Seis.
O cântico
dos cânticos
Isabel. Mais velha do que eu quinze anos, quando eu tinha apenas vinte, foi para mim
como uma mãe. Uma outra
mãe. Adorava-a como nunca adorei
nada na vida. Escrevia-lhe poemas infantis que acabavam sempre da mesma forma:
Não morreria
por ti mas diz-me e
Morrerei contigo Hoje.
Isabel foi para mim a materialização dos contos de Anaïs Nin. Uma história
de carne com prazeres
abertos à minha adolescência sublimadora. Por que me lembrei
eu de Isabel a propósito de Ugolino? O infame pai Ugolino.
Claro, Isabel era uma
segunda mãe que me pariu para os prazeres da carne. Uma mãe e eu nunca tive problemas, comi-a, por vezes durante horas e horas em banquetes
devassos e sem pausas
sobre a cama assim que ela chegava a casa não sei donde. Nunca lhe fazia perguntas. Não interessava. Limitava-me a comê-la, devorando o seu amor como leite morno e doce como o mel; doce e pleno como o mel. E ela dava-me todo o amor que eu poderia querer; e eu queria-o, finalmente, todo. Já de noite, depois de
jantar o seu corpo de fêmea esculpido
em fogo branco e depois de lhe devorar as energias com horas
de sexo juvenil e beijos nos lábios,
adormecia-lhe no colo nu, enrolando-lhe o cabelo negro nos meus dedos, inventando caracóis onde os não havia, suspenso
nos seus olhos; nos reflexos das chamas da lareira a vibrarem-lhe o azul das pupilas. É claro
que nada disto vos interessará, é apenas Isabel,
a única história da minha vida.
Mas Isabel desapareceu e deixou-me lágrimas
para sempre. Isabel. Ao fim da noite
costumava pegar em mim e levava-me para a cama. Devia levar, porque era aí que eu acordava
com os barulhos da cidade, com a cabeça dela no meu peito. Todos os dias começavam assim, com ela, na cama, e acabavam com ela, na cama. Eu dava- lhe
tudo e ela dava-me o amor que tinha e protegia-me do mundo. Cada noite era única. Isabel, dominadora; Isabel,
protectora; como as mulheres de Hoffmann,
era para mim o centro vital de todos os compromissos.
Mas chega de literatura de cordel; falar de Isabel faz-me mal, falar de Isabel faz- me bem, por esta ordem. Como ler Samuel Beckett, o irlandês de cabelo espetado,
mas aqui na ordem inversa. De qualquer forma, não vejo agora
como lembrar o Paraíso tivesse podido ajudar-me
a resolver o problema do Inferno. Fosse como
fosse, eu precisava de outro
tipo de conhecimentos. Precisava das teorias
dos entendidos. Nessa altura tinha dez dias para entregar o artigo e urgia resolver o problema de Borges. Liguei o modem, confirmei
uns títulos, e pedi à livraria B. que me enviasse com
urgência umas quantas obras citadas pelo bibliotecário argentino
e ainda outras de um
biólogo que entretanto ficou famoso pelas pesquisas
antropológicas realizadas há uns anos pela sua equipa no interior do continente africano.
Enquanto esperava, ainda com a memória
desperta por imagens de banquetes a dois, encomendei sushi e sakê. Naquele sábado,
acabaria por jantar com Isabel. Mahler, nervoso
e genial, também apareceu.
Meia hora depois tinha o estafeta à porta. Vestia um impermeável fluorescente, verde, talvez, ou amarelo. Pelo que pude perceber em breves segundos de conversa, fixou-me de forma estranha, mas também isso não posso garantir
porque não consegui ver-lhe os olhos. A comida estava a arrefecer, despachei-o com cinco contos.
A encomenda com os livros chegou pouco depois e repetiu-se, incompreensivelmente para mim, na altura, a estranheza
estampada no rosto do jovem motociclista de capacete à tira colo. Três horas depois, eram duas da manhã, eu estava instalado na
chaise-longue com um sorriso de sakê nos lábios e a cidade aos meus pés, chegavam mais livros que tinham ficado esquecidos no armazém da livraria. Livros esquecidos e estafetas
assustados,
como um título
de Vernon Sullivan. Apaguei o cigarro. Inclinei-me mais para trás e deixei-me
a olhar para a minha cidade,
as luzes vermelhas das traseiras dos carros e os candeeiros misturados com Wynton Marsalis. A minha cidade é fantástica. Livros à porta às duas da manhã. O que podia eu querer
mais? Talvez a felicidade acondicionada numa mala térmica.
