, mesmo sem autorização.
Os barcos com bandeira diferente já tinham constituído vários clubes e associações, no âmbito das quais, desenvolviam várias actividades facilitando os negócios e tomando decisões conjuntas, em relação a várias matérias. Por várias vezes, tinham convidado o Barco, para se juntar aos clubes ou associações, mas por um lado a política do orgulhosamente só, seguida pelo Barco e, por outro, as condições impostas pelos barcos para aceitarem a entrada do primeiro, levaram a que o Barco continuasse sozinho. Os barcos com bandeira diferente pediam sempre ao Barco da nossa história, que este deixasse de ter frota e desse, aos barcos que a constituíam, a possibilidade de hastearem a sua própria bandeira.
Entretanto, o nosso Barco navegava cada vez mais isolado, pois os barcos com bandeira distinta invejavam o facto de este ter uma frota e começaram a ajudar os contestatários dos barcos da frota, na sua revolta e a não convidar o Barco para as reuniões anuais dos seus clubes. Isso agravou o conflito e começaram a morrer muitas pessoas do Barco, que estavam deslocadas pela frota, para debelar a contestação dos locais. A situação atingiu um ponto em que as pessoas responsáveis por garantir a segurança do Barco se revoltaram e mudaram o comandante do barco e os oficiais que o ajudavam.
Houve uma grande festa a bordo e todas as pessoas celebraram com alegria a mudança, pois passaram a poder manifestar publicamente a sua opinião, coisa que até aí não lhes era permitido bem como a poder eleger o comandante por voto secreto. Mas se grande foi a festa, maior foi a desgraça e os viajantes, em festa, deixaram degradar a estrutura do barco. Os buracos começaram a aparecer no casco, as velas começaram a ficar rasgadas e até um dos mastros mais pequenos chegou a partir-se. Para além disso o Barco teve de receber de volta as pessoas que tinham ido viver para os restantes barcos da frota, o que o tornou mais pesado e portanto ainda mais lento.
Os barcos com bandeira diferente enviaram alguma ajuda, mas depressa se cansaram e enviaram uma comissão de especialistas para tentar por alguma ordem no Barco, como moeda de troca dessa ajuda. A comissão não era constituída por pessoas que dominassem as várias artes, que existiam no barco, mas sim por pessoas acostumadas a fazer as contas e a apurar os resultados, de forma que sugeriram medidas que não resolveram o problema estrutural do Barco, que entretanto se desactualizara e ficara com uma estrutura demasiado pesada, exigindo, para o puxar, velas superiores aquelas que os mastros comportavam. Essa comissão pertencia a um organismo que supervisionava ajudas entre os vários barcos e se designava Ferro e Mastro Impulsionadores, conhecida pela sigla FMI. Tratava-se de uma organização polémica e controversa. A polémica prendia-se com as medidas que normalmente recomendava e que, por regra, traziam melhorias pontuais e passageiras, não alterando a estrutura do Barco. A controvérsia começava logo no seu nome, pois o mastro e o ferro desempenham funções opostas no barco e, como tal, actuando em conjunto não eram impulsionadoras de nada, antes exerciam uma pressão sobre a estrutura do Barco, que este apenas conseguia suportar durante pouco tempo, sendo obrigado a levantar o ferro para conseguir navegar e evitar que a estrutura fosse danificada.
Um belo dia os barcos de bandeira diferente, que viajavam ao lado do Barco, decidiram deixá-lo entrar para um clube exclusivo, constituído pelos melhores barcos e que dava direito a um conjunto de benefícios. A ideia era o Barco modernizar a sua estrutura, tornando-se mais leve e, as pessoas que nele viajavam, aprenderem a manejar o leme, com mais eficiência e as velas, com mais eficácia, de forma a poderem acompanhar a velocidade dos outros, sem problemas.
Para tornar tudo isso possível foi estabelecido um período de transição durante o qual o Barco iria ser rebocado por todos os outros e em simultâneo receberia ajudas destinadas a formar os viajantes na arte de velejar e para investir em novos mastros, em novas velas, em materiais e obras de renovação da estrutura, para renovar o casco, enfim… Era um projecto a médio prazo, destinado a tornar o Barco mais rápido, para poder navegar ao ritmo dos outros.
Durante um período de vinte anos os ocupantes do barco viajaram em condições que nunca antes tinham tido. As ajudas recebidas, em vez de serem utilizadas para o objectivo a que se destinavam, foram utilizadas para criar infra-estruturas lúdicas. O barco passou a ter várias pranchas para fazer saltos para o mar, o convés foi dotado de vários tipos de jogos e de uma grande piscina e os viajantes usufruíam disso tudo, sem grandes preocupações com o dia seguinte. Os viajantes tiveram grandes aumentos da sua ração diária de comida e água e o custo de vida aumentou significativamente, pois grande parte dos produtos que se consumiam passaram a vir dos outros barcos. Uma boa parte das actividades económicas que suportavam o Barco foram desactivadas, pois os restantes barcos do clube conseguiam produzir os mesmos produtos de forma mais eficiente.
