A
RUIVA
Começou
por me dizer que se chamava Raul Cardoso e que tinha uma história… bem, uma
história singular!
Curiosamente
conheci o homem no restaurante A Baiana, na ilha de Porto Santo. Era alto e
espadaúdo. O cabelo, cortado à escovinha, fazia com que as patilhas parecessem
enormes, assemelhando-se a duas manchas negras na face. A pele demasiado branca
denunciava a sua ascendência e os olhos rodeados de uma auréola castanha e
escondidos atrás de uns óculos, fundo de garrafa, eram a imagem estampada de
uma ingenuidade triste. O queixo quadrado e a meia barba, transmitiam uma
sensação de firmeza e de caráter vincados. Os punhos da camisa saiam
exageradamente pelas mangas do casaco, peça que destoava naquele ambiente e a
gravata, meio de lado e presa com um alfinete de prata trabalhada numa técnica
milenar, davam-lhe um ar desarrumado mas distinto. Instintivamente tive a
sensação de que usava um perfume com odor a pinho.
Estávamos
em finais de Setembro. Os sinais do Outono eram visíveis: Os dias curtos, o céu
carregado de nuvens, o vento húmido que soprava do mar e o bramir das ondas
contra o cais. Eu tinha acabado de me sentar, exausto, da caminhada que fizera
a pé até à Calheta.
O
regresso tinha sido feito sob o lusco-fusco do crepúsculo. Trata-se de uma hora
mágica onde as coisas perdem a sua forma definida e ganham contornos difusos
com uma dimensão e significado muito próprios. A estrada entre a Calheta e o
Campo de Baixo é praticamente deserta, apenas ladeada por uma ou outra pequena
construção. Sendo a iluminação quase inexistente, o ambiente adquire, assim, um
ar místico propício a uma introspeção que, não raras vezes, nos conduz a
devaneios apenas aceitáveis na companhia exclusiva do nosso pensamento, mas
ridículos quando dissecados pela nossa própria razão. O meu pensamento
divagava: às voltas com a eterna questão, não respondida de forma definitiva,
sobre o verdadeiro sentido da vida. A visão do hotel Vila Baleira, perdão, da
mega construção abandonada onde era suposto nascer um hotel, surge logo a
seguir à curva, com um impacto diferente do sentido na viagem inversa, onde
este é dissimulado pela montanha onde se encosta. Agora ele é-me apresentado em
toda a sua magnitude. Admiro os seus contornos irregulares e herméticos, de
betão escurecido e a grande vedação que o rodeia. No seu todo formam um
conjunto majestoso! A luz daquele final de dia de Outono projeta a construção
para uma outra dimensão: uma dimensão fantasmagórica e irreal, mas
estranhamente acolhedora. A imaginação voa para uma época de castelos,
cavaleiros, frades e mosteiros. À razão de cismar na coisa, sou levado por um
ímpeto impio, mas puramente sentido e desejado e dou por mim a imaginar-me
dentro de um mosteiro, a tratar da horta e a meditar horas a fio, numa vida
plena de ociosidade física mas transcendental. Oiço a água cair em cascatas e
os pássaros chilreando à minha volta, num ambiente de paz e harmonia, só
possível no mundo idílico dos mosteiros. As luzes do bar do João do Cabeço
despertam-me e sorrio abertamente. Sorrio do ridículo do meu pensamento, da
fantasia de um sonho que não se coaduna com a minha forma de ser, nem
representa a realidade da vida de um monge. Apresso o passo. Quero chegar à
Vila antes que a escuridão me impeça de ver o caminho.
A
minha curiosidade foi despertada ao jantar, enquanto eu enfrentava o desafio de
retirar a espinha central do robalo sem o desfazer, juntando os legumes no lado
direito e as batatas cozidas no lado esquerdo do prato, para me facilitar a
tarefa e a imperial borbulhava num copo alto e esguio, depois de poisada,
descuidadamente, pela empregada, que me dispensou um sorriso. Éramos os únicos
comensais. Ele estava no canto da sala, virado para mim. Perguntei-lhe, depois
de limpar a boca a um guardanapo de papel áspero, se ele era do Funchal.
-
Não, mas vivo lá há muitos anos. -Disse, levantando os olhos para mim.
-
Existem por lá muitas mulheres bonitas. - Disse eu.
O
Homem emudeceu.
-
Então. Não concorda? - Insisti.
O
homem remeteu-se a um silêncio ruidoso. Uma sombra inundou a sua expressão. As
chalaças que a empregada vinha trocando com ele ficaram sem resposta. Era
visível que o assunto o incomodava. A vida daquele homem tinha sido marcada com
o ferrete de uma mulher e a mágoa ainda morava naquele peito.
Para
suavizar a coisa disse:
-
Aquilo que dizem é que a Madeira, nomeadamente o Funchal, tem mulheres muito
bonitas, pois a acrescer às locais estão as estrangeiras. Existem para todos os
gostos, ruivas, loiras, altas ou baixas e é cada cinturinha!
O
homem enfronhou-se ainda mais na sobremesa.
-
Tenho visto mulheres bonitas em muitos lados mas o Funchal, tem uma densidade
fora do normal. Eu tenho um amigo que foi trabalhar para o Funchal e casou-se
lá com uma Finlandesa. Lá está: as estrangeiras. Era o diretor comercial do
Casino Park Hotel, o Mendes, um indivíduo alto e ruivo, muito bem falante.
-
O Dr. Mendes. Sei quem é. - Disse ele, ignorando o pudim por instantes e
brindando-me com um olhar grave.
-
Casou aí porque era onde trabalhava, mas não deixa nunca de realçar que no
Funchal a perfeição, em termos da mulher, é possível de alcançar.
O
homem levantou-se. A expressão calada e o olhar distante deixavam perceber que
o tema o incomodava, ou melhor, que algo distante, mas relacionado com o tema o
incomodava. De forma pausada, mas com solenidade, dirigiu-se à caixa, pagou o
jantar e abandonou o restaurante.