Até ao dia seguinte andei às voltas com teorias que não eram minhas e que não se davam bem com aguardente de arroz. Já de manhã,
antes de me deitar, encomendei provisões para uma semana. Era domingo. O dia do senhor, diziam-me.
Eu que pensava que o dia do senhor era o sábado, o shabbath, quando não se pode fazer nada. Nada não é bem assim, quando dizem ‘nada’ referem-se a ‘nada desde que não prejudique o negócio’. Eles é que sabem, com certeza absoluta quem está errado sou
eu. Fumei o último Lucky Strike do último maço e enquanto via a cidade quase acordada
apalpei a cara, senti os olhos escurecidos no vidro da janela, examinei
o sobrolho, apaguei o cigarro e fui deitar-me. Os óculos continuavam a fazer parte de mim.
Sete.
Catorze dias depois - A Coisa
São duas da tarde. Passaram catorze dias desde a saída
apressada de casa de F. depois de o marido dela nos ter encontrado
na sua própria cama e me ter esmurrado
no olho, por sinal, o meu melhor olho, sem qualquer sinal do astigmatismo com que os computadores me infectaram o esquerdo; depois o velho, o Sol e toda a madrugada daquele sábado quente de fins de Março. Tudo estava ainda por acontecer. Toda a
dor me esperava dentro de mim. Para já, a vista estava perfeita. Vivia uma aventura biológica única. Poucos
dias antes surpreendi-me a observar as actividades
de
uma ratazana junto de um café a pouco
menos de um quarteirão do meu estúdio. Depois, num apartamento a quase cem metros, pude ver através de cortinas de tule como
dois namorados se enroscavam no sofá antes de uma velhota de ar simpático
voltar da cozinha com amendoins, leite e uma lata de Ovomaltine. A brincadeira acabou
ali, com a velhota afogueada a deixar cair o tabuleiro. Enquanto
os dois alinhavam as roupas, a pobre caiu para trás aterrando
em cheio num cadeirão de baloiço.
A coitada da senhora acabava de apanhar o afoito do rapaz com a mão por debaixo da
saia da feliz da rapariga, extática,
no preciso lugar onde acabavam
ambas as pernas.
Depressa abandonei estas actividades;
à excepção do pequeno episódio
por detrás das cortinas
de tule, a vida das pessoas era quase sempre desinteressante.
Achei indecente o pouco que tinham para me mostrar. Catorze dias, portanto, desde
a minha mutação. Física,
uma vez que, como eu previra, a culpa e a angústia me abandonavam à medida que eu reinvestia o espírito no trabalho. Nessa altura havia apenas, no fundo de mim mesmo, a
certeza de que aquele momento de fraqueza, do desejo mais obsceno, voltaria um dia para me relembrar - afinal - a minha verdadeira
condição. Aparte as aparências eu era nada, havia nascido
nada e acabaria em nada. Como o velho de sexta-feira.
E como ele também
eu começava a coleccionar momentos e aquele seria para sempre um daqueles instantes que me marcam
a consciência a ferros, mas de forma quase subliminar. É, eu carregava agora um desses momentos. Como quem chega a casa depois
de um dia de chuva
e se dá conta de que a
areia lhe ficou nos sapatos passados que estavam muitos meses
depois daquele desgosto de Verão. Eu ainda não sabia nada.
Tinham passado catorze
dias e há treze que não me via ao espelho, tal era a forma como o artigo me absorvia durante
a tarde e grande parte da noite. Mas não me doía nada. Tirei um novo print do trabalho
e aqueci café. Depois de descascar e comer
uma laranja, telefonei aos meus pais.
Era o dia de telefonar
aos meus pais. Quer dizer, há um dia para isso, se bem que
eu não lhe dê muita importância. Continuo a pensar
que significa muito
mais o eu lembrar-me deles e de lhes telefonar
do que o telefonar-lhes. Porque ao contrário
do telefonar, o lembrar não é para mim uma obrigação. Lembro-me
deles todos os dias por- que tenho de me lembrar deles, porque gosto deles, porque me preocupo mais com
eles do que comigo. Mas quem está do outro lado do telefone não sabe nem quer
imaginar isso. As pessoas são muito egoístas com estas coisas. Por isso é que aquele
era o dia de lhes telefonar. De seguida, meus senhores,
vou transcrever-vos uma das muitas formas que o amor filial pode assumir.
