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Zero - Capitulo 4

Quatro.



A culpa roubando-me a paz pela calada





“E a ambição, que nasce apenas de um acesso de febre e atravessa, sem se demorar, o coração estreito
do homem.” Keats


Quando acordei era de novo dia. O Sol entrava-me pela casa à velocidade de trezentos mil quilómetros por segundo directamente do Oriente. Era de manhã e eu tinha dormido demais. Um dia inteiro. Uma noite inteira. Era outra vez de manhã. O meu corpo levou os habituais e terríveis minutos a reagir à ideia de um duche quente. Já na casa-de-banho e ainda mal-acordado vi que os óculos permaneciam entre mim e o espelho. Tinha-os esquecido e nem sequer os sentia, como se fossem a minha própria visão. Aproximei-me do espelho e tentei tirá-los mas senti um esticão na pele inchada do sobrolho direito. O estalido metálico assustou-me e a dor terrível que se seguiu obrigou-me a desistir. Logo de seguida o sangue começou a descer-me pela cara e pelo pescoço manchando o colarinho da camisa. Despi-me e limpei-me com uma toalha. Eu reagia às coisas como um robot e nem sequer pensei em quanto ia custar mandar limpar a porcaria da camisa.
Tentei de novo tirar os óculos; o que eu fiz foi puxá-los na esperança de que me saltassem da cara e o termo correcto é arrancar. Sem melhores resultados voltei a aproximar-me do espelho. Analisar todas as situações de forma clínica fazia parte dos meus genes, mas entrava quase sempre  em confronto com a minha natureza de escorpião, de génio difícil e mimado. Mas de momento não havia outra coisa a fazer.

 E o que sabia eu das coisas naquele primeiro dia?

Uma frágil membrana de escarlate translúcido começava a unir o sobrolho e a pálpebra ao aro. Fatalista e misticista, como me ensinaram a ser nas minhas origens de aldeia, pensei “O Inferno de Dante não me perdoou”. Nem a mim nem àquele vil desejo inspirado pelos mais nobres vapores etílicos que o homem pode experimentar. Mas se eu pressentia algo de estranho por acontecer, estava longe de imaginar o ponto que as coisas iriam atingir. Despi-me e meti-me debaixo do chuveiro. O sangue correu, lavado e escuro; muitos segundos depois parou.
Os óculos eram, aparentemente, irremovíveis e resolvi deixar de pensar neles. No momento não me incomodavam e sentia-me melhor com eles do que sem eles, dois dias antes. De qualquer forma, pensava eu, não seria nada que um bisturi, uma mão hábil e meia dúzia de pontos não resolvessem em meia hora. Pensava eu.
Contudo, misticismos à parte e apesar do meu conforto físico, uma frase que ouvia na distância dos anos numa Igreja perto da minha infância através da voz irada de um pároco alto e seco que Deus brindara com voz de barítono anunciava-me os limites dos dias que vinham e as noites prolongadas em suor e pânico. O preguiçoso é semelhante a um monte de esterco...








Cinco.



