A TRAIÇÃO
Estávamos no início da primavera
de 2011. As árvores, em flor, já coloriam a cidade, emprestando-lhe um tom
alegre, tendo-a obrigado a despir o manto cinzento que vestira no outono.
Apesar disso, o tempo mantinha-se chuvoso e frio.
Ricardo Jorge abriu o envelope,
deixado pelo detetive privado, com curiosidade mas sem pressa. A visão do seu
conteúdo foi um choque! As fotografias eram definitivamente incriminadoras, a
questão era saber quem era o criminoso, ele ou a sua mulher! Deixou-se absorver
pelos seus pensamentos e nem o ruído da sala ao lado o alertou para o facto de
já passar da hora da reunião do conselho de administração. Deixou a mente
vaguear por um conjunto de eventos: O drama do seu casamento, o resultado da
sua última noitada, o processo de fusão ou venda da empresa a cujos destinos
presidia, o drama do país, na indecisão de pedir ou não a intervenção da Troika
e a própria crise mundial, desencadeada pelo famigerado “subprime”. Os
acontecimentos sucediam-se e entrelaçavam-se de tal forma que pareciam em simultâneo
ligados e desconexos. Fechou os olhos e a imagem que lhe veio à mente foi a de
uma matrioska. A trama da sua vida era tecida com vários novelos de cores e
densidades distintas! O telefone tocou chamando-o à realidade, era a
secretária.
A reunião de conselho começou com
o visionamento de uma peça que incluía uma alocução do primeiro-ministro
garantindo que não iriam pedir ajuda à EU e com uma entrevista do ministro das
finanças deixando antever exatamente o oposto.
-
Meus senhores temos que tomar uma posição relativamente a estratégia a
adotar, por isso decidam-se: queremos ser pura e simplesmente comprados ou
queremos ser um parceiro interventor num processo de fusão? – Disse Ricardo
Jorge.
-
O que precisamos é de mostrar que a operação em Portugal é viável e que o
mercado tem potencial. O resto é irrelevante – Disse o administrador da área
operacional.
-
A nossa quota de mercado é firme e o potencial de crescimento é bom. –
Disse o administrador comercial com vaidade e uma arrogância infantil.
-
Vocês ainda não perceberam que o caminho que os políticos escolherem para
Portugal vai ser determinante para a decisão dos nossos parceiros americanos? –
Disse o Financeiro com perplexidade.
A discussão prolongou-se por
várias horas sem se atingir um consenso. Ricardo Jorge, apesar de fisicamente
presente, refugiou-se no seu pensamento. Ele sabia que apenas o Pedro,
administrador financeiro, tinha uma visão que se aproximava da sua. Mas a
verdade é que nenhum deles sabia o caminho a seguir, pois isso estava muito
dependente da opção política e económica que o governo iria tomar, que por sua
vez era influenciada pela crise mundial. «O problema é que as decisões são
tomadas em planos distintos, que se ignoram mutuamente, mas que se
influenciavam de forma recíproca! – Pensou». A teia de interligações era densa e
a decisão deles dependia não tanto da densidade da teia mas da sua capacidade
de se aguentar como um todo.
Terminada a reunião Ricardo
dirigiu-se ao escritório do seu advogado. A sua última noitada tinha resultado
num conflito em que, sendo ele a vítima, se via subitamente acusado de difamação
por uso de adjetivos demasiado brandos na qualificação da ação do seu agressor.
-
Alguém deve ter descoberto quem tu és e estão a tentar extorquir-te
dinheiro. Mas podiam ter sido mais inteligentes na apresentação do caso. – Disse
o advogado.
-
Não se trata apenas de uma questão de inteligência, mas sim de rigor, para
mim a sua falta é inaceitável! – Respondeu.
-
Os anexos mais a contestação estão concluídos. Estamos a falar de um
dossier de duzentas páginas. - Disse o advogado.
Ricardo acenou com a cabeça e
pouco depois estava de saída. Entrou no carro e pôs-se a caminho de casa.
As notícias eram as mesmas. O
dólar e o euro digladiavam-se! O mundo andava às avessas e a sua vida aos
trambolhões, enquanto Portugal hesitava sobre o caminho a seguir. Decidiu dar
uma volta de carro antes de ir para casa e foi até Cascais, pela marginal. O
mar aclamava-o e ele precisava de estar calmo pois havia muito para decidir,
pessoal e profissionalmente, mas o mais premente de tudo era o futuro da
relação com Patrícia, a sua mulher. Os olhos humedeceram-se. Apesar de tudo ele
amava-a, mais do que pensara ser possível!
Comentários
Enviar um comentário