Olhei
à minha volta: estava só. A conta chegou. Levantei-me e deixei sobre a mesa o
seu valor acrescido da retribuição de um sorriso. Quanto vale um sorriso? Corri
o fecho do blusão, puxei a gola para cima e apressei o passo em direção ao
cais. Vila Baleira estava deserta. Com a maré a subir as ondas tinham aumentado
de volume arremessando-se conta os cais, como hordas de assaltantes à conquista
de uma muralha. O passeio foi curto. A total ausência de pessoas contrastava
com a memória de uma Lisboa plena de vida, essa constatação tornou-me nostálgico.
O Hotel Praia Dourada fica mesmo no centro da Vila, com entrada pela rua Pedro
Lomelino. Foi aí que fui pernoitar por recomendação de um amigo. A receção era
simples, moderna e com bom gosto. Feitas as saudações o jovem de serviço fez o
meu registo no hotel.
-
O seu quarto é o número doze, cavalheiro.
-
Obrigado. Ainda é muito cedo. Existe algum local onde se possa beber um copo?
O
único bar que estava aberto era o pequeno. O empregado seguiu à frente. Um
hotel pequeno, no Porto Santo, fora da época balnear, assemelha-se a uma casa
abandonada. O silêncio era sepulcral. Sem vontade de ficar ao balcão dirigi-me,
de copo na mão, para a minúscula sala do bar, que se escondia na primeira
esquina. Raul Cardoso estava espojado no sofá. Havia-se libertado do casaco e
da gravata e descalçado os sapatos, mostrando as meias coçadas na extremidade
do dedo grande e um colarinho já gasto pelo uso. Naturalmente não contava com
companhia.
-
O senhor desculpe. Pelos vistos não sou único hóspede. - Disse ele.
-
Fique à vontade. – Disse, ao mesmo tempo que tirava o blusão e me jogava no
sofá.
A
pedido dele o empregado deixou a garrafa de whisky e um balde de gelo na mesa.
Estava tudo na conta. Os motivos que o levaram a contar-me a sua história não
são aqui relatados. O whisky, o facto de estarmos a sós ou a coincidência de
ambos conhecermos o Mendes… Sim, o Mendes, definitivamente, ele esteve
presente! Vi aquele homem chorar baba e ranho, barafustar e ter fúrias. Por
entre tudo isso surgiu a confidência. Larga, profunda, vivida num passado
longínquo, mas presente como uma memória viva e corrosiva. Para o caro leitor
talvez não passe de uma história trivial. Eu estava nostálgico, sensível e
animado pelo álcool, enfim, a história pareceu-me terrível. Narro-a, no
entanto, apenas como uma história de amor. Entre nós uma garrafa de whisky e
dois copos meios vazios. Uma barreira que mais do que separar nos unia.
-
O trabalho de filigrana desse alfinete é fantástico. - Disse eu.
-
Tão fantástico quanto a sua história. De contornos sórdidos, imprevisíveis, mas
fantástica… - Disse ele, ridicularizando-se.
Uma
pausa. Silêncio. Um silêncio como o que antecede uma tempestade.
Perguntei-lhe
se era de uma família com sobrenome Cardoso que eu conhecia. Apenas para
descobrir que era primo deles. Isso gerou logo uma grande empatia pois eu tinha
a maior admiração por uma das famílias mais antigas de Lisboa. Com tradições no
negócio livreiro e com uma fama impoluta. Conhecidos por honrar os seus
compromissos fosse qual fosse a circunstância. Raul Cardoso contou-me que na
década de oitenta o seu tio Frederico tinha várias livrarias espalhadas pelo
país. Ele tralhava como informático por cima da livraria do Chiado, em Lisboa,
mesmo ao cimo da rua Garrett. Era a maior das livrarias dos Cardoso. Raul
Cardoso tinha sido um dos melhores alunos de engenharia informática do Técnico.
A natureza tímida ou a dívida familiar, ou ambas, fizeram com que se tivesse
acomodado. Trabalhava simplesmente para o tio. Simplesmente era uma força de
expressão, porque ele tinham implementado um sistema de gestão de stocks, das
livrarias, em tempo real, que tinha sido uma revolução em termos tecnológicos,
com um grande impacto em termos de redução de custos. Tinha nascido em Vila
Real, filho de uma irmã do tio Frederico que acabara quase na miséria. Coisas
da vida. O tio pagou-lhe os estudos e ele retribuía-lhe dedicando os dias ao
trabalho. As poucas horas livres eram dedicadas aos livros, aos jogos e à
música. Era portanto um homem culto mas que alimentava o seu imaginário de
fantasia. Vivia em casa do tio Frederico, onde dispunha de um quarto e uma
saleta com uma entrada independente, na rua Óscar Monteiro Torres, junto ao
Campo Pequeno. Tratava-se de um bairro envelhecido e tranquilo, agitado apenas
pelo frenesim provocado por uma ou outra tourada, ou algum espetáculo musical.
O tio nunca havia casado e era austero, exigente e excessivamente formal.
O
seu único vício era a roupa. Gostava de se vestir a preceito o que realçava a
sua figura. Para além dos jogos no computador, a leitura ou ouvir musica,
sobretudo musica, clássica ou pop (oh! o prazer da dor de um drama cantado era
inigualável!) também lhe davam muita satisfação os piqueniques domingueiros que
o tio promovia, em família, no pinhal da Azóia, em Sesimbra, ou na mata de
Sintra. Locais recatados e bucólicos onde se ouvia o chilrear dos pássaros e a
sua memória podia voar para Vila Real e reviver momentos da infância, quando o
pai era vivo e a mãe ainda possuía a quinta. Pateticamente nostálgico,
romântico, mas desconhecedor do amor e completamente ingénuo. Era assim o Raul
Cardoso, aos 25 anos de idade.
Era
sábado, era princípio de verão e era dia de tourada. A praça do campo pequeno
fervilhava e o som da animação entrava pela Óscar Monteiro Torres e invadia os
apartamentos. Raul Cardoso, de auscultadores nos ouvidos e livro na mão, veio à
janela. Ele conhecia bem o motivo da festa, mas não resistiu a uma olhadela.
