Avançar para o conteúdo principal

PRAIA



A PRAIA

Ele estava física e mentalmente esgotado. Pronto para desistir. O pequeno canavial e a sombra da figueira do pequeno oásis pareceram-lhe um paraíso. Sentou-se e deixou-se vencer pelo cansaço.

A viagem tinha começado algum tempo atrás. Depois de um ano muito difícil e trabalhoso, o último ano do curso, ele necessitava de férias. A ideia surgiu de forma espontânea sem se saber bem de quem. O grupo de amigos iria fazer um atravessamento do deserto. Era uma semana de caminhada, a pé, até ao mar. O penúltimo dia começou cedo. Para melhor apreciarem o nascer do sol, já caminhavam fazia duas horas, dispersaram-se ao longo da duna. A tempestade surgiu do nada e apanhou-os em pleno ato de observação do astro rei. Ele encontrava-se numa das extremidades do grupo e tentou aproximar-se dos restantes, durante a tempestade. Enfrentá-la e caminhar durante a mesma,  foi um erro tremendo que poderia vir a revelar-se fatal!

Quando a tempestade amainou ele percebeu que tinha caminhado muito mais do que imaginava. A própria tempestade tinha-o ajudado a movimentar-se mais rápido, mas na direção oposta à pretendida. Estava perdido! Todos eles estavam munidos de equipamento de navegação mas o mais grave é que ao tentar caminhar durante a tempestade, tinha feito uma distensão no tornozelo esquerdo. «Tenho que me dirigir para o mar, ou seja para norte. Eles só virão à minha procura se não me encontrarem quando lá chegarem. Foi isso o combinado.» Pensou.

Reuniu todas as forças e começou a caminhar. Mentalmente reviu os procedimentos de segurança. Já tinha cometido o primeiro erro agora tinha que evitar que esse erro se tornasse fatal. Caminhou enquanto pôde e descansou quando o calor se tornou insuportável. A progressão era lenta por isso ao fim de dois dias ainda não avistava o mar. Enfrentar o terceiro dia iria ser diabólico. A água, apesar de racionada, tinha terminado e apenas lhe restavam duas barras energéticas. O cansaço começou a provocar-lhe miragens e o mar, ou ocasionalmente um oásis, apareciam-lhe em todos os pontos para onde dirigisse o olhar. Após algumas deceções começou a ignorar as miragens pois todas se tinham revelado falsas.

Quando embateu nas canas assustou-se. Afinal não era uma miragem, elas existiam mesmo. Retemperado por várias horas de sono acordou e olhou à sua volta. O tornozelo parecia uma bola de futebol. Ele estava impossibilitado de caminhar. Com ajuda da figueira levantou-se o perscrutou o horizonte. Para trás ficava uma planície desértica e para a frente era impossível ver o que existia. Umas centenas de metros à frente do canavial uma enorme duna impedia-o de ver mais além. Perto da figueira existia uma enorme quantidade de cactus. Utilizando uma técnica de sobrevivência, aprendida na preparação da viagem, ele extraiu água destes e matou a sede. A figueira estava carregada de figos e ele alimentou-se. Ponderou todas as suas opções. O melhor era entregar a sua salvação nas mãos das entidades oficiais, que seguramente fariam todos os esforços para o encontrar. Ele não podia movimentar-se e ali tinha comida e bebida. Ao fim do primeiro dia de espera começou a sentir-se inquieto. Algo estava errado. Ignorou o pensamento e resolveu dormir. Foi uma noite difícil porque acordou imensas vezes com vários ruídos. Ele não era o único ser que habitava aquele local e os restantes representavam uma ameaça!

O novo dia encontrou-o num estado de algum cansaço pois não havia dormido quase nada. A noite tinha-lhe dado uma nova perspetiva daquele local. Aparentemente ele não era tão seguro como tinha pensado. «Se andassem à minha procura já deveria ter visto alguns sinais disso.» Pensou. Olhou novamente à sua volta. A luz dos primeiros raios do dia iluminava o local de uma forma viva, translucida e estranha. Sentiu um arrepio. Subitamente teve uma epifania. Não podia ficar ali. Começou a executar um plano: Com partes da figueira construiu umas muletas; recolheu toda a água que podia; apanhou os figos da figueira, sobretudo os mais secos; estava pronto para enfrentar o deserto. Ao fim de uma hora estava completamente esgotado, as muletas enterravam-se na areia e ele não conseguia progredir. Sentou-se completamente desanimado. Ficou a olhar para o pé que o impedia de andar e para as muletas. Não existia solução.