Problemas que assaltam Borges e ressuscitam Isabel





Os óculos. Se eu quisesse deixar-me de merdas, como diz o meu dicionário de ver- náculo, os óculos não eram um problema. Logo nos dias que se seguiram, os meus olhos adaptaram-se à semi-obscuridade do apartamento - um estúdio de cento e cinquenta metros quadrados de tábua corrida sobre a cidade, para ser mais correcto - e durante  o  fim-de-semana  seguinte  consegu trabalhar  sem  as  luzes  ligadas. Continuava a não sentir dores - embora sentisse o olho inchado e a latejar de dez em dez segundos - e as coisas filtradas começavam a agradar cada vez mais ao cérebro por detrás das lentes. Quanto à culpa, coisa que se poderia passar na minha cabeça, mas que eu queria sentir como algo que não meu, quando me expugnava nos lapsos da memória, eu respondia-lhe redobrando esforços para compreender os passos dos ensaios de Borges e dizia para mim mesmo: estes gajos andaram a fazer rendas e tu vais retalhá-los a toque de bisturi. Olha que belo ofício.
Porém, no fundo, na minha condição irredutivelmente humana, era como se nada esperasse das minhas acções e de todas as milhares de recensões que pudesse escrever. Era como se nada pudesse apaziguar aquele sentimento. De qualquer forma, não estava à espera que um anjo viesse e me tomasse pela mão. um limite lógico para tudo e eu não desafiava esse limite. E até por isso os óculos não constituíam problema algum. Tudo estava dentro dos meus limites do impossível.
Entretanto, por essa altura, mais exactamente no domingo à tarde, cheguei a um problema que o era, pelo menos para Borges; era-o para ele apenas porque o tinha sido para outros e era-o agora para mim porque o tinha sido para ele. Como tudo no mundo comum ligado por interstícios culturais.  O problema de Ugolino. Claro que assim, à primeira impressão, nos é difícil admitir um tal paradoxo da sobrevivência. Dirão os senhores: «Somos civilizados, não?». Mais ainda quando a carne é a nossa carne. Tudo isto parece simples, indiscutível, mas eu estava convencido, ainda estou, que ao corpo apenas interessa a sobrevivência, isto é, superar as situações extremas do seu limite biológico; e tirarmos conclusões sobre uma situação destas sem nos submetermos a ela (falo da fome - foi este o caso que levou Ugolino a, pressupostamente, aceitar a carne dos filhos  moribundos), com o cérebro transformado em milhões de células famintas a devorarem-nos tudo o que resta da moral, penso eu, falar destas coisas depois de salmão regado a limão e batatas de cultura biológica com molho de manteiga pode levar-nos a tudo menos à nossa verdade impossível. A história do homem nem sempre é bonita. para os tipos que ensinam e nunca saíram das universidades. os sistemas teóricos possuem essa diáfana auréola da perfeição. Vejam o relato de Mórus. Numa Inglaterra distante os homens cometiam o simples furto para matar a fome  sabendo que isso lhes podia custar a vida. Mais importante: havia quem lhes cortasse a cabeça no caso de serem apanhados. O que não impedia outros de repetirem a proeza. É verdade, nada como ter o estômago a roer-nos por dentro e a cabeça a rebentar para nos ensinar a lição. Eu não tinha essa experiência, também, confesso.
Que problema filho da puta. Em todos os sentidos. É que não tinha eu essa experiência nem tinha eu condições de a recriar. Tudo o que eu pudesse ter feito então não passaria de um simulacro, uma tragédia com deadline definido. Seria como teorizar sobre a artificialidade.
Na altura, eu apenas tinha a vantagem de reconhecer as minhas limitações. Poucas vezes um problema me mostrara que a vida me tinha poupado às coisas mais obscuras. Nada como a própria fome para me ensinar a lição. Eu nada percebia de fome. Preocupava-me com a colecção de CD e se algum dia teria um 911.
Mas tinha consciência disso. Eu tinha consciência das minhas limitações e daí iria escrever sobre  o problema de Ugolino. Nem poderia ser outra coisa ou de outra forma. A uma coisa eu estava habituado - não falhar. Se o senhor editor, pai de uma filha que valia mais do que o ordenado todos os meses depositado com muitos zeros na minha conta, queria fornecer aos leitores um mapa para os Ensaios Dantescos de Borges, o senhor editor podia contar com ele em cima da secretária antes do fecho da edição.
Curioso foi, a partir daquele episódio da Comédia, lembrar-me de Isabel. Como de outra forma o seu corpo me alimentou meses a fio. A memória é das poucas coisas que eu não entendo e não  controlo, é estranha e, por vezes, imprudentemente, desenterra-me de segredos que tudo faço para não regressarem. Isabel. Isabel nada tinha  que  ver  com  Ugolino,  nem  eu  era  um  tiran para  ela.  Ugolino  Della




Gherardesca, gibelino que governou Pisa com mão-de-ferro. Pisa, a cidade da torre inclinada. Nem sequer era assim o meu amor por Isabel. Dói-me falar de Isabel. E os senhores, o que poderão os senhores compreender dum discurso sobre o meu amor? As palavras. As palavras e o seu  alinhamento sucessivo. Nada. Como poderia eu expor-vos as marcas da alma que não fazem  parte  da memória? Que poderei eu dizer-vos desse breve reencontro com a vida? Antes de tudo, não que vos interesse ou mesmo ao episódio, devo declarar que na altura em que recebi a visita deste anjo a minha vida não exigia qualquer tipo de redenção. Não como eu viria a desejar nos dias que se seguirão no relato. Até então eu nada podia temer. Nenhum sinal me fora enviado para revelar a marca da mortalidade. A marca dos dias mortos e perdidos. A redenção era para mim uma coisa bíblica, imaterial, como de facto é, imaterial, um território desconhecido cujo sentido se encerrava  numa geografia muda, sem voz, quase inoportuna. Que redenção? A minha inexperiência era uma  fonte de poder. Tudo estava ao meu alcance. O único amor que conheci até aos vinte anos foi-me dado pelo meu pai e pela minha mãe e era quase filicida, o que de forma mecânica me impelia a encarar a afectividade com constrangimento e repugnância à mistura. Era-me mesmo fácil manter as meninas na distância que eu achava aconselhável. Casto. Até aos vinte anos não toquei com um dedo numa mulher. Castíssimo. Claro que me masturbava desalmadamente, desenvolvendo as minhas fantasias, acariciando-as, aperfeiçoando-as até aos limites do irrealizável a cada novo acto, quer dizer, diariamente - o suficiente para ser internado caso alguém viesse a descobrir a minha actividade favorita. Mas não descobriram e com cuidado conheci o prazer da solidão e a solidão do prazer. Essa maldição terrível que se viria a prolongar até à minha actual existência.
(continua na próxima semana)

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