Era o seu momento social. No fim de semana anterior tinha ganho novos vizinhos,
não que isso lhe interessasse muito, pois vivia fechado no seu mundo, mas
aquela visão abriu-lhe uma nova perspetiva. Eis que assomava à janela do quarto
andar, do prédio em frente, uma mulher com um vestido preto de manga curta com
folhos e um decote generoso, debruçando-se para sacudir um tapete. A cor branca
dos braços nus e dos seios, que também davam ares de se assomar, impuseram um
segundo olhar. Raul Cardoso pensou e afirmou para si mesmo que aquela morena,
que aparentava mais de quarenta anos, deveria ter sido uma mulher muito
interessante e dominadora, quando era jovem. A fina linha da cintura, que se
adivinhava, os seios volumosos que recheavam o corpete, embelezados com o
lenço, que disfarçava o decote, os lábios carnudos e o rosto de expressão
austera, emoldurado pelos caracóis pretos, do cabelo já sem brilho, revelavam
um ser temperamental e capaz de paixões arrebatadoras. Raul Cardoso voltou para
o seu livro. Ao fim de algumas páginas levantou-se e começou a andar às voltas
no quarto. Não conseguia concentrar-se. Estava tomado de uma ansiedade que o
desconcertava pois nunca experimentara tal sensação. Depois do jantar, não
sendo capaz de se concentrar na leitura, nem sentindo o habitual interesse pelo
Tetris, colocou os auscultadores nos ouvidos, recostou-se na cadeira e,
colocando os pés no peitoril da janela, entretanto aberta, fechou os olhos e
sonhou. Sonhou ao som de “you were always in my mind” cantada, num dueto, por
Willie Nelson e Elvis Presly. Viveu com tal intensidade a letra da música que
as lágrimas o sufocaram. «Estranha sensação!» Pensou. Antes de dormir tinha
chegado à conclusão que tinha que dar um novo sentido à sua vida. O resto do
fim de semana foi um suplício. O quarto parecia-lhe demasiado pequeno.
Sufocava-o. Oprimia-o. O mundo lá fora tinha deixado de ser a preto e branco. A
natureza tinha cores vivas. Os pássaros chilreavam alegremente e não com
nostalgia. E nas madressilvas as borboletas, em bandos multicoloridos, abanavam
as asas suavemente, como leques refrescando uma dama. «Tenho de sair daqui!»
Disse, falando consigo.
O
fim de tarde estava muito agradável. A brisa fresca que se fazia sentir
convenceu-o a vestir o blusão. Ao dobrar a esquina da rua quase embateu nas
duas raparigas que vinham a correr, soltando risadas alegres. Raul Cardoso
ficou parado em frente da mais baixa, para evitar o choque, mas não foi ela que
lhe prendeu o olhar. A amiga, uma ruiva escultural, de olhos verdes, com um
vestido branco de pintas azuis, mangas curtas de folhos e uma saia rodada, que
realçava a delgada cintura, passou rapidamente por ele, desviando o olhar para
o chão. Fez dele catavento. Desviou-se para deixar a mais baixa passar. A
curiosidade venceu-o. Virou-se para trás e viu-as entrar no número dez. Era aí
que vivia a senhora dos caracóis pretos. Não conseguiu afastar-se do local e
atravessou para o outro lado da rua. Qual não foi o seu espanto quando viu a
ruiva assomar à janela do quarto andar, dar uma olhadela rápida à rua e
desaparecer por detrás da cortina. «É a filha» Pensou. A mais velha vestia de
preto, mas a ruiva no seu vestido de linho branco com pintas azuis, devia ter
menos de 20 anos. Era jovem, alegre e viçosa.
Raul
Cardoso era um jovem alto, ombros largos, magro, quase esquelético, e pálido,
como resultado da sua reclusão. Tinha cabelos negros e olhos azuis e caminhava
ligeiramente curvado. Era fruto de muitas horas passadas sentado em frente ao
computador. O primeiro vislumbre dela tinha sido marcante, mas a sua imagem,
emoldurada pelas aduelas de madeira da janela, ficou-lhe gravada na mente, como
uma pintura: A pintura de um anjo. Naturalmente que a ruiva também tinha
reparado em Raul Cardoso e sobretudo no interesse que este demonstrou nela.
Naturalmente, também, fingiu não ter reparado. Ele sentiu-se ignorado.
Quando
jovem sentia-se completamente sem graça junto das mulheres, evitando, por isso,
a companhia destas. Apesar disso, aquela ruiva não lhe saída da cabeça. Raul
Cardoso passou a ir para casa mais cedo na esperança de encontrar a ruiva ou
pelo menos de ter um vislumbre seu. Todos os dias, ao fim do dia, ele ia à
janela para a ver. De forma quase invariável lá estava ela: de blusa branca ou
floral, mas sempre evidenciando as suas formas, com os cotovelos apoiados no
peitoril gozava os prazeres do entardecer. Nos dias mais quentes via-a usar um
leque para se refrescar. O leque de madrepérola, em desuso à época, deveria ser
uma peça de família pois aparentava antiguidade. Os motivos da decoração
assemelhavam-se aos de uma matrioska, o que levantava algumas questões sobre as
origens da ruiva, que encantava os seus dias e preenchia os seus sonhos. Ocasionalmente
cruzavam um olhar, mas ela desviava rapidamente o seu, olhando para o outro
lado da rua. Quando se refugiava atrás da cortina era notório que a levantava,
subtilmente, para espreitar. Jogar às escondidas estava a deixá-lo louco. Raul
Cardoso não me explicitou, com detalhe, os seus sentimentos – disse de forma
simples – que ao fim de uma semana estava completamente apaixonado por ela.
O
trabalho perdera uma boa parte do interesse e os livros exigiam uma
concentração que ele não tinha, por isso, refugiava-se na música. Deu consigo
várias vezes a assomar à janela, no local de trabalho, como se a ruiva pudesse
aparecer, de repente, ao fundo da rua Garrett. Subitamente, o seu coração deu
um pulo. Vindas de uma rua lateral, mãe e filha vinham, de braço dado, a descer
a rua e encaminharam-se para a livraria.
Raul
Cardoso passou a mão pelos cabelos para os ajeitar, endireitou o nó da gravata
e desceu à livraria. Enquanto descia as escadas interrogava-se se ela saberia
que a livraria era do tio e que ele trabalhava no primeiro andar. Nessa altura
ele disse-me.
-
Para mim era muito importante saber se ela estava ali intencionalmente, sabendo
quem eu era.
O
empregado ao vê-lo ali pediu-lhe para ficar uns instantes ao balcão, enquanto
ele ia colocar lá dentro uns livros para devolução à editora.
