Vinte e três.
... cortisona
e o meu anjo-da-guarda.
Naquela última manhã eu estava deitado na cama, estendido
de pernas abertas,
os braços ao longo do corpo. Tinha acabado
de acordar e pelo suor na minha testa, que eu sentia escorrer até às orelhas,
deviam estar uns trinta graus. Era quase meio-dia, o quarto estava escuro,
as janelas abertas e as cortinas
fechadas. Adormeci e acordei várias vezes até voltar a cair num sono pesado. Estava sob o efeito da cortisona há quarenta e oito horas, fosse o que fosse o que isso queria dizer.
Por volta das três horas senti uma presença
no quarto. Uma luminosidade forte ao
fundo da cama do lado direito.
Primeiro, pensei que fosse o Sol - que nasce
do Oriente, de frente para a minha sala - que tivesse já galgado o prédio na sua fadiga
diária voltando agora para o Ocidente; saudando-me na janela do meu quarto. Mas
não. Este Sol tinha asas e deslizava
agora lentamente
num perfeito
travelling ao longo da cama sobre mim, na minha direcção.
Eu estava talvez um pouco adormecido pelas horas a mais de sono e pela cortisona; a situação era mais uma vez absolutamente
estranha; a frequência das batidas do coração que eu vira dias atrás sob a pele mantinha-se baixa; nenhum músculo do meu corpo reagiu à adrenalina
produzida à pressa e que me corria nas veias; nenhum grama do meu corpo reagiu àquele
súbito apelo do inesperado; tudo aquilo escapava à minha consciência e eu recebia o
que nunca tinha pedido, o que não tinha a certeza de querer. E no entanto, senti-
me em paz e, sabendo o que sabia sobre mim, senti-me protegido. Aquela luz era quente e deixava-me seguro. Nada podia temer. Era como se tivesse estado à espera daquilo toda a minha vida. Havia um Sol no meu quarto e eu sentia-me
protegido. As asas abriram-se-lhe com um sorriso
e uma mão acariciou-me a cara. Adormeci
de novo.
Quando acordei, vi através das cortinas o Sol a fazer o caminho de volta a casa. Levantei-me e abri ainda mais as janelas deixando
entrar alguns graus extra de calor no quarto.
Eram qualquer coisa horas e trinta e cinco minutos da tarde. Os frascos
de cortisona do lado esquerdo da cama escondiam
o indicador do relógio-despertador Siemens com caixa em pau-preto. Fechei a janela e liguei o ar condicionado.
O Canal 16 passava
um policial negro a cores com um Silvester Stallone
vinte quilos mais gordo, amparado por dois ou três génios da sétima Arte. Segundo
as indicações do Pol teria de tomar nova dose de Depo-Medrol às seis. Seis. Eram seis. A sétima
injecção. Depois de deitar a agulha e a seringa no lixo bebi um terço de uma garrafa de Luso. A Evian tinha-se acabado.
Vinte e quatro. O desenlace?
O desenlace. Acabava de pousar a garrafa de Luso. Os
óculos caíram no lavatório com um ruído seco, gordurosos e corroídos, com bocados de pele agarrados, ao lado dos destroços
das refeições dos últimos dias. Levei as mãos à cara. Sob o tacto dos meus dedos a pele era de novo macia e lisa. Senti também as sobrancelhas. Seria assim? Eu era eu, inteiro,
de novo? Olhei
de relance para os vidros da janela que dava
para a varanda. Era eu. Nada daquilo a que me vinha habituando há algumas semanas - como vos disse, qualquer
coisa como um Quasimodo especializado em literatura, cerveja preta e solidão.
Tudo me pareceu
então tão fantástico que apenas o artigo me testemunhava os insólitos acontecimentos das três
últimas semanas. Nada teria acontecido. Eu estava
de ressaca e Bloody dormia num quarto de hospital ao lado da mãe. Nada teria acontecido se as angústias do último mês
não me tivessem ressuscitado de uma vida morna que eu apenas
julgava infeliz. Com um bom banho eu estava pronto para reentrar no grande jogo. Voltei a sentar-me no sofá de couro preto, mas com uma disposição diferente.
