O MENINO DOS MORANGOS
Manuel estava cansado. Estávamos no início do verão e ele
iria completar oito anos em Setembro. Nessa altura começaria a frequentar a segunda
classe. Encostado à parede, segurava as rédeas do burro enquanto a mãe tinha
ido fazer as últimas compras. Encontrava-se numa das laterais da avenida
principal de uma pequena cidade nortenha. Manuel vivia numa aldeia que se
situava a quatro quilómetros da cidade e tinha vindo a pé com a mãe. O pai
estava emigrado em França pois o pequeno pedaço de terra que possuíam não dava
para sustentar a família de oito filhos mais os pais e a avó paterna. Os pais
eram muito poupados e a mãe conseguia poupar quase todo o dinheiro que o marido
lhe enviava de França, naturalmente que isso representava sacrifícios para
todos. Os dois irmãos mais velhos tinham ido para a escola. Cabia-lhe a ele
acompanhar a mãe, porque nesse dia não tinha aulas. O burro tinha vindo
carregado de feijão, de várias qualidades, legumes, ovos e morangos, que tinham
sido vendidos no mercado. À sete da manhã já estavam na banca do mercado e às
onze horas tinham vendido toda a mercadoria. Isso significava que se tinha
levantado às seis da manhã. A malga de sopa e a fatia de broa, ingeridas à
pressa, antes de sair de casa, já há muito que haviam sido digeridas. Por volta
das nove comeu nova fatia de pão com azeitonas. Era tudo o que tinha. Fazia uma
hora que estava encostado à parede, olhando a esquina onde a mão podia aparecer
a qualquer momento. Era uma espera cansativa e ansiosa. O estômago começava a
refilar. Parecia um gigante a roncar reclamando alimento. Ali ao lado existia
uma escola e era hora do intervalo. Os meninos que viviam ali perto saíram e
foram a casa buscar o lanche.
Manuel acompanhava os seus movimentos de olhos
esbugalhados: era a terceira vez que ele vinha à cidade e aqueles meninos
pareciam-lhe saídos dum daqueles contos que o pai costumava contar à noite, à
volta da lareira. Todos vestidos de igual com uma camisa beije e umas calças
azuis e com sapatos! Ele olhou para os seus socos
sujos e velhos e sentiu vergonha. Instintivamente baixou a cabeça. Um dos
meninos saiu a correr da porta do prédio com um saco de papel pardo na mão, de
onde sobressaia uma bola de trigo,
conhecida na maior parte do país como carcaça.
Parou quase à sua frente e começou a enrolar o saco de papel deixando a bola de trigo à vista. Os olhos de
Manuel pareciam querer saltar das órbitas. Sem se aperceber disso o pescoço cresceu
e o corpo inclinou-se para a frente, ao mesmo tempo que salivava
abundantemente. A situação não passou despercebida ao rapaz que deveria ter
mais um ou dois anos que ele.
«Queres um
bocadinho?» Perguntou o rapaz.
«Desculpa. Não posso
aceitar.» Disse Manuel envergonhado.
O seu estômago dizia-lhe exatamente o contrário, mas a
educação que tinha recebido dizia-lhe que devia rejeitar a oferta.
«Eu sei que os teus
pais te devem ter ensinado a não aceitar, mas vê-se que estás com fome não é
verdade?»
«Sim. Comi uma fatia
de broa e azeitonas às nove horas.»
O rapaz ficou comovido. Sem dizer nada colocou-lhe a bola de trigo debaixo do nariz. Era
impossível resistir. O rapaz ficou ali a ver Manuel comer. O prazer com que o
fazia dava-lhe uma grande satisfação. Estava feliz. Entretanto chegou a mãe de
Manuel que se desfez em agradecimentos e quis saber onde morava o rapaz que se
chamava Jorge.
No sábado seguinte Manuel e a mãe bateram à porta da casa
de Jorge. Tinham vindo à cidade trazer um balde de morangos. A fruta, sem
qualquer tipo de tratamento químico, tinha um aroma e um sabor extraordinários.
A mãe do Jorge foi quem abriu a porta e ficou estupefacta a olhar para eles.