Sem
demonstrar qualquer surpresa em vê-lo ali, ela dirigiu-se ao balcão. Levantou o
rosto e sorriu-lhe, envolvendo-o com um olhar que parecia acariciá-lo. Ele
sentiu-se nas nuvens.
-
Bom dia. Este livro foi-me recomendado, mas não tenho a certeza que deva
oferecê-lo a uma jovem de dezoito anos. O que acha?» - Disse ela mostrando o
Amante de Lady Chatterley.
Raul
Cardoso corou, olhou para baixo e tentou lembrar-se de algo para dizer a
propósito do livro que tão bem conhecia.
-
Pois… para oferecer a uma jovem de dezoito anos. - Repetiu ele.
Tinha
sido um comentário estúpido. Um comentário sem sentido. Ocupado entre tentar
parar o tremor das pernas e encontrar algo inteligente para dizer, ficou
hesitante. O empregado, que entretanto regressara, assumiu o comando e Raul
Cardoso retirou-se contrafeito. Tinha deixado de existir uma razão para
continuar ali. Enquanto se afastava ainda a ouviu dizer.
-
O seu colega não gostou da ideia. Não vou levar o livro. Onde estão as
enciclopédias e os atlas?
Nesse
momento, ele olhou para trás e ela também. O olhar que cruzaram foi de uma
cumplicidade inexplicável.
Passou
o resto do dia exasperado. Tinha perdido a primeira grande oportunidade de
estabelecer contacto com a mulher que já imaginava como sua namorada. Nem o
bife com puré de batata, o seu prato preferido, conseguiu afastar aquela cisma.
O tio falava sozinho sobre os empregados e os eventos do dia. Ele não percebeu
bem a história mas tinha desaparecido um atlas de coleção. Peça muito valiosa,
quer pelo seu valor venal, quer pelo estimativo.
-
É o resultado de ter o empregado dentro e fora, com pessoas na livraria. São
quinhentos mil escudos à minha conta! - Disse o tio Frederico.
O
pensamento de Raul Cardoso estava noutro lado. Mentalmente tentava encontrar
uma forma de recuperar a oportunidade perdida nessa manhã. Essa noite sonhou
com ela de uma forma diferente. Ela estava nos braços dele e ele cobria-a de
beijos e carícias. Acordou antes que algo mais pudesse acontecer, mas o seu
desejo era bem visível. Acontece que, no dia seguinte, saiu do metro e, quando
atravessava a praça, viu um amigo a cumprimentar a mãe da ruiva. Parou. Confuso
com a presença dos dois naquele local, sentiu uma pontada no peito quando
imaginou que ele podia também conhecer a filha. Rapidamente se apercebeu que o
destino, por qualquer sortilégio, lhe apresentava a solução para conhecer a
ruiva. O amigo ficou, de beiço caído, a ver a mãe afastar-se e não se apercebeu
da sua aproximação. Incapaz de se conter perguntou-lhe de chofre:
-
Quem é a mulher que acabaste de cumprimentar?
-
É a Petry. Bela mulher!
-
Que raio de nome é esse?
-
É o sobrenome do marido que era Húngaro.
-
E a outra?
-
Quem?
-
A filha.
-
A filha?
-
Sim. A ruiva é filha não é?
-
Sim a filha. A ruiva é a filha sim.
-
Conhece-las bem?
-
Sim. Quer dizer… costumo encontrá-las nos saraus, na casa dos Otto, uma família
Húngara que vive num terceiro andar enorme, na Avenida João XXI, junto ao
Areeiro.
Raul
Cardoso não tinha muitos amigos e os que tinha eram mais conhecidos do que
amigos. Júlio Pedrosa era um deles. Costuma gabar-se das suas conquistas,
normalmente mulheres mais velhas, às quais ele nunca prestara muita atenção.
Ocasionalmente tinham partilhado o gosto comum pela música e pelos jogos de
computador, tendo inclusive feito algumas competições, que ele ganhava
invariavelmente. Decidiu abrir-lhe o coração. Ao perceber que a paixão do Raul
Cardoso era a filha Júlio prontificou-se logo ali para o ajudar.
No
sábado seguinte teria lugar um sarau na casa dos Otto, onde se declamaria
poesia e ouviria guitarra e piano. Coisas simples com artistas amadores ou
profissionais patrocinados pela Associação Portugal-Hungria para a Cooperação.
Ficou combinado que o amigo o levaria consigo.
Expor
assim os sentimentos. Pedir favores. Viver em antecipação o dia de amanhã. A
vida tornou-se um vórtice. Ele estava uma pessoa diferente! Raul Cardoso
implorou e o amigo acedeu: Não era difícil. No sábado seguinte, envergando um
fato antracite, uma camisa branca ajustada ao colarinho por uma gravata de
cornucópias e uns sapatos Armando Silva, reluzentes, ele apresentava os
cumprimentos à Dona Helena Otto. A sala, apesar de enorme, estava cheia. O
ruído das conversas era como o zumbido de uma colmeia em plena atividade. Os
homens vestiam a rigor e as mulheres seguiam-lhes o tom: saias e vestidos
longos e adornos vistosos, imitações na sua maioria. Artistas e políticos, à
procura da ribalta ou em decadência, espalhavam-se pela sala, à mistura com uns
quantos civis. Aqui e ali, em grupos de cinco ou seis, os mais velhos narravam
as suas histórias, como se os efémeros momentos de glória fossem eternos,
enquanto uns quantos jovens se pavoneavam de grupo em grupo. Essa era a glória
que almejavam. Raul Cardoso não era um homem social. Aquilo apanhou-o de
surpresa. Concentrou a sua atenção na anfitriã. O vestido preto e longo
escondia a sua magreza e o permanente de caracóis dava-lhe um ar disforme à
cabeça. No braço, tilintavam várias pulseiras, numa combinação bizarra com o
medalhão, que pendia de um colar curto e que parecia querer estrangulá-la.
