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OS AMANTES




OS AMANTES

Estava um dia de outono fabuloso, pois embora o frio já tivesse chegado e nos últimos dias a chuva tivesse caído com abundância, o sol havia regressado e senti-lo através do vidro dava-lhe uma sensação de conforto quase semelhante ao calor humano. O pensamento voou para o marido. Estavam casados há dois anos e estes tinham sido uma constante lua-de-mel. Ele dizia muitas vezes que eram o casal mais feliz do mundo e ela concordava. Pensar no João proporcionava-lhe sempre um estado de excitação fora do normal, mas a verdade é que ela era uma mulher que se deixava levar pela imaginação e quando se encontrava nesse estado o contacto físico era como uma explosão de prazer.

Quando vislumbrou a bomba de gasolina o seu subconsciente recordou-lhe que o carro estava na reserva. Aquela reunião em Cascais não era nada conveniente, sobretudo porque quando estava a caminho recebera a informação que só iria começar às dezoito e trinta e ainda faltavam três horas. Parou o carro, abasteceu e libertou o espaço da bomba, dirigindo-se para caixa. Pagou o combustível e as pastilhas elásticas e dirigiu-se para a saída concentrada na mala, quase chocando com um homem que também se dirigia para a porta.  

De forma casual cruzaram um olhar hipnótico. Ficaram parados sem conseguir evitar o olhar um do outro. Era como se eles se dominassem mutuamente ou estivessem de tal forma em sintonia que um indicava ao outro aquilo que queria e o outro obedecia sem questionar. Depois de se olharem durante um período, que pareceu uma eternidade, ele acenou com a cabeça em direção à porta, saindo por esta e ela segui-o, obedientemente.

Ela agia quase como uma autómata, seguia aquele homem sem saber porquê embora sabendo muito bem aquilo que queria dele. O seu corpo tremia numa mistura de medo e ansiedade. Ela era uma mulher casada. Aquilo não podia estar a acontecer! No seu peito o coração batia acelerado e um sentimento de agonia invadia-a ao pensar no marido, mas o resto do seu corpo impelia-a para aquele homem e quando fixava o olhar nas suas costas largas e perfil atlético, toda ela estremecia de prazer.

Depois de passarem a receção, onde ele tratou das formalidades, seguiram para o elevador onde entraram conjuntamente com mais três pessoas. As suas mãos tocaram-se, involuntariamente e ambos estremeceram de prazer. Era uma atração animal! A tensão no ar era de cortar à faca, mas, apesar disso, não se tocaram nem disseram uma palavra até ele fechar a porta do quarto. Depois atiraram-se um ao outro sedentos na satisfação um desejo insaciável que os fez ignorar qualquer delicadeza ou cuidado, mesmo sendo dois desconhecidos. Num ápice estavam os dois nus, explorando o corpo do parceiro e encontrando prazer em todos os contactos, desde os mais suaves aos mais ousados ou mesmo violentos.

Quando o cansaço se tornou superior à vontade de saciarem a necessidade que os impelia um para o outro, sem dizerem uma palavra, ela dirigiu-se para o chuveiro, enquanto ele foi até à pequena varando fumar um cigarro. Quando ela ficou pronta virou-se para ele e disse.
- Adeus.
- O meu nome é Pedro. - Disse ele.

Ela ficou parada, com a mão na maçaneta, por uns instantes e depois voltou-se para ele. Vê-lo era um martírio, sobretudo quando no seu íntimo sentia uma vergonha profunda por tudo o que acabava de acontecer, mas esse sentimento não anulava a vontade que tinha de estar com ele.
- Eu sou a Ana.
- Tenho uma proposta para te fazer. - Disse ele.
- Sim. – Respondeu.
- Como hoje é dezasseis de Novembro, proponho que nos encontremos aqui, de dois em dois meses, sempre no dia dezasseis.
- Sem mais nenhum contacto ou confirmação? – Perguntou ela.
- Sim. – Respondeu.

Ana pensou durante alguns instantes e depois, sem perceber como, concordou com aquela proposta absurda, desculpando-se mentalmente com o facto de poder não comparecer ao insólito encontro.

