O JULGAMENTO
Sentado na sala do tribunal, ladeado pelos restantes
réus, sentia que estava no local errado. «Como é que eu puder deixar que me
colocassem nesta situação?» Interrogou-se. O advogado de acusação acabava de
expor os factos e solicitar a condenação. Ele era acusado de violação. «Violar
quem ou o que? Como posso ser acusado com a fundamentação de que estive
ausente?» Pensou. Olhou à sua volta para se certificar de que aquilo era real. As
feições dos restantes réus estavam crispadas. Espelhavam o medo que lhes enchia
a alma! Não era um sonho, ele estava mesmo a ser julgado.
Tudo tinha começado com a candidatura ao curso de
engenharia informática do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Apesar da
média excepcional tinha entrado à tangente. As médias de entrada para o curso
de informática tinham aumentado de forma abrupta e imprevisível. A verdade é
que o curso se tinha tornado um dos cursos com mais saída, em termos
profissionais, mas isso não era uma coisa recente, o que tornava aquele aumento
da média totalmente inexplicável. Tinha conseguido entrar. Agora apenas tinha
de se focar no objectivo que tinha definido: Obter a licenciatura com uma média
superior a dezasseis valores.
Depois das celebrações em família e com os amigos, cujo
entusiasmo acabou por o contagiar, iniciaram-se as celebrações na faculdade.
Ele continuava com muitas dúvidas. Tinha dúvidas sobre o curso que tinha
escolhido, sobre a faculdade onde tinha sido admitido e até dúvidas se queria
ou não tirar um curso superior. «A minha cena é o futebol americano». Era assim
que ele definia aquilo que queria do futuro. As dúvidas fizeram com que
encarasse a semana académica com pouco entusiasmo. Fora tão pouco o entusiasmo
que acabara por se baldar a todas as cerimónias, apesar de ter sido marcado
como caloiro no primeiro dia de aulas.
Aquele ritual era para ele uma palhaçada. Não conseguia
perceber como algo tão absurdo e estúpido podia contribuir para a sua integração
na faculdade. Não foi o único a pensar daquela maneira, mas isso não
melhorava a situação em que se encontrava. Finalmente as celebrações da semana
do caloiro, que, apesar da designação, tinham durado duas semanas, tinham
chegado ao fim. A primeira aula a sério estava
prestes a começar.
O rebuliço à entrada da sala não deixava adivinhar aquilo
que estava prestes a acontecer. Um homem, vestido com uma toga, entrou na sala
acompanhado de dois contínuos e um terceiro homem vestido de polícia. O homem
da toga levantou a mão, num gesto pleno de autoridade e a sala emudeceu. Ato
continuo abriu a pasta que trazia debaixo do braço e leu o nome de quatro
alunos, que foram convidados a acompanhá-lo. António Carlos estava entre os chamados.
O homem da toga era o primeiro logo seguido pelos contínuos e depois pelo grupo
de alunos. O policia fechava a comitiva. A entrada no anfiteatro foi anunciada
pelo homem da toga e os alunos ficaram a saber que eram réus. Depois de se
sentarem de forma ordeira e em silêncio, eles ouviram a acusação. António
Carlos não percebeu muito bem como podia ser acusado de um ato de violação pelo
facto de ter estado ausente.
O interrogatório que se seguiu foi no mínimo incoerente. A
conotação do acto de violação, de que os réus estavam a ser acusados, oscilava
entre sexual e a violação de um dever. No entanto, defesa e acusação pareciam
não perceber ou ignorar deliberadamente esse aspecto. As perguntas a que teve
de responder foram duras, incisivas e tentaram expor uma parte da sua vida que
ele não estava disposto a partilhar publicamente. O ambiente na sala era muito pesado e as
confissões que alguns dos réus fizeram eram, em simultâneo, constrangedoras e
comoventes. As raparigas choravam
copiosamente e algumas delas foram levadas a confessar atos sexuais impróprios,
outras relações complicadas. Os réus estavam perfeitamente aterrorizados perante
a alusão a uma condenação, com uma pena pesada, que pairava no ar como uma
ameaça. A perspectiva de passar os próximos três anos na cadeia, ao invés da
faculdade não era algo que se encarasse de ânimo leve. Ao fim de quatro horas
de julgamento foi anunciado um intervalo. O Júri, constituído por sete juízes,
iria deliberar.
Os réus ficaram na sala, sozinhos, com instrução clara de
se manterem em silêncio. Como era hora de almoço foi-lhes distribuído um pão
com queijo e fiambre, uma garrafa de água e uma maçã. Com o decorrer do
julgamento, António Carlos começou a achar que estava algo errado. Quando os
deixaram sozinhos na sala ele ficou na expectava de um rápido reatamento para
poder levantar as dúvidas que o assolavam. Ao fim de uma hora de espera ele
atingiu o limite. Apesar da aflição manifestada pelos restantes réus, ele
levantou-se e dirigiu-se para a saída. Quando abriu a porta da sala esta foi
invadida por uma multidão aos gritos e o presidente do júri, agora sem qualquer
indumentária, deu-lhe os parabéns. «Parabéns pela iniciativa. No julgamento do último
ano os réus ficaram seis horas na sala sem coragem de se levantar.» Disse.
Afinal tudo não tinha passado de mais uma farsa da semana
do caloiro. Era a peça final. O julgamento dos que violaram o dever de
participação na receção ao caloiro.
Manuel Mota
Algures nos céus
da Europa 24.09.2018
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