O
CAMINHO DA SUPERAÇÃO
Emília
estava tão envolvida na conversa com a vizinha que nem se apercebeu das horas.
Era uma e meia e ela ainda nem sequer tinha começado a fazer o almoço. Na
verdade, estava tão irritada, quando se refugiou na varanda, que nem sequer
tinha pensado o que fazer para o almoço. Quando chegou à cozinha Pedro estava à
volta dos tachos.
«Esqueci-me completamente do almoço!» Disse
Emília
«Não te preocupes, amor. Eu já tratei disso.»
«Também precisamos de ir às compras… Meu Deus
perdi-me completamente!»
«Eu fui às compras e trouxe tudo o que estava
na lista, mais algumas coisas, tal como fruta e legumes. Vê se falta alguma
coisa.»
Emília
fez uma verificação rápida e não faltava nada. As compras do fim-de-semana
estavam feitas! Ela ficou a olhar para Pedro sem saber o que dizer.
Aproximou-se, lentamente, dele abraçou-o por trás, beijou-o no pescoço e disse.
«Sabes que eu te amo!»
Ele
largou as batatas, virou-se, abraçou-a e correspondeu ao beijo dela.
«Eu também te amo… muito!»
O
almoço foi peixe ao sal, acompanhado de batata cozida e salteada e legumes.
Pedro tinha tratado de tudo e a mulher estava encantada, mas irritada.
Dizer-lhe que ele tinha estado bem significava reconhecer a sua ausência do
processo, uma falha que ela considerava inaceitável. A sua incapacidade para
aceitar a situação, usufruindo da mesma tranquilamente, quase arruinou o
almoço.
«Podes tirar o café por favor?»
O
pedido do marido atuou como um calmante. Era a oportunidade de participar na
refeição. Era a sua oportunidade de se tronar útil.
«Aqui tens, meu amor.»
Emília
insistiu em ser ela a arrumar a cozinha sozinha, ao que Pedro acedeu de bom
grado. Tinham decidido não sair de casa devido, ainda, às restrições do
confinamento, pelo que foram para o sofá, ver filmes ou a ler. Emília passou
parte da tarde a fazer buscas na internet, de textos sobre a aceitação. Isso
acabou por a deixar bastante desconfortável. A maioria dos textos apresentava a
aceitação numa perspetiva religiosa, que associa a aceitação a uma espécie de
fatalidade. Ela não queria isso. A forma como tinha entendido a aceitação era uma
espécie de reconhecimento da existência de um determinado facto ou situação,
como ponto de partida para a identificação da forma de a alterar, caso esta não
fosse do seu agrado. Fatalidades não era com ela!
Emília
sentia-se intranquila e ansiosa. Era com se tivesse o seu interior em
efervescência. Apesar de estarem várias pessoas na sala, cada uma estava
ocupada com as suas coisas e embora reconhecessem a presença mútua, não
interagiam uns com os outros. Apesar disso, ela sentia que cada presença a
incomodava, como se a mera presença destas representasse um questionamento.
Voltou a sentir-se deslocada e desconfortável naquele corpo. Tinha a estranha
sensação de que o corpo não lhe pertencia. Aquele corpo não era o seu. Decidiu mudar
de ares e aproveitar o fantástico fim de tarde. Assim sempre apanhava um pouco
de ar. A brisa do entardecer já se fazia sentir, mas o facto de ter estado um
dia muito quente, tornava aquele fim de tarde ameno e reconfortante. Ela fechou
os olhos e relaxou um pouco. Mentalmente reviu a última conversa com a vizinha
e verificava que agora esta fazia menos sentido.
«Olá Emília, como está?»
«Boa tarde D. Teresa.»
«Penso que está na altura de abolirmos o
tratamento formal entre nós. Depois das confidências que trocamos, o tratamento
informal é o mais adequado.» Propôs a anciã.
«De acordo.»
Ficaram
as duas caladas, durante alguns minutos, como se quisessem atribuir-se,
mutuamente, a oportunidade de gozar aquele momento sem interferências. Foi
Emília quem quebrou o silêncio.
«Eu estou um pouco confusa. Hoje de manhã
tudo parecia claro e até bastante simples. No entanto, mal entrei em casa as
coisas complicaram-se.»
«Conta-me tudo.»
Em
meia dúzia de palavras, Emília relatou a situação que a anciã escutou com
redobrada atenção.
«A aceitação tem várias fases que são
distintas de pessoa para pessoa. No entanto, é normal que esta seja questionada
ou mesmo colocada em causa. Existem até situações onde se verifica um
retrocesso. No entanto, tudo isso faz parte do processo de interiorização da
própria aceitação.»
«Isto é tudo muito complicado e subjetivo.
Num momento parece que tudo bate certo, para no seguinte nada fazer sentido.
Parece um processo muito pouco científico!»