Fazia exatamente quatro anos que Ana e Pedro se encontravam, com a regularidade acordada, no Hotel Ibis, da estação de serviço da Galp, situado na A5. Por razões que ele desconhecia ela tinha faltado, de forma sistemática, aos encontros do mês de janeiro e ele tinha faltado ao de março desse ano, por estar constipado. Nenhum deles tinha informado o outro previamente da ausência ou dado justificação posterior para a mesma. Aquele era o acordo e mesmo que o quisessem fazer não tinham meios para tal. Eles não sabiam nada um do outro nem sequer o número do telemóvel. Mais uma vez as duas horas de sexo tinham sido tão intensas, loucas e desbravadoras como as do primeiro dia. E, tal como na primeira vez, Pedro estava à varanda a fumar um cigarro.

De olhar no horizonte Pedro assistia aquele pôr-do-sol guerreiro. As nuvens, que no horizonte pareciam unir o céu e a terra, tinham sido pintadas em tons de amarelo e vermelho. Aqui e ali apareciam formas de guerreiros montados em carros de combate, tal qual uma pintura de guerra. Tudo em redor tinha sido tingido da mesma cor e um rio de sangue parecia correr debaixo de um céu vermelho. Era esse também o seu estado de espírito.

Quando o colorido se desvaneceu e o lusco-fusco deu lugar ao escuro da noite, Pedro encontrava-se absorvido nos seus pensamentos e de forma quase automática virou-se para acenar a Ana que se despedia.
O seu pensamento voou novamente para a festa de família que tinha no sábado seguinte. Aparentemente a sua mulher tinha uma meia-irmã, que se chamava Ana e era filha do mesmo pai. Depois de se terem encontrado, apenas as duas, por várias vezes, tinham decidido fazer um encontro das duas famílias. Aquilo estava a incomodá-lo de uma forma estranha, talvez pelo facto da meia-irmã ser casada com um administrador de uma empresa e ele conhecia bem esse tipo de gente, pois era motorista de um, que, não sendo má pessoa, tinha uma forma de ver o mundo a e uma vida muito diferente da dele.

Era sábado e eles iam a caminho de Cascais. Ao passar pelo Íbis Pedro sentiu um calafrio que atribuiu ao facto de estar a passar ao lado do seu antro de pecado e levar ao seu lado a mulher que tão feliz o fazia. Apesar de viver aquela situação há quatro anos ele não a conseguia explicar. Amava a sua mulher acima de tudo e seria capaz de fazer qualquer sacrifício por ela, mas não conseguia prescindir daquelas duas horas de sexo com uma desconhecida. O seu estado de espírito não era o melhor desde que tinham saído de casa pois quando a Inês lhe indicou a morada para onde iam ele reconheceu-a de imediato, optando por manter o silêncio sobre o facto. Inês percebeu o estado de ansiedade do marido, perante o encontro com a família e fez um comentário casual.
- Sabes que a Ana deixou implícito que tinha tido ou mantinha encontros com um homem neste Ibis?
- O que? – Perguntou Pedro, com sobressalto na voz.
- Nada de importante. – Disse ela ao ver a sua expressão.

Estacionaram, sem dificuldade, no parque privado da moradia onde se encontravam mais de duas dezenas de carros e foram recebidos pelo João, que veio buscá-los à porta. A sua cara de espanto quando os viu, deu lugar a uma gargalhada sonora. João era o presidente do conselho de administração da empresa onde Pedro trabalhava, como motorista de um dos administradores e aquela receção deixou Pedro completamente desarmado.
- Que grande surpresa! Pedro dê cá um abraço!

Pedro meio embaraçado com a situação foi levado até ao interior da casa onde o esperava a maior surpresa da sua vida.
Ana era tão simpática quanto o marido e Pedro foi recebido de forma não apenas simpática mas entusiástica. Afinal os seus receios eram infundados. Pedro olhou em redor para se certificar de que estava efetivamente tudo bem e começou a circular ao lado de João, sendo apresentado aos membros da outra parte da família. Eles tinham sido os últimos a chegar e João já conhecia toda a gente.