Falei primeiro com a minha
mãe, anotei todos
os conselhos para o mês que se
seguia e tentei, depois, explicar
ao meu pai, ocultando o pormenor dos óculos, aquilo
que acontecera. Não por mim, mas porque
não queria estar a preocupá-lo com esse
pormenor. Para que percebam,
na minha família temos todos uma mania terrível de sofrer mais com o mal dos outros do que com o nosso próprio
mal. O que torna muito difícil
perceber a quem pertence cada maleita, cada desgraça que se abate sobre um de nós. Dou-vos o exemplo de quando o meu pai sofreu uma grave problema que lhe custaria uma operação de sete horas. Antes de ficar inconsciente, o que
nos dizia, a mim e à minha mãe, era: calma, é preciso ter calma. Como vêem, a distribuição do mal é uma coisa que está mal estimada no meu seio familiar. Na dúvida, cada um toma como seu o seu sofrimento. Voltando ao meu pai, astrónomo reformado, se é que se pode sê-lo. Não compreendeu, como, aliás, eu já esperava.
- Diz-me lá, à noite, não foi?
Sim, mas isso...
- A noite. Sempre a noite - aplicou exactamente aquela inflexão que eu conhecia muito bem desde os quinze anos, altura em que comecei com as minhas escapadelas. Eu tinha de contra-atacar, para bem do nosso relacionamento.
Claro, a noite. A fria noite quando
me preparam o pequeno-almoço em forma de pão fresco. Quando os médicos têm a
mania de aplicar as suas manigâncias em corpos prestes a despedirem-se da sua querida
alma nas salas
das urgências. (Isto,
pensei-o mas não o disse,
como sempre. Claro,
poderia ter atirado
com uma ou duas barbaridades destas que explicam a vida contínua
e sem parágrafos, mas o respeito, o medo de o magoar, a minha imagem de puto que eu ainda vejo projectada nele impe-
diram-me. E não me incomodei
muito com isso. Respondi antes)
É na noite que estão as estrelas.
Já pensou de onde teria vindo o pão para a nossa
mesa durante tantos anos se não fosse a noite, pai? - Resmungou, eu ri-me da minha
táctica, ranhosa e infantil.
Quando desliguei sabia
que um dia voltaríamos
ao mesmo, era inevitável, não uma
vez mas sempre. De qualquer forma, a relação com os meus pais era assim e agora melhor do que nunca.
O telefone, o amigo comum.
A mim, bastava-me telefonar.
Saber que estavam bem, como diz a minha mãe. Só o facto de levantarem o auscultador já me deixava
descansado. Até me permitia começar
as conversas com uma
brincadeira que para mim implicava coisas muito mais sérias: “Então, ainda não morreram?”. Não. Claro que não. Se tivessem morrido, preocupando-se comigo como só eles preocupam, seriam os primeiros a avisar-me. Para não me preocupar. Que ficariam bem.
Agora, com o falso problema de B. resolvido (o que posso dizer-vos é que Dante sabia provocar, não foi o acaso que o fez político), o artigo quase
pronto, apetecia-me sair. Ver como o mundo se tinha desenrascado sem mim. Estar com os amigos.
A máquina de café começou a fazer barulho
na cozinha. Sentia-me
porco. Bebi duas chávenas e pus água a correr no chuveiro.
Aqueci uma toalha para amaciar os pêlos
da barba de duas semanas
que já andavam a provocar-me com comichões havia alguns dias, sintonizei o rádio ao acaso e liguei a televisão, tirando-lhe o som. A sister Wendy Beckett acabava de passar das tentações
de
Santo Antão para
um
Caravaggio que eu não conhecia. O espelho esperava-me e tinha chegado a hora de
o enfrentar. Esperava-me, enfrentar, isto, digo-o agora.
Liguei a luz da casa-de-banho, depois a do espelho, olhei-me
de frente, vi-me
a ficar lívido, desliguei
a luz e fui sentar-me no sofá. Existem
limites para o possível
e para o impossível. Eu tinha ultrapassado um desses limites
e nesse instante soube qual.
