ESTADO DE SÍTIO
A casa, aquecida por meses sucessivos de calor, tornou-se
desconfortável, assemelhando-se a uma fornalha
industrial, diferente do local aconchegante e protetor que sempre fora.
O seu lar, refúgio passado de tantos momentos difíceis,
recusava-se a proporcionar-lhe aquilo por que mais ansiava, o descanso do corpo
e a paz do espírito. O calor, fora de tempo, abafado, sufocante, invadia o
interior e penetrava-lhe na alma. Tudo se conjugava negativamente de tal forma
que até as pequenas coisas assumiam proporções desmesuradas e até mesmo
absurdas.
O sofá aquecia-lhe as costas e humedecia-lhe as nádegas,
parecendo querer expulsá-lo de casa, as notícias, na televisão, falavam de
incêndios, mortes furacões, corrupção e anunciavam pomposamente medidas para
resolver todos os problemas, ignorando que os políticos continuavam a tomar
decisões populistas, sempre em nome do povo que traem e enganam todos os dias.
Abandona a sala e procura o aconchego do quarto, na
expectativa de algumas horas de repouso. O ar condicionado arrefece-lhe o corpo
inerte. Desliga-o, para constatar que este apenas arrefeceu, temporariamente, o
ar. Afasta o lençol e tenta dormir, embora sem sucesso, pois todos os seus
poros protestam, em simultâneo, humedecendo-lhe o corpo e a cama.
Finalmente adormeceu. O sono abraçou-o de tal forma que sentiu
que caía num vazio sem retorno. À medida que mergulhava nesse vazio foi
invadido por um inexplicável mal estar que o fez sentir estranho. Subitamente,
o mergulho no vazio foi interrompido pela sensação desagradável do metal frio
contra a sua garganta. O seu quarto tinha sido invadido por vários homens que o
mantinham sobre ameaça de um punhal, ao mesmo tempo que lhe injetavam um liquido
na perna esquerda que o deixou imobilizado. Um frio húmido começou a
entorpecer-lhe os pés e uma sensação de terror encheu-lhe o peito. A sua cabeça
ordenava-lhe que se mexesse, que se libertasse, que lutasse contra aquela
imobilidade, agora que os homens tinham abandonado o quarto, mas o seu corpo
recusava-se a obedecer. Apesar de não a conseguir ver sentia perfeitamente o
ferrão da agulha na sua coxa e aquela sensação húmida e fria nos pés. O seu
corpo estava em estado de sítio!
O desespero tomou conta de si e a sensação de que ia
morrer ali, deitado naquela cama, tornou aquele momento tão doloroso, tão
insuportável, que todo o seu ser se revoltou.
Acordou
sobressaltado com um estrondo provocado pela queda de um objecto mesmo ao seu
lado. Abriu os olhos, acendeu a luz e olhou à sua volta. O lençol enrolado à
volta das pernas imobilizava-as. O Tejo lambia-lhe os pés ao mesmo tempo que
lhe fixava as unhas da pata na coxa esquerda. Lançou um olhar rápido e
assustado à sua volta. O quarto estava em paz e os únicos vestígios da sua
interrupção eram os pedaços da jarra de vido que cobriam o chão.
Afinal tudo não passara de um sonho!
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