Como se isso não fosse suficiente os sucessivos comandantes do barco foram pedindo muitas coisas emprestadas aos outros e estes, como tinham excesso das mesmas, fizeram questão de as emprestar, na mira de vir a lucrar com isso, no futuro. As coisas que receberam, por empréstimo, foram desbaratadas, não tendo sido aproveitadas, mais uma vez, para melhorar a estrutura do barco, ficando apenas as dívidas para pagar. Existiram até comandantes que gastaram recursos a pintar coisas velhas que a seguir tiveram que ir para o lixo, ou que montaram uma rede de pranchas para se atravessar o Barco de um lado para o outro, de forma mais rápida, mais sem uma utilidade económica real. O barco havia sido pintado de novo apenas por fora e as velas haviam sido remendadas com panos coloridos, mas demasiado frágeis para resistir a um vento mais forte. Visto de fora o barco parecia moderno e lindo.
Toda a gente vivia feliz sem se aperceber que viviam de aparências!
Decorridos vintes anos veio uma grande tempestade que afectou todos os barcos. Aqueles que tinham uma estrutura moderna passaram pela tempestade, com alguns danos mas, rapidamente, conseguiram repará-los e seguir viagem, embora a um ritmo mais lento. O Barco da nossa história tinha uma estruturas desequilibrada e velha pelo que sofreu danos muito profundos com a tempestade, passando a navegar muito lentamente e parando muitas vezes para reparações de emergência. Existiram mesmo alturas em que parecia que o barco ia naufragar.
Nesse momento de aflição os barcos do clube tiveram que pensar se expulsavam o Barco ou se lhe davam hipótese de fazer alterações profundas para se manter no clube. O problema era que, nessa altura, o Barco já não conseguia sustentar-se e como tinha que devolver muitas das coisas que tinha pedido emprestadas, estava em risco de não conseguir sequer alimentar as pessoas que nele viajavam.
Mais uma vez os barcos do clube decidiram ajudar o Barco, mas impuseram-lhe o cumprimento de regras absurdamente rígidas, que em vez de o ajudarem a melhorar a sua estrutura, o iria levar a degradá-la ainda mais. Para fiscalizar o cumprimentos dessas condições, nomearam uma troika composta por um membro do FMI, organismo que os comandantes do barco já conheciam, um representante da administração do clube, designada Comissão de Entreajuda (CE) e um representante do organismo que contabilizava os empréstimos entre os barcos e se chamava Bitola Contabilística Única, conhecido pela sigla BCE.
Os viajantes, descontentes, nomearam um novo comandante, que por sua vez teve de tomar medidas de racionamento dos géneros alimentícios e até a água foi racionada. Essas medidas deixaram todos os viajantes descontentes e todos começaram a reclamar! Os mestres que ensinavam as artes nas escolas recusavam-se a avaliar os aprendizes, a não ser que a sua comida não fosse racionada. O pessoal que dava apoio ao comandante, no controle de toda a actividade do navio e que sempre tiveram um tratamento prioritário, reclamava que, embora pudesse aceitar racionamento da comida, não queriam ver a ração de água reduzida. Como a actividade do Barco baixou e esses colaboradores eram excessivos, parte deles foram colocados na proa, a vigiar o horizonte. Essa era uma actividade perigosa, pois de vez em quando um deles caía ao mar e morria, porque era abalroado. Para enquadrar essas pessoas foi criada uma secção designada Linha do Horizonte, que era contestada por todos os colaboradores do comandante.
O descontentamento era generalizado e como os viajantes estavam organizados em grupos, que apoiavam diferentes pessoas para serem comandantes, havia sempre quem contestasse as acções e decisões do comandante em exercício. Nessa época de grandes dificuldades, os grupos que apoiavam comandantes diferentes, daquele que chefiava o barco, decidiram convencer todos os viajantes a não fazer as suas tarefas. A consequência foi dramática e a actividade no Barco parou por completo. Como os cabos que o prendiam aos outros barcos, não tinham todos a mesma resistência, alguns deles rebentaram e o Barco quase parou de navegar.
Durante largos meses as lutas entes os pretendentes a comandante foram aumentando de intensidade, sobrepondo-se ao bom senso, que aconselhava um entendimento entre todos, para conseguirem recuperar o Barco e manter-se no clube. Com o aumento da intensidade das lutas, aumentaram também os boicotes ao trabalho, fazendo com que o Barco apenas progredisse puxado pelos cabos presos aos restantes barcos. Com o decorrer do tempo e devido ao desgaste, os cabos que prendiam o Barco aos restantes, foram rebentado, até que o Barco ficou estagnado, no meio do mar e quando os rombos no casco aumentaram, ele acabou por naufragar.
A história do Barco foi narrada, pelos contadores de histórias, de várias formas, consoante a origem destes ou o interesse que serviam. No entanto, todas elas terminavam com um aviso à navegação de todos e cada uma dos barcos, deixando claro que nunca era tarde para se mudar, caso existisse vontade suficientemente forte para isso. As mudanças não podiam, nem deviam ser demasiado bruscas, devendo ser realizadas com tempo, dando um outro significado ao ditado da sabedoria popular, que diz:

Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje!

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