Muito a custo conseguiu vislumbrar as Petry. A filha, a ruiva, tinha ganho
alguns centímetros. A saia longa, preta, a camisa branca e a jaqueta, conferiam-lhe
um ar muito elegante. Mas eram a mala e os sapatos de salto alto, que davam um
toque distinto à toilete. Rodeada de três jovens, que pareciam venerá-la, a
aura dela brilhava. Lembrava um fresco de Rembrandt. A mãe, vestida
invariavelmente de preto, conversava de forma animada com um senhor alto, forte
e loiro, que falava com as mãos. O casaco caía-lhe pelos ombros e a gravata
amarela, demasiado comprida e larga, parecia curvá-lo com o seu peso. Os
cabelos compridos davam-lhe um ar singular, sobretudo devido ao facto de ser
calvo, na parte superior da cabeça. Era cavaleiro da ordem de Malta.
As
conversas emudeceram. O som dos passos e o frou-frou dos vestidos e fatos
tornou-se audível. A audiência procurava o melhor lugar. A violinista acabava
de entrar: Uma jovem húngara, com créditos já evidenciados, era a principal
convidada da noite. O primeiro ato da noite estava prestes a começar. No final
seria inaugurado o bufete. Raul Cardoso aproveitou o ensejo para se colocar ao
lado da menina Petry. Antes do silêncio ser absoluto ele ainda teve tempo de
lhe perguntar de forma carinhosa:
-
Encontrou aquilo que procurava na livraria?
-
Sim. Levei algo mais erudito e menos mundano. - Disse ela, com voz sumida, mas
um olhar ternurento.
Ele
sentiu que as suas almas se uniam para a eternidade.
Raul
Cardoso não conseguiu transmitir-me todos os detalhes referentes àquela noite
pois não tirou os olhos da Ruiva, mas nem isso o impediu de apreciar a música.
Foi um miniconcerto magnífico! O homem avançou para o cento da sala com ar
compenetrado. Era um velho amigo dos anfitriões. Originário de uma família rica
e aristocrata, tinha esbanjado tudo no jogo e em tentativas de fazer vingar a
sua poesia. Aqui dispunha da audiência que as editoras lhe haviam negado. O
poema era uma imitação do lirismo camoniano: Um soneto de amor, explicou o
autor. No fim todos aplaudiram e ele sorriu abertamente, exibindo um dente
podre. A noite continuou erudita. Foram vários os intervenientes que declamaram
ou cantaram, sempre com o consentimento da anfitriã. A determinada altura um
político, alto, seco, e com ar de ave de rapina, que tentava reencontrar o
caminho para o sucesso, declamou um poema de Fernando Pessoa. As mulheres
aplaudiram com entusiasmo. Ao lado de Raul Cardoso, um aspirante a artista
disse:
-
Farsantes! Onde já se viu: os políticos armados em artistas. Apoiem a cultura
em vez dos vossos bolsos!
Ela
estava em primeiro plano. Ela era mesmo o único plano. Os olhares dardejavam
mensagens breves, interrompidas quando ela baixava a cabeça. Aquele foi
demorado. Tocaram-se com o olhar, tendo entre eles uma barreira invisível que,
simultaneamente, os aproximava e separava.
No
fim de semana seguinte ele encontrou as Petry no clube dos Olivais. A mãe, lado
a lado com a filha, exibindo a sua qualidade de sócia, tinha-o convidado:
espero que o vizinho não tenha compromissos prévios. É apenas um pequeno
convívio.
Era
sábado a seguir ao jantar. Estava lá o político que declamou Fernando Pessoa, o
poeta lírico, o cavaleiro de Malta: que era um empresário viúvo, o aristocrata
falido, as duas manas Herédia e a D. Gertrudes, uma senhora que tinha
secretariado a Assembleia Constituinte, durante o sequestro, em 1975, e que não
se cansava nunca de narrar os eventos: As trinta e seis horas de terror com os
deputados fechados dentro do edifício; os discursos inflamados dos políticos de
vários quadrantes; as câmaras de televisão ávidas de notícias; os manifestantes
lá fora, ferozes nas suas palavras de ordem; a saída em fila indiana e sem
proteção policial, por entre os insultos da populaça. Enfim, traumas que a
conduziram à reforma antecipada.
Quando
D. Gertrudes terminou de contar a história começou-se a jogar. Curiosamente
Raul Cardoso lembrava-se apenas de parte dos acontecimentos da noite. Não sabia
bem a que tinha jogado, mas recordava-se perfeitamente de que tinha ficado ao
lado de Laura, era esse o nome da filha da Petry. A visão das suas mãos brancas,
com dedos longos, ornamentados por unhas pintadas à francesa e com movimentos
de bailarina, retiveram o seu olhar. O vestido rodado, com folhos, embora
desenquadrado, conferia-lhe um ar aristocrata. Estranhamente, retinha ainda na
memória um episódio que o fez ficar a detestar a classe política. Laura estava
sentada de lado na cadeira, toda voltada para ele. A mão direita repousava no
regaço e a esquerda suportava-lhe a cabeça, apoiando o cotovelo sobre a mesa. O
jogo tinha terminado e havia que trocar as fichas com que cada um tinha ficado.
Os que não tinham jogado faziam círculo, em pé. Em frente dele, ladeado pelo
cavaleiro de malta e pelo aristocrata falido, estava o político declamador de
poesia. Os óculos graduados e o bigodinho à Errol Flynn, davam-lhe um ar ainda
mais sinistro. Raul Cardoso não retirava os olhos de Laura ao mesmo tempo que
fazia rodar, sobre a mesa, como um peão, a ficha vermelha de valor facial de
vinte contos. Laura olhava para o movimento fascinada. Enquanto aguardavam Raul
Cardoso trocava umas palavras com Laura que lhe sorria. Ela sorria sempre.
Aquele sorriso simples mas o mais puro e angélico que ele tinha visto. De
repente a ficha resvalou, saiu borda fora e foi cair para os lados de Laura,
desaparecendo sem fazer qualquer ruído. O político ajustou os óculos e
baixou-se de imediato em busca da ficha, deixando aparecer as calças
descosturadas; o cavaleiro de Malta tentou colocar-se de cócoras mas a
proeminência abdominal não lho permitiu; a mãe pediu que todos se afastassem para
poder procurar melhor; Laura levantou-se e, com uma delicadeza suprema, sacudiu
o vestido. A ficha não apareceu.
-
Ora essa. O chão é de madeira mas eu não ouvi a ficha cair.
-
Nem eu. - Disseram várias vozes.
