O BEIRÃO
Estávamos em Novembro de 1975. Afonso Dias, um proprietário agrícola,
estava sentado, dobrado sobre si mesmo, com o ouvido encostado à telefonia,
tentando escutar a peça de reportagem da BBC que chegava até si, por entre os
ruídos estáticos. A preocupação sobre a evolução dos destinos da política
nacional havia muito que deixara de ser exclusivamente portuguesa, mas, de
acordo com a BBC, o risco de Portugal se tornar numa ditadura de caráter marxista
era uma preocupação real, comungada por americanos e europeus, ao ponto de, em
conjunto, definirem uma estratégia para contrariar tal situação. A trama
desenvolvia-se na sombra!
Afonso Dias recostou-se para trás e, tendo como fundo os ruídos que vinham
da cozinha, onde a esposa lavava a loiça do jantar e os cinco filhos brincavam
à volta da lareira, ponderou sobre a decisão que estava prestes a tomar. Apesar
de se considerar um homem de direita sempre gostara de estar bem informado, não
se contentando com as notícias com que o “sistema” alimentava o povo, por isso,
já no tempo de Salazar, ouvia a BBC, embora tal fosse proibido à época. Desde a
viragem à esquerda, iniciada com o golpe de 11 de março, que a clivagem
política se vinha agravando à medida que aumentava o risco de uma ditadura de
esquerda. O PS tinha-se aliado ao PSD e PPM para defender a democracia, ao
mesmo tempo que a extrema-direita falava em pegar em armas e a extrema-esquerda
dominava as forças armadas. O país vivia um drama! As pancadas na porta
sobressaltaram-no.
Afonso foi ao encontro dos seus interlocutores, homens que secretamente
pertenciam ao ELP (Exército de Libertação de Portugal) e que procuravam o seu
apoio. Aceitou a boleia até à casa paroquial, que ficava a dois quilómetros,
tendo sido massacrado, durante o percurso, com os argumentos dos visitantes.
A reunião já tinha começado e o padre João estava com dificuldades em
controlar o seu curso. Estava em causa a organização da procissão do Senhor das
Chagas e os membros da comissão de festas apenas estavam preocupados com as
obras que a junta tinha de fazer, para que a procissão pudesse dar a volta à
aldeia. No entanto, a presença do presidente da junta, um homem de
extrema-esquerda que vestia a capa de socialista, de Afonso e de Pedro Castro,
um jornalista da Voz das Beiras, tinham dado à reunião uma conotação política.
- Sr. Padre, o senhor tem de parar de aproveitar as
homilias para defender o voto nos partidos da direita. Eles são uns bandidos
fascistas, veja como as sedes do partido socialista têm sido vandalizadas, no
norte de Portugal. – Disse o presidente da Junta.
- A Igreja não defende partidos mas condena a ideologia
marxista porque ela tem como objetivo a destruição do cristianismo. –
Argumentou o padre.
- A política marxista está a dar cabo do país, com as
nacionalizações da banca, da indústria, das herdades agrícolas, etc. Vão
levá-lo à falência. – Gritou o jornalista.
- O que é que isso tem a ver com a procissão? Nós só
queremos que a Junta faça as obras para os andores poderem dar a volta à
aldeia. – Gritava Xico, o líder da comissão de festas, secundado pelos
restantes membros, para quem o verdadeiro drama era a procissão não passar por
toda a aldeia.
Afonso Dias não queria entrar naquela discussão pois a sua mente estava ocupada
com outras coisas. «Pobres coitados nem imaginam a “Procissão” em que o país
está metido! O andor que lhes vai calhar não vai ser nada leve... – Disse entre
dentes». Ele estava ali na qualidade de membro da Comissão Fabriqueira, que
apenas cuidava das obras da igreja, por isso não era obrigado a opinar. Olhou
para o relógio. Eram vinte e uma horas e a sua amante já estava à sua espera.
«Esta maldita reunião que nunca mais acaba. Pensou». Durante alguns instantes
prestou atenção à troca de argumentos, depois viajou «O que devo fazer quanto
às armas do ELP?».
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