Quando chegaram ao jardim Pedro deu de caras com o olhar zombeteiro de Francisco, o seu chefe. Foi aí que ele se recordou que existia uma relação familiar, que ele não sabia especificar, entre o seu chefe e o João. Esse encontro tornou a situação um pouco desagradável, mas o verdadeiro choque aconteceu quando João apresentou a Pedro a prima da Ana, que por coincidência também se chamava Ana. Pedro ficou lívido e só a muito custo os seus lábios pronunciaram as palavras «muito prazer».

Ana acabara de o vislumbrar no momento imediatamente anterior a ser apresentada. Ela ergueu os olhos e viu passar na sua frente o filme dos encontros com aquele homem. Tinha estado com ele dezanove vezes mas não sabia quem ele era, o que ele fazia, onde vivia ou qualquer outra informação. Cada vez que se encontravam limitavam-se a saciar o desejo, proporcionando e sentindo um prazer indescritível e de tal forma intenso que os havia mantido ligados durante aqueles quatro anos. Agora ele estava ali à sua frente! Era como se o filme tivesse terminado. Sim, era o fim.

O ar zombeteiro de Francisco desapareceu como que por encanto e ele ficou a olhar para os dois, alternadamente, como se estivesse a ver um jogo de ténis. Pedro teve a sensação de que Francisco tinha percebido claramente que algo se passava entre ele e Ana, a sua mulher. Inês, que entretanto também se tinha juntado ao grupo, percebeu a estranheza do ambiente e levou Pedro para outro lado, pegando-lhe gentilmente pelo braço.

Nada voltou a ser o mesmo. Depois do encontro, num ambiente familiar, entre ele e a sua amante, tornou-se impossível separar a existência desta da sua vida de casado. Pedro passou a ter um comportamento mais reservado e a jovialidade, tão caraterística da sua personalidade, desapareceu. No trabalho as coisas também ficaram estranhas e ele deixou de ser motorista do Francisco que passou a tratá-lo de forma muito hostil, tendo insinuado, na única conversa que tiveram, que ele era um elemento desestabilizador da família, deixando Pedro sem saber como interpretar essa afirmação.

Pedro e Ana, a sua amante, na única oportunidade que tiveram de ficar a sós, durante a festa, combinaram não mais se encontrar e esquecer aquilo que se havia passado entre eles, embora tal fosse difícil para ambos. Na despedida Ana colocou a mão no braço dele, de forma carinhosa e deu-lhe um beijo na face, tendo sido surpreendida pelo marido o que a fez afastar-se de forma brusca, deixando Francisco mais uma vez desconfiado.

Apesar dos sentimentos que cada um albergava no seu íntimo e que criavam uma barreira invisível Pedro e Inês eram um casal feliz, sendo mesmo conhecido como o casal mais feliz de Alcochete e a vida pareceu retomar a normalidade até que um acontecimento fatal veio colocar a família em alvoroço.

João não conseguia tirar o olhar daquele inferno de chamas. O fogo tinha tomado conta da moradia de uma forma voraz e, empurrado pelo vento intermitente, emitia roncos surdos como os de um animal selvagem devorando a sua vítima. A estrutura do edifício emitia sons que se assemelhavam a gritos de dor para em seguida ruir de forma estrondosa. Mas o que tornava a cena perfeitamente dantesca eram os gritos do casal, que não tendo conseguido fugir, perecia à mercê das chamas.

O incêndio tinha começado ao fim do dia, altura em que normalmente Inês estava no ginásio, mas ela tinha ligado ao Pedro desafiando-o para o seu ninho de amor. Pedro quando chegou ao local já o fogo ardia com intensidade consumindo a moradia, uma construção ecológica e como tal toda em madeira. Ele era o único que sabia que Inês estava lá dentro e por isso os poucos populares que ali se encontravam não conseguiram impedi-lo de entrar. 

Quando os bombeiros chegaram já a casa tinha ardido completamente, para desespero dos presentes, entre os quais se encontravam João, Francisco e as respetivas mulheres, que assistiram estarrecidos à retirada, de entre os escombros, dos cadáveres carbonizados. No meio do choro silencioso, apenas se ouviu a voz do Francisco como um lamento:
 - Meu Deus, porque é que eles haviam de estar em casa? – Dizendo depois com raiva. – Não era suposto eles estarem em casa!







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