Curvados,
acocorados ou jogados no chão, toda a gente procurava a ficha, mas o mais
entusiasta era o político.
-
O chão não tem buracos! - Dizia a mãe Petry.
-
Parece bruxaria. Desaparecer assim… - Disse o político.
Enquanto
isso, Raul Cardoso desvalorizava o desaparecimento.
-
Ora essa. Não se preocupem. A ficha aparece amanhã. Por favor não se incomodem.
No
entanto, ninguém lhe tirava da cabeça que o político tinha feito à ficha o
mesmo que faziam aos impostos, na versão do jovem artista. Tinha-a embolsado! A
revolta que isso lhe causava foi rapidamente ignorada e o seu pensamento voou
para Laura, enquanto descia as escadas e se encaminhava para casa. Já no seu
quarto reviveu com prazer os momentos passados na companhia dela. Ele estava
nas nuvens.
Tendo
decorrido algum tempo, assume-se que os encontros entre os dois se tornaram
mais frequentes e o desfecho previsível. Embora Raul Cardoso não tenha sido
fértil em detalhes, o motivo foi um beijo. O primeiro beijo. Os beijos e as
juras de amor que possam ter trocado ficam no segredo do silêncio. A história
desses encontros resume-se na afirmação do próprio Raul Cardoso.
-
Para encurtar razões resolvi-me casar com ela.
Era
uma decisão definitiva. Uma entrega sem reservas. A rendição a um amor cujo
fundamento foi um simples beijo. Raul, um homem casto e ingénuo, provou o sabor
dos lábios da sua Vénus e rendeu-se. Aquela entrega, ao mesmo tempo que o
enchia de remorsos, era tão deliciosamente boa que o levava a ignorar alguns
dos princípios em que fora educado. Era saborear o fruto proibido. Era o sabor a
pecado! «O que diria o meu tio se imaginasse o que me vai na alma?» Interrogou-se.
O tio, um homem solteiro, com exceção dos negócios, tinha parado no tempo.
Vivia agarrado a um conjunto de princípios morais que aplicava com rigidez. A
sua elevada estatura, o bigode farto e bem tratado, os óculos, que usava na
ponta do nariz e a sua voz forte e áspera, eram a personificação de uma figura
austera e inflexível. A bengala, que trazia sempre consigo, em vez de
simbolizar fraqueza era a arma que completava a sua armadura.
A
sua figura enchia por completo a porta. O olhar inquisitivo que lançou à sua
volta parecia adivinhar uma desgraça. Normalmente a reunião no clube literário
era seguida de um jantar e ele apenas regressava a casa por volta das nove da
noite. Raul e Laura não tinham parado no primeiro beijo. Sempre que a
oportunidade se apresentava exploravam o corpo um do outro sem pudor. Raul
vivia num mundo novo e o sorriso tímido com que Laura dizia que sim a tudo era
sinónimo de que também ela estava na sua primeira viagem. Era um sorriso fresco
e angelical, mas perigosamente sedutor. Naquele fim de tarde tinham a casa só
para eles. Depois de alguns minutos na sala foram para o quarto. De passagem,
tinham dado um espreitadela ao quarto do tio. A enorme cama de casal, coberta
com uma colcha vermelha, despertava nele um fascínio que não conseguia explicar.
-
Uma cama um pouco maior dava um jeitão. - Disse Raul.
-
O que eu gostava mesmo era de fazer amor na cama do teu tio. - Disse ela.
Não
precisaram de mais palavras. Abriram a porta e, entre gargalhadas de perversa
excitação, entraram no santuário do tio. Era assim que ele designava o seu
quarto. Concentrados apenas um no outro e preocupados em dar e sentir prazer,
nem sequer ouviram o tio subir as escadas de madeira. Os seus corpos fundiam-se
um no outro. Eles eram dois seres alados que voavam entrelaçados para o ocaso.
O clímax esperava-os de braços abertos! O tio Frederico abriu a porta e deu um
grito. Acabava de ver uma das imagens do inferno de Dante. Raul, deitado de
costas, agarrava a barra da cama com as mãos e arqueava o corpo, numa ponte
perfeita. Laura, sentada sobre ele, dobrava o corpo para trás, mostrando os
seios pendurados, mas eretos e um rosto distorcido pelo prazer. O grito,
seguido do estrondo da porta ao ser fechada, foi um anti clímax. Eles
vestiram-se à pressa e, enquanto Laura se esgueirava sorrateiramente, Raul foi
ter como tio à sala.
-
Tio…
-
Vais fazer as malas e vais-te embora.
-
Tio deixe-me explicar…
-
Vais deixar a minha casa e também não te quero a trabalhar para mim.
-
Tio, eu posso explicar.
-
Não! Recebes o mês por inteiro, mas tens de partir. Aquilo que fizeste só por
si já é mau, mas no meu quarto…
O
tio Frederico interrompeu-se recusando-se a verbalizar a cena e passou as mãos
pelo cabelo. Era um gesto nervoso. Família e honra! A família era sagrada, mas
aquilo que o sobrinho tinha feito era demais para ele!
-
Mas…
-
Deixa-me. Vai arrumar as tuas coisas e parte.
-
Eu amo a Laura. Tio!
-
O amor! A mim nunca me serviu de muito. Para ti, pelo caminho que levas, vai
ser a tua perdição!
Estava
tudo dito. O amor por Laura era sagrado para Raul.
Ao
início da noite já Raul estava instalado numa pensão nas avenidas novas.
Deitado, de costas na cama, refletia sobre o que se tinha passado «Foi pouca
sorte o tio ter-nos encontrado.» Pensou. Tinha sido maravilhoso estar com
Laura. Era incrível como ela sendo tão tímida e inexperiente conseguia guiá-lo.
Devia ser intuição feminina! Ele estava tranquilo. Tinha um bom curriculum e
não tardaria estava a trabalhar. O amor dava-lhe força para enfrentar tudo.