Tudo tinha ainda acabado de acontecer, de forma tão rápida e inesperada como o
episódio que provocou todo o desenrolar desta história
mas, entretanto, já havia ideias que se ordenavam
no meu cérebro, sentimentos que me enchiam
o coração. A vida
era minha de novo e eu nunca mais a veria da mesma forma. Havia uma força
vital no ar e era a minha. Era tão estranho
sentir-me assim agora
como há umas semanas atrás eu sentira o estigma da morte em vida; que esse estigma se apoderara de mim. No fundo, uma coisa e outra eram motivo de riso e de lágrimas. Uma coisa
e outra. E agora? Qual era, agora, a reacção
própria? Era de mim que se tratava. Não havia reacção. Eu era eu. O velho eu de vinte e nove anos. Seria assim? Corri para a casa-de-banho.
Ali estava eu. Poderia
agora voltar a dar-me
ao luxo de não me reconhecer no espelho, de me achar um estranho
que sabia ser eu. Uma lágrima humedeceu-me os olhos mas não chegou a cair. Depois de tudo, sentia uma leveza estranha. Quase que
de novo uma não-existência. Mas eu sabia que não voltaria a ser assim. Pus água a correr. Despi o pijama. Abri a arca dos tesouros e procurei o Blue Lines - era assim
que eu me sentia. A Sony na sala repetia-me be thankfull for what you’ve got. Era assim
que eu me sentia. Be thankfull for what you’ve got.
Voltei a passar em frente do espelho
favorito dos meus olhos. Podia dizê-lo com absoluta certeza, agora, dos meus
olhos.
Eu
estava perfeito. Virei-me de lado. Esquerdo. Direito. Perfeito. Poderia
tudo não ter passado
de um sonho? God bless cortisona. O meu anjo da guarda
não dorme. Ele sabe do que eu preciso, mesmo antes de eu o sonhar. Enfiei-me na banheira.
Deixei-me ir até à linha dos olhos,
depois totalmente e sustive
a respiração.
Vinte e cinco.
Bungee Jumping,
um veredicto como outro qualquer
Porquê o fascínio
por coisas que não estão inscritas no nosso corpo? Porque estão
escritas na nossa natureza. Não é a
descida vertiginosa do paraquedista o que o fascina. É a possibilidade de o paraquedas não abrir o que o leva a saltar. E se não abrir, tanto pior. Mas, e se não abrir
e se não morrer? Tanto melhor. Por decreto divino, enganámos a morte. Somos
necessários. Há um propósito para as duzentas mil gerações que cruzaram os nossos genes.
O Sr. Sax que o diga.
Já não somos nós, somos a
essência da criação.
O Bungee Jumping é a versão soft e cosmopolita dessa luta entre o espírito e as leis da biofísica.
A ideia de que se as cordas e os elásticos nos aguentarem a alma iremos para casa com o propósito. Um propósito simples, o de viver depois de enganar
a morte e ficar cá e contar. Nada disto tem a ver com diversão.
Esta versão soft era a versão soft do que eu tinha passado. Eu também sobrevivi
a isto quando o problema
era exactamente
não ter morrido.
E inteiro. Com menos dez quilos. Foi aqui que eu soube que o futuro existia
também para mim. Agora era eu que devia
esperar alguma coisa da vida. Talvez
a vida esperasse alguma coisa do Andrés Filip, o jovem descomprometido que estava agora disposto a pôr um pouco de alma nos
dias que se avizinhavam.
O oxigénio nos pulmões começou
a faltar-me e eu não quis mais jogos
com o destino. Pus a cabeça de fora e devorei todo o ar que consegui.
Depois, comecei a rir-
me às gargalhadas enquanto o Horace Andy falava da monogamia. Não podia deixar de
me rir como um louco ao pensar nas minhas primeiras agonias.