Quando a mãe de Manuel explicou a situação, ela chamou o Jorge e eles foram
convidados a entrar. Manuel estava boquiaberto. A sala para onde foram
conduzidos parecia um palácio. As janelas tapadas com belas cortinas, o chão
coberto com uma bela tapeçaria e os bancos almofadados, perdão os sofás, tudo
era novidade para ele. A sensação de conforto era tão grande que só lhe
apeteceu sentar-se e encolher-se num daqueles sofás. Para disfarçar colou-se à
mãe que, tendo apenas um metro e cinquenta, era da sua altura. Apesar de serem
convidados a sentar-se recusaram e, mal lhes foi devolvido o balde, partiram de
imediato. Antes de partirem Jorge ainda teve tempo de convidar o Manuel para
brincar com ele no domingo à tarde.
A diferença entre as duas famílias era abissal. A mãe de
Jorge não trabalhava mas provinha de uma família rica que tinha várias propriedades
e casas na cidade, pelo que tinha rendimentos elevados. O pai era oficial do
exército, o que lhe conferia uma posição respeitável socialmente e
financeiramente. Apesar disso eram pessoas simples e encantaram-se com Manuel,
sobretudo quando perceberam a sua capacidade intelectual. Era extraordinário o
nível de conhecimentos que ele evidenciava apesar da tenra idade. Manuel
gostava de ler e Jorge, que detestava fazê-lo, emprestou-lhe alguns livros. Em
troca Manuel contava-lhe a história de cada livro. Manuel era tão habilidoso a
contar a história que Jorge se quedava a ouvi-lo horas a fio. Ao fim de algum
tempo Manuel tinha esgotado todos os livros que existiam lá em casa. Jorge já
tinha percebido que o amigo não tinha possibilidades de comprar livros e falou
com os pais.
«Eu queria oferecer
um livro ao Manuel, no natal, mas vocês têm que o comprar.» Disse Jorge.
«Achas que um livro é
a oferta adequada para um rapaz com tantas dificuldades? Eu preferia
oferecer-lhe roupa.» Disse a mãe.
«Vocês ainda não
perceberam que ele já leu todos os livros cá de casa?»
«Como? Mas ele gosta
assim tanto de ler? Então um livro não vai resolver o problema.» Disse a mãe.
O pai que até aí se tinha mantido calado resolveu
intervir. Cada vez gostava mais daquele rapaz!
«Eu concordo com a
oferta de um livro, mas vamos ter de arranjar forma dele ter acesso a mais
livros.» Disse o pai.
«Como?» Perguntou o
filho com ansiedade.
Ao ver os olhos do filho a brilhar, só de pensar que
podia ajudar o amigo, o pai emocionou-se. O Jorge podia não gostar de ler, nem
de estudar e não ser um aluno brilhante, mas tinha um grande coração!
«Vou arranhar forma
de lhe atribuírem um cartão de leitor da Biblioteca Calouste Gulbenkian.» Disse
o pai.
Era uma excelente ideia! Assim o Manuel teria acesso a
uma grande quantidade e variedade de livros.
Os pais de Jorge bem gostariam que ele tivesse a mesma
vontade de ler mas este, no que dizia respeito a livros, apenas se interessava
por banda desenhada, sendo louco pelo Asterix. Eram livros fantásticos dos
quais Manuel também gostava mas caros e inexistentes nas bibliotecas.
«Se ao menos tu
lesses outra coisa para além do Asterix!» Disse a mãe.
As aulas terminaram e Jorge queria brincar todos os dias
com o amigo, mas ele tinha que ajudar nas tarefas lá de casa. A propriedade,
apesar de pequena, dava trabalho para todos e Manuel também tinha as suas
tarefas. O dia livre era o domingo e, infalivelmente, eles encontravam-se a
seguir ao almoço, lanchando em casa do Jorge. Aqueles lanches eram fantásticos.
Havia de tudo: pão de trigo, manteiga, queijo, compotas e doces variados. Como
se estava na época natalícia a variedade de doces aumentava. No entanto, por
melhor que fossem os lanches nada lhe saberia nunca tão bem com aquela bola de trigo com queijo e manteiga. Ele
nunca tinha comido nem queijo nem manteiga, pelo que a macieza dos dois,
juntamente com o pão de trigo e a forma como se desfaziam na boca, deixaram-lhe
uma sensação que o marcaria para o resto da vida.