«Embora não pareça um processo científico, na
verdade é. Acontece que estamos a falar de ciência comportamental. Não estamos
a falar de leis da física, da matemática ou mesmo de medicina. Isto não é um
comprimido para a dor de cabeça, que produz melhoras logo após a sua toma. O
comportamento do ser humano, embora possa ser previsto, em linhas gerais, é do
mais subjetivo que existe e depende de um conjunto de variáveis tão diverso e
complexo, que gera, muitas vezes, o desconforto e a intranquilidade que nos
levam a colocar tudo em causa. No entanto, não podemos perder de vista que
estamos a falar, exatamente da ciência do questionamento. Portanto, pôr em causa
uma conclusão também faz parte do processo. A sua revalidação deve ser feita o
número de vezes que for necessário até gerar conforto.»
As
palavras da anciã eram de uma coerência irrefutável. No entanto, não prometiam
nada, nem garantiam nada e deixavam o ónus do lado de cada um, pelo que eram
impossível de alocar responsabilidade pelo insucesso a outra pessoa que não nós
próprios. Era uma receita infalível. Assemelhava-se às receitas da “banha da
cobra”, dos vendedores ambulantes, ou seja, aquelas que prometiam curar todas
as maleitas, mas não atuavam sobre nenhuma. Apesar disso, era inegável que
Emília tinha mudado, embora ligeiramente, o comportamento, desde que tinha
começado a falar com a anciã e que isso lhe fazia muito bem. Talvez o método
não fosse cientificamente testado, nem funcionasse com toda a gente, mas com
ela parecia funcionar. Esta reflexão, brutalmente demolidora, passou-lhe pela
cabeça. Era a revolta a falar. Pensando bem, ela não tinha razões para colocar
em causa o método. Antes pelo contrário.
«Porque é que, hoje, eu estava tão irritada
com Pedro, apesar do seu comportamento exemplar. Ele nem sequer me cobrou
nada!»
«Essa é uma pergunta à qual só tu poderás
responder. No entanto, se tivesse que encontrar uma resposta, diria que se
trata do efeito projeção.»
«O que é isso?»
«E um conceito que vem da psicologia. Em
termos muito simplistas, trata-se de projetar nos outros, ou sobre os outros, a
responsabilidade ou culpa por um comportamento nosso, que não sendo aceitável,
não queremos admitir. É um mecanismo de defesa utilizado pelo nosso cérebro pra
reduzir a ansiedade.»
«Meu Deus… é isso mesmo! Estava a projetar
sobre o Pedro a culpa que senti por me ter esquecido completamente do almoço e
das compras.»
«Eu não sou psicóloga, mas é mais ou menos
isso. Nota que, diretamente isto não tem nada a ver com aquilo que temos estado
a falar, ou seja com o Porquê. No entanto, pode muito bem ser o chamado efeito
colateral.» Disse a anciã.
«Quer dizer que isto é um efeito secundário
da minha insatisfação com o u corpo?»
«Não iria tão longe. O que eu quis dizer é
que o estado de irritação e ansiedade vivido por causa da insatisfação com o
corpo amplifica os outros estados de alma, aumentando o seu efeito. Em termos
comportamentais tudo está ligado e dependente.»
O
silêncio voltou a instalar-se. Emília estava a assimilar tudo o que tinha sido
dito, mas ainda assim experimentava dificuldades em lidar com a aceitação.
«Esta coisa de eu ter de aceitar o meu corpo
continua a fazer-me uma alguma confusão.»
«Talvez isso esteja associado à forma como
colocas a “coisa”. Tu não tens de aceitar o teu corpo como é. Tu tens de
aceitar que o teu corpo é como é. Isso é um facto. A forma como pensas no
assunto torna-o demasiado definitivo. Dá-lhe um caráter permanente, quando isso
não tem de ser assim. Esse facto, que é uma verdade absoluta hoje, pode ser
mudado no futuro, portanto, aceitar que o facto é uma verdade hoje, não tem
nada de determinístico, nem pode ser visto como um fatalismo. No entanto, a
forma como tu o colocas representa-o assim.»
«Estou a ver. Parece que tenho estado a olhar
para o assunto de forma errada. Efetivamente o meu corpo é como é, embora eu
gostasse que ele fosse diferente.»
«Ora aí está. A Emília acabou de enunciar os
dois estados que necessitam de ser
aceites e reconhecidos para que se consiga a superação.»
«Agora é que eu não percebi nada.»
«Na verdade, é relativamente simples. A Emília
reconhece que o seu corpo é aquilo que é e, em simultâneo, deseja que ele seja
uma coisa diferente. O processo de passar de um estado para o outro estado
é conhecido como processo de superação.»
«Quer dizer que existe uma forma de eu ter o
corpo que desejo?»
«Não foi isso que eu quis dizer. O processo
tem essa designação, mas isso não quer dizer que tal seja possível.»
«Então quer dizer que todo o processo porque
passei não valeu de nada?»
«Nem tanto ao mar ou tanto à terra. A
passagem de um estado para o outro estado não está garantida à partida, mas
também não quer dizer que seja impossível. Existem muitos fatores a ser tomados
em consideração e por vezes existem limitações.»
Emília
acenou com a cabeça. Tinha entendido a mensagem. Talvez fosse altura de começar
a pensar como realizar a mudança que tanto desejava. Uma coisa era certa era
tempo de ir tratar do jantar, antes que Pedro tratasse dele como fez com o
almoço.
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