Um terror apodera-se de mim. A minha agonia muda e imóvel é indescritível. Fiquei ali uma hora ou quase, enterrado
na pele negra, a pensar no que tinha visto. A velha questão da retórica desenterrou-me do torpor cínico
da minha vidinha
e para meu desespero algo disparou em mim numa luta que não teria tréguas senão pela vida. Pela vida que agora eu deveria
destinar. A minha faculdade
de pensar permanecia clara e activa mas no espírito
sentia-me tomado de pavor. Tinham passado catorze dias, duas semanas, desde que me acontecera aquilo.
Entretanto, acabei o artigo, revi-o e preparei as notas finais para acrescentar depois das provas. Há catorze dias eu
não era aquilo
no espelho da minha casa de banho.
Sem certezas acerca
de nada, pareceu-me que os óculos haviam desaparecido por completo. Continuava
a ver as lentes negras no lugar das órbitas, mas se antes apenas o perímetro
que delimitava a lente direita era recoberto por uma fina camada de células escarlate
translúcidas, agora toda a armação metálica tinha sido comida pela minha cara. É verdade que eu continuava a sentir-me bem. A ver melhor. Mas o meu aspecto
não era humano. Nem humano, nem animal. Era o aspecto
de uma COISA.
Quando me levantei
do sofá ainda não tinha reunido forças
para voltar a ver-me
no espelho. Eu não estava preparado para voltar a encarar-me. Não tão cedo. Não
enquanto o meu espírito estivesse
possuído daquele horror
gélido e silencioso. Da BBC, a irmã Beckett continuava a explicar “O Santo Sepulcro”. Eu não a ouvia. Nem um som me chegava ao cérebro. Nenhum apelo da vida.
Levantei-me e fui para a cozinha beber café. Já com a caneca na boca, vi reflexos negros da minha cara no líquido
preto. Não me tinha metamorfoseado num grande
poeta; isso, com toda a certeza.
Enquanto permanecia sentado passando a mão pelo cabelo molhado vezes sem conta, num gesto nervoso, comecei a ver a vida a afundar-se. As primeiras questões
levaram-me a lugares
onde li deliciado a Metamorfose, do Kafka. Como então me diverti
com as angústias improváveis de Gregor Samsa. Nada daquilo fazia sentido para mim.
Apesar de me achar um zero à esquerda, coisa contrariada pelas aparências, como já disse, eu era um tipo decidido e era isso que
fazia de mim um tipo bem-sucedido. Essa qualidade, que nas sociedades
modernas faz toda a diferença mesmo que não tenhamos qualquer valor, levava-me a agir de imediato perante os desafios. Principalmente se esses desafios
implicassem a dificuldade. Por isso me divertiam as questões do herói do Kafka. Por isso achava estranha
a hesitação inicial do personagem do Camus no Estrangeiro. Maman est morte. Poderei faltar ao trabalho? O que vou dizer ao meu patrão? Homem, a sua mãe morreu,
o patrão que se amanhe. Isto era eu, antes. Agora era a mim, um tipo real, que
estas dúvidas assaltavam. E piores, dúvidas mais mundanas. As minhas namoradas, o que iriam elas pensar de mim? Conseguiria voltar a beijá-las? Voltaria a ter os gestos do amor com elas? Como poderiam elas encarar aquela coisa que era eu e que a mim próprio
provocava nojo e repulsa. No escuro, talvez. À canzana, eu escondido
dos teus olhos.
Estaria eu condenado a uma triste reclusão aos vinte e nove anos? Seria a escapadela às putas, envolto
numa capa teatral, a minha única
perspectiva do amor? Talvez o sexo oral numa esquina
escura. Mas pior, e os meus amigos? As idas em bando
restrito ao GARFIL.
Os jantares a trinta quilómetros da capital estavam agora
fora de questão. Tudo isto era demasiado fantástico e punha-me num estado de
ansiedade que os senhores não podem imaginar. Não, nada seria como
dantes. Nada. Nem uma simples ida ali à mercearia de baixo para comprar
arroz. Ou cerveja. Ou havanos. Nada. Estes foram os primeiros
pensamentos que consegui ordenar
e que agora me provocam
o riso.
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