Encontrar
emprego revelou-se mais difícil do que Raul esperava. A ausência de amigos e
contactos, devido ao seu feitio, não ajudou em nada. Estávamos em 1983. A
devastação do tecido empresarial que se seguiu à revolução dos cravos fazia-se
sentir em pleno. Nem a intervenção do FMI melhorou a situação. As poupanças,
que nem sequer eram muitas, começaram a desaparecer e ele não via jeitos de
conseguir emprego. Laura parecia alheia à situação dele, contribuindo de forma
ativa para a delapidação do parco pecúlio de Raul. Estava só e desamparado. Os
encontros diários acabavam invariavelmente na cama e eram regados com vinho ou
cerveja que funcionavam como desinibidor. Por vezes terminavam em discussão sem
nenhum motivo especial a não ser o facto de estarem toldados pelo álcool.
Nesses momentos evitavam-se, fixando o olhar vazio no teto. Quando ela partia ele
olhava para os despojos. A cama desfeita e vazia e as garrafas de bebida
espalhadas pelo chão, eram uma visão degradante. «Tenho que arranjar emprego!»
Dizia para consigo.
Raul
contou-me que nessas alturas encostava a testa à vidraça da janela e fixava um
olhar expectante na rua. Nada, apenas silêncio. A rua deserta ou a linha de
comboio, sem tráfego, apenas acentuavam a sensação de solidão. Saía para a rua
e buscava, na noite, o conforto que as portas que se fechavam, lhe recusavam,
durante o dia.
A
situação começava a ser insustentável. Raul tinha penhorado todos os bens de
valor e a conta da pensão estava em aberto.
-
Se assumisse-mos um compromisso mais formal a minha mãe não se oporia aos
nossos encontros.
-
Não posso. Amo-te muito. Demais mesmo. Mas para formalizar um compromisso
preciso de estabilidade.
Os
encontros foram interrompidos.
Desesperado.
Prestes a explodir. Saiu para a rua e caminhou a esmo. Cosido com as sombras, o
olhar no infinito, parecia um autómato.
-
Pst! Hei!
Só
se apercebeu que falavam com ele quando o amigo o tocou no ombro.
-
Ainda bem que te encontro. Regressei há dois dias da terra e soube da tua
situação. Tenho uma proposta para ti. Interessa-te? – Disse o amigo.
Raul
confessou-me que nem sequer hesitou. Não quis saber nada sobre a proposta. A
sua avidez por um trabalho era tal que a resposta foi imediata.
-
Sim. Estou interessado.
Contactou
Laura e pediu-lhe um encontro. «Tinha notícias importantes para lhe contar». Ao
telefone Laura pareceu pouco entusiasmada com o encontro mas quando os dois
ficaram a sós não resistiram e antes mesmo de Raul partilhar as novidades
amaram-se. Foi um momento intenso, puro e singelo, em que eles descobriram que
o que os unia era bem mais forte do que aparentava ser.
-
Vou para Angola. – Disse de forma abrupta. – O ordenado é muito bom e o prémio
por conclusão do projeto ainda é melhor. Quando voltar posso ter o meu próprio
negócio.
Ela
ficou parada a olhar para ele. O seu rosto era inexpressivo. Depois sorriu. Um
sorriso nervoso que ele não soube interpretar.
-
Tu sabes o quanto eu te amo não sabes? Esperas por mim?
-
Sim, eu espero. Podes ir. - Disse ela de forma lacónica.
Laura
estava sentada na borda da cama e ele tinha-se ajoelhado a seus pés e
segurava-lhe as mãos. O tempo parou e o espaço tornou-se irreal. Entre eles uma
barreira invisível. A barreira de um oceano que os iria separar. Dois anos era
muito tempo!
Raul
partiu. O coração apertado fazia-o sentir pequenino. Sentado no avião, as
costas do assento pareciam-lhe enormes, embora os joelhos batessem no assento
da frente. Enjoou. Vomitou tudo menos a dor da separação. Angola, meio em
guerra, era um mundo de oportunidades, riscos e perigos. Trabalhou arduamente.
Experimentou a dureza do calor húmido nas longas noites sem dormir e vibrou com
os odores das cores africanas. Teve paludismo, lidou com a corrupção e com a
extorsão. Criou relações, amizades talvez, dívidas de favores seguramente, mas
venceu. Após um ano a trabalhar por conta de outrem, criou a sua própria
empresa de serviços informáticos, que vendeu antes de regressar. Voltou três
anos depois.
Raul
Cardoso era um homem diferente. Era um homem confiante, otimista, com um futuro
risonho. Os contactos e o dinheiro que trouxe de África permitiram-lhe
constituir uma empresa, equipá-la e contratar pessoas. A carteira de clientes
era boa e o negócio tinha excelentes perspetivas de crescimento. Laura
recebeu-o de braços abertos e a mãe dela deu-lhes a bênção embevecida e com
entusiasmo. O casamento ficou marcado para daí a dezoito meses.
-
Porquê tanto tempo. - Questionei Raul?
Ele
explicou-me que precisava de dedicar tempo ao lançamento do negócio e não
queria que isso atrapalhasse a preparação do casamento à qual queria dedicar
especial atenção. A família e a honra eram valores que ele prezava, agora ainda
mais.
Havia
decorrido um ano e o negócio estava completamente estabilizado. Era tempo de se
dedicar aos preparativos do casamento. Por esses dias apresentou-se-lhe no
escritório o seu principal contacto em Angola. Alguém a quem ele devia, em
parte, o seu sucesso e que agora lhe cobrava um favor. «Pois sim senhor. Favor
com favor se paga.» Raul tonou-se fiador do angolano, num processo que envolvia
um financiamento bancário de valor avultado.
Faltava
pouco mais de um mês para o casamento. Estava tudo tratado. Raul era a imagem
personificada da prosperidade e da felicidade. Quando recebeu a citação
Raul empalideceu. O documento caiu-lhe das mãos e ele cobriu a cara. Incapaz de
se suster, sentou-se. Chorou. Derramou toda a fúria, a raiva e a frustração até
que a fonte das lágrimas secou. Tomou uma resolução. O angolano tinha fugido do
país com o valor do empréstimo. As circunstâncias da sua fuga não eram claras
mas envolviam saias. O financiamento tinha que ser reembolsado, de imediato, na
sua totalidade.
-
Pago. Pago tudo até ao último cêntimo.
Vendeu
a empresa, pelo preço que lhe deram e ficou novamente sem nada. Raul Cardoso
voltou a ser pobre.