Estive assim até entrar
o Tricky Kid.
Fiz a barba e enchi-me
de Hugo Boss Balsam After Shave entre o pescoço e a
testa. Não me cansava
de olhar para mim. O meu pénis recomeçava a contemplar as possibilidades mais perversas. Escondi-o
dentro das calças do meu melhor Canali. Liguei o modem e conferi a conta bancária. Os tipos da editora que se ocupam das finanças não falham.
Passei pela janela.
As minhas capacidades ópticas
tinham desaparecido
mas, por outro lado, já não
tinha dúvidas nem era consumido por aquela angústia quieta e aninhada no mais fundo de mim mesmo. Também
ela agora podia repousar até que o final
do século voltasse a desiludir-me. Mas agora não, eu não tinha dúvidas.
O parque estava deserto.
Vinte e seis.
O desenlace.
“(...) Enquanto isso tem lugar em
mim o advento do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro.”
Luís Quintais
Desenlace. Acabava de acender um cigarro, aproveitando para me reflectir no Zippo
prateado que encontrei
no meio das almofadas do sofá de pele preta quando me
entra pela casa adentro Paulina.
Quem é Paulina? Como pode Paulina entrar no
desfecho da história? Estará o sr. Andrés
a introduzir personagens-chave nas últimas páginas, coisas que ocultou
propositadamente a nós, leitores,
de forma a torná-las em trunfos decisivos num final
que, dessa forma,
nunca nos poderia
passar pela cabeça? Estará este tipo a usar o truque mais reles dos escritores de policiais? Não, meus
senhores. Primeiro, esta história
não tem final; apenas a mim afectará e uma vez lidas
as palavras “pelo menos por agora” nada mais poderá fazer por vós. E depois, esta
história não tem a ver com personagens e mais não digo.
Quem é Paulina?
Quem é esta delicada,
dedicada e gorducha
criatura que me entra
pela casa adentro.
Quem é esta velhota tão querida para mim que eu abraço
agora com tanta força e faço rodopiar
no ar antes de ela se agarrar
às minhas bochechas perfeitamente barbeadas e untadas com bálsamo
de reis? Paulina
é a governanta dos meus pais e foi a minha ama até aos dezanove anos, até que a Universidade me arrancou das suas mãos sem idade. É verdade, só naquele momento
me lembrei, eu não tinha telefonado
aos meus pais no dia que era reservado
para lhes telefonar, o meu telefone
estava desligado grande parte do tempo e ninguém sabia nada de mim.
(Como vêem, nada na
manga. Provavelmente, já os senhores
cerraram os punhos nas cadeiras, na esperança de que
eu
não faltasse ao compromisso filial. Compreendo a vossa preocupação mas faltei e fiquei em falta.)
O que sucedeu
então foi muito
simples. Os meus pais, preocupando-se
comigo como só eles se preocupam, enviaram-me o seu anjo pessoal, Paulina. E lá veio ela, metida no primeiro voo - e como ela detesta aviões - acudir ao seu menino.
Querida Paulina. Mais nova sessenta anos e casava-me hoje. Talvez
ainda vá a tempo.
Paulina, casas comigo?
Oh!, menino, deixe-se
disso - e largou aquele agradável
acorde de gargalhadas que me fazia voltar ao seu colo gordo e macio. - O que é que lhe
aconteceu? Deixou-nos a todos tão ralados.
Ora, nada, querida,
nada. Tive uns problemas
com o último artigo.
- Mas nem telefonar, nem nada.
Abri muito os olhos e fiz beicinho.
- Não foi por querer - eu voltava alegremente à minha infância. - Vou já telefonar-lhes.
- Não se preocupe, menino, eu já liguei a dizer
que está tudo bem -
fez uma pausa enquanto nos sentámos
no sofá. - Mas não está, pois não?
Eu não disse nada mas sobressaltei-me. Não estaria ainda o meu caso a salvo? Haveria ainda algum indício
que me tivesse escapado na minha fugaz passagem pelo espelho. Algo capaz de revelar
o mais temível dos meus segredos?