No dia de natal Manuel foi ter com o Jorge a seguir ao
almoço. Jorge tinha-o ensinado a jogar xadrez mas Manuel rapidamente o
ultrapassou, tornando-se um profissional e até já ganhava ao pai do Jorge.
Nesse dia fez um brilharete, pois, estando presentes várias pessoas da família
de Jorge, foi feito um torneio e Manuel ganhou a toda a gente. Os primos do
Jorge, que eram um pouco mais velhos, não gostaram de ser derrotados por um
fedelho da aldeia e não perderam a oportunidade para se vingar.
«Então o que é que o
menino Jesus te trouxe no natal.» Perguntou o mais velho, que tinha dezasseis
anos.
«O costume.»
Respondeu Manuel, meio embaraçado.
Jorge ficou surpreendido. «Afinal ele sempre recebia
prendas no natal?» Pensou.
«Então recebes todos
os anos a mesma coisa?» Insistiu o rapaz.
«Sim.»
«Que monotonia. Mas
afinal o que recebes-te?» Insistiu.
«Amor.»
O rapaz desatou à gargalhada. Acompanhado pelos
restantes.
«Quer dizer que não
recebeste nada. Pior, quer dizer que nunca recebeste uma prenda de natal!»
O rapaz ria-se a bom rir e os outros acompanhavam-no
apontando-lhe o dedo. Manuel não queria dar parte de fraco mas a verdade é que
lhe pesava o facto de não receber uma lembrança como todos os outros rapazes,
quer no natal quer no seu aniversário. Normalmente isso não era importante, mas
quando a questão surgia ele acusava o impacto. Jorge saiu em sua defesa.
«O Manuel não vos
quis dizer, mas ele recebeu um livro. Eu vou buscá-lo para vocês verem.»
Jorge foi ao quarto e trouxe o último livro do Asterix
que tinha recebido e exibiu-o.
«O Manuel como sabe
que eu gosto muito da coleção trouxe-o para eu o ler.» Rematou Jorge.
Manuel sabia que o livro era do Jorge e que seguramente continuaria
a ser, mas o seu gesto deixou-o comovido. Quis dizer alguma coisa mas as
palavras não lhe saíram. A mãe de Jorge que tinha vindo em auxílio do Manuel
parou a ver a reação do filho e ficou à distância contendo a emoção. Quando a
cena terminou foi discretamente ao quarto secar os olhos. O seu filho era um
tesouro!
Entretanto, os primos de Jorge, reunidos à Volta de
Manuel olhavam para o livro com cobiça. Aquela era a prenda que todos eles
desejavam e que nem o primo Jorge, que era rico, tinha conseguido. Manuel gozou
o momento de glória com algum incómodo e quando o seu olhar se cruzou com o de
Jorge os seus olhos disseram «Obrigado!» Ao meio da tarde os primos e tios
partiram. Um deles, quando ia a sair passou-se a mão pela cabeça e disse:
«Então tu é que és o
menino dos morangos?»
Manuel limitou-se a sorrir. Sentia-se contente por não
ser conhecido pelo “rapaz do burro”. A casa ficou subitamente em silêncio.
Jorge foi junto da árvore de natal e trouxe um embrulho e o seu pai aproveitou a
oportunidade e juntou um envelope.
«Espero que gostes. É
o último da coleção de “Os cinco”.
Manuel estava tão emocionado que não conseguiu articular
uma palavra. Entretanto, o pai do Jorge aproveitou a oportunidade e explicou.
«O cartão de leitor
da Gulbenkian vai permitir-te acesso a variadíssimas obras de natureza diversa.»
Manuel não conseguiu conter a emoção e as lágrimas
escorreram-lhe pelas faces. Ele escondeu o rosto com vergonha. O amigo
abraçou-o e Manuel, entre soluços, agradeceu. Os pais de Jorge, contagiados
pela emoção, envolveram os dois num abraço carinhoso. Muito mais importante do
que qualquer prenda era o amor partilhado naquele abraço. O abraço era por
ocasião do Natal mas o amor era para a vida toda!
Comentários
Enviar um comentário