A
energia, a força, a vontade que até aí o moviam, tinham desaparecido de um dia
para o outro. O sucesso profissional, a felicidade ao lado de Laura, tinham-se
evaporado, como que por magia. A sua vida tinha sido completamente destruída! O
coração apertado, dentro de um peito que o estrangulava com a dor, fazia-o
sentir pequenino, quase insignificante. Deitado sobre a cama, com o olhar fixo
no tecto sentia-se completamente perdido. «Tenho que dar a notícia à Laura. Mas
como?» O espaçoso apartamento, que tinha arrendado entretanto, parecia-lhe
demasiado pequeno. Sentia-se sufocar. Saiu para a rua. A noite tinha lançado o
seu manto negro sobre a cidade e ele vagueou ao acaso pelas ruas. Sem que isso
fosse uma decisão consciente, os passos conduziram-no à porta da casa de Laura.
Tomou uma decisão. Tinha de lhe contar. Ela tinha de saber que o futuro já não
era risonho. Pior do que isso, que já não existia futuro. Levantou a mão para
tocar na campainha. O ruído de uma janela a ser aberta interrompeu-lhe o gesto.
Era ela. Coseu-se com a parede, escondendo-se na sombra. As lágrimas
corriam-lhe pela face sem que ele fizesse algum esforço para as reter. Chorava
pela sua desgraça, pela sua falta de coragem, chorava porque não sabia mais o
que fazer. Do outro lado da rua acendeu-se uma luz, ao mesmo tempo que a janela
de Laura se fechava. Raul Cardoso, levantou a cabeça e vislumbrou a sombra do
tio por detrás da vidraça. Limpou as lágrimas com a manga do blusão e
aproximou-se da janela. Vieram-lhe à memória os tempos em que a sua vida era
simples. Lembrou-se do seu quarto, das refeições monótonas, mas saborosamente
acolhedoras, com o tio, do seu trabalho, por cima da livraria do Chiado, enfim
das coisas boas de um passado que agora lhe parecia muito longínquo. Tinha
saudade do tio.
Acordou
em sobressalto com o toque do telefone. Era do hospital.
-
O seu tio teve um ataque cardíaco e está em coma. – Disse a voz do outro lado
do telefone.
Ao
entrar no quarto a visão do tio, entubado e respirando com a ajuda de uma
máquina, comoveu-o de tal forma que ficou imobilizado. O tio não devia perceber
nada do que se passava à sua volta, mas a Raul pareceu-lhe o momento adequado
para falar.
-
Desculpe tio. Aquilo que fiz foi uma falta de respeito de uma leviandade sem
limites.
O
tio pareceu pestanejar. Devia estar a ver coisas. Segurou a mão do tio de forma
carinhosa e não saiu da sua beira, tendo dormido sentado na cadeira apenas por
alguns minutos. Foi o suficiente para ser acordado pela entrada repentina do
médico e enfermeira. Era madrugada. O tio tinha acordado. Apesar dos seus
protestos foi obrigado a deixar o tio repousar e aconselhado a ir para casa.
Voltou ao fim do dia e encontrou o tio surpreendentemente bem disposto. Tinha
saído dos cuidados intensivos, embora estivesse sob vigilância. A forma animada
como ele falava com a enfermeira deu-lhe coragem.
-
Preciso de lhe contar o que se passou nos últimos quatro anos.
-
Cala-te. – Disse o tio de forma seca. – Julgas que eu não sei o que tens andado
a fazer?
-
Quer dizer que o tio...
-
Sei muito bem que continuas o mesmo ingénuo. Na verdade é muito pior. Para além
de ingénuo também és estúpido. - Disse o tio mantendo o tom ríspido.
-
Mas tio…
-
Ingénuo e estúpido, mas honrado. Devias-lhes muitos favores era? A isso
chama-se estupidez! O que o teu amigo te fez foi uma canalhice! Pagaste claro!
Isso é honra! E agora? Na miséria outra vez! Estúpido!
-
Assim que o tio melhorar vou ter de voltar a Angola.
-
Cala-te. Estúpido!
Ficaram
os dois em silêncio. O tio encostou a cabeça ao travesseiro e a sua expressão
suavizou-se. Isso encheu-o de esperanças. O coração bateu descompassado. Por
instantes sonhou com a reconciliação.
-
Estou velho e doente para conduzir o negócio sozinho. Quero que sejas meu sócio
e que comeces a participar na gestão da empresa.
E
foi assim. Raul foi viver com o tio, que entretanto patrocinou o casamento,
cuja data se manteve. Laura como de costume reagiu de forma pouco emotiva aos
acontecimentos dramáticos que ele lhe narrou. Raul estava radiante. A boa
fortuna voltava a sorrir-lhe. Para comemorar a sua felicidade marcou uma viagem
de lua-de-mel às Seychelles e o entusiasmo de Laura, quando soube, fê-lo subir
ao céu.
Raul
estava eufórico! Vivia cada segundo da sua vida para satisfazer os desejos da
sua amada e isso, só por si, fazia-o feliz. Era sexta feira e ele tinha
decidido passar a tarde com Laura. Ela veio ter com ele à livraria e depois de
uma volta ao largo do Camões, desceram até ao Rossio, sempre de mão dada. De
cabeça erguida e peito cheio, ele marcava o passo. Laura deixava-se levar. O
cheiro acre do fumo dos assadores misturava-se no ar com o odor adocicado das
castanhas assadas. Era o cheiro a Outono. Assim que dobraram a esquina da rua
do Carmo, o som do saxofone, de um cantor de rua, inundou-lhes os sentidos, com
melodiosas notas de jaz. Chegados ao Rossio Laura teve um daqueles momentos de
entusiasmo que o levavam aos píncaros.
-
Vamos à Torres ver uns anéis!
Raul
anuiu e mentalmente ofereceu-lhe logo um anel. O olhar de Laura humedeceu-se de
prazer e a expressão do jovem, por detrás do balcão, levou-o a virar-se para
Laura ainda a tempo de a ver desviar o rosto, fixando o olhar nas valiosas
peças que estavam na montra. O jovem ourives espalhou sobre o balcão uma grande
variedade de anéis e outras peças, entre as quais se destacava um alfinete de
gravata trabalhado em filigrana. Laura experimentava-os todos com evidente
prazer e exibia-os para Raul ao mesmo tempo que mostrava