Olhou o horizonte. Lá ao longe tudo parecia branco. Fez-lhe lembrar a neve. Sendo esquiador teve uma ideia: «Na neve preciso de raquetes para andar. Aqui preciso de colocar nas muletas um sistema idêntico» Pensou. Com uns parafusos que tinha na mochila, acoplou, na extremidade das muletas, um conjunto de varetas, simulando os raios de uma roda de bicicleta. Com as folhas das canas e utilizando a técnica de construção de cestos, teceu uma rede suportada pelas varetas. Era um instrumento arcaico, quase ridículo. Funcionou.

O trabalho ocupou-lhe toda a manhã. Por prudência decidiu passar mais uma noite no local e partir no dia seguinte. Para dormir tomou algumas precauções tendo criado, à sua volta, um círculo com proteção contra “intrusos”. Não estava seguro que isso fosse eficaz, mas a verdade é que conseguiu dormir. Ao raiar do dia ele estava acordado e pronto para partir. Os dias de descanso tinham reduzido o inchaço do tornozelo o que facilitava a tarefa de andar. Depois de dominar a técnica de caminhar com muletas, começou a progredir razoavelmente bem. A duna foi um grande desafio. Quando chegou ao cimo, depois de duas horas de esforço violento, ficou deslumbrado. Deixou-se cair no chão e chorou. À sua frente estendia-se o mar. Em frente estava fundeado o barco que o levaria de regresso a casa. Deixou-se escorregar pela duna e não tardou estava entre amigos.

O professor catedrático fez uma pausa. O silêncio na sala era absoluto. Passou as mãos pelos cabelos e voltou a dirigir-se à assembleia.

«Esta história real, retém, em si, todos os componentes da definição de uma estratégia e das vicissitudes da sua execução. O vosso desafio é identificá-los.»


Comentários

Mensagens populares deste blogue

O SEMÁFORO

O SEMÁFORO Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina. No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL As palavras não me ocorrem perante a imensidão do sentimento que me invade o peito. Digo-te aquilo que adivinhas pois os meus olhos e os meus gestos não o conseguem esconder. Amo-te! Amo-te desde o primeiro dia em que entrei na empresa e tu me abriste a porta. Os nossos olhares cruzaram-se e, por instantes, olhamo-nos sem pestanejar. Senti que tinha encontrado a minha alma gémea. O meu coração acelerou quando me estendeste a mão e te apresentas-te. Apenas uma semana depois soube que eras casada. Chorei a noite toda. Não conseguia aceitar que não fosses livre para poder aceitar o meu amor e retribuí-lo como eu tanto desejava. Desde esse dia vivo em conflito: amo-te e por isso quero estar a teu lado, mas não suporto estar a teu lado, sem poder manifestar-te o meu amor. Quero fugir dessa empresa, não quero mais ver-te se não te posso ter, mas não consigo suportar a ideia de não te ver todos os dias. Tu és o sol que ilumina o meu dia, mas és

O BILHETE

O BILHETE Com os cadernos debaixo do braço ele subiu a escadaria do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real. Vivia numa aldeia próxima e tinha vindo a pé. Tinha vários irmãos e como estavam todos a estudar, tinham de poupar em tudo o que era humanamente possível. Já estava com saudades das aulas! Era irónico que tal fosse possível pois os jovens preferem as férias. Não era o seu caso. Tinha vindo de Angola e, por falta de documentos, tinha ficado um ano sem estudar, trabalhando na quinta, ao lado do pai, enquanto os irmãos iam para as aulas. Estudar era, portanto, a parte fácil. Procurou a sala onde a sua turma tinha aulas: Ala este, piso zero, sala seis. Filipe era um aluno acima da média, mas a sua atitude era de grande humildade: esperava sempre encontrar alguém melhor que ele. Dado que tinha ficado um ano afastado da escola estava com alguma expectativa em relação à sua adaptação, mas confiante nas suas capacidades. Não tardou em destacar-se e no fim do primeiro tri