- Quando fui ao quarto, de manhã, o menino não estava com bom aspecto, estava a
dormir com os óculos de Sol e quando lhe pus a mão na cara parecia arder
em febre. Não o quis acordar mas venho agora das compras e aproveitei para lhe trazer
Aspirinas. Pode ser uma dessas gripes de Verão. Nunca se sabe. - Eu ouvi tudo aqui- lo
e depois pus-me a rir. Não estou com bom aspecto,
então devo estar óptimo.
- De que é que o menino se está a rir?
Nada, meu anjo. Anda, vamos jantar que eu conto-te tudo. Deixa-me telefonar
ao Pol. Lembras-te do Pol, não lembras? Hoje, vamos jantar os três. Vá, vai-te pôr bonita.
- Liguei a Technics. - Tenho aqui um disco dum senhor que tu gostas muito.
- Oh!, o Fausto. Que bom.
Conferi a conta bancária
mais uma vez. Aqueles tipos
não falham. Voltei a ligar
para a Editora e deixei o seguinte recado: “Está cá a Paulina. Diz que não estou com
bom aspecto. Preciso de três dias. Adeus”. Meia hora depois, último dia daquilo,
eu pegava na mão de Paulina e descíamos
as escadas. No rés-do-chão voltei a cabeça na direcção
da porta ao fundo e imaginei,
com o cérebro meio encolhido
e o coração apertado, um velho a preparar o seu jantar. Sem culpas. Com toda a dignidade do mundo. Chegámos à rua.
Estávamos a entrar no Verão. Decididamente. Não havia nada a fazer. O Sol, já a
meio gás, despia-nos e contornava-nos os corpos e as faces acendiam-se em tons
dourados. Estamos agora a dar a volta ao parque em direcção aos táxis. A luz continuou a ferir-me de todas as
direcções. Assomou primeiro através
das esquinas e das fachadas altas dos prédios
e, depois, quando no meu passo de pessoa de bem condicionado pela idade de Paulina passávamos
a ponte da Rua Equenot, cercou-me os sentidos
e invadiu-me até às entranhas. Até às entranhas, meus senhores, sem truques linguísticos. Senti-a
na boca e nas narinas,
para depois se instalar, cálida e quente,
no meu estômago vazio. Com um ritmo descuidado permiti
que entrasse e saísse
dos pulmões fartos do pó da casa. Tudo era magnífico e purificador e Paulina
sorria para mim, agarrada
ao meu braço. Eu seduzia a luz e o ar à minha volta tinha o magnetismo da angústia esgotada nas últimas semanas. O ar que eu movia comigo
era condicionado pela ressurreição da própria vida.
Saímos do táxi à porta do prédio onde vivia o Pol. Pouco depois ele sugeria que apanhássemos outro táxi. Disse-lhe
que não. Que tenia ganas de caminar. Na altura,
isso era, para mim, a suprema
libertação. Andar às voltas pela cidade até ficar farto. Paulina não se importou.
Tomei-lhe o braço à minha direita e fiz o mesmo com Pol à minha esquerda. Começámos
a descer a Calçada do Poço dos Negros. A tarde estava agradável. Era ainda aquela luz que apenas a minha cidade tem. Parecida
com a luz tardia da rua onde ainda estão as pedras da minha infância.
Grupos de pessoas
e famílias inteiras
caminhavam na direcção
de um centro comercial que abrira durante a minha quarentena. Estas coisas nascem como cogumelos. Seguimos os três, abraçados,
tagarelando alegremente contra a multidão,
em sentido oposto à grande turba. Era já o fim do dia com o meu Sol favorito a anunciar
o Verão mais quente dos últimos anos. O Pol perguntou-me:
- O que era aquela treta da cortisona? Já estás bem?
Não, ainda não estou bem, mas um destes dias ainda vou ser feliz. Claro, ou se é feliz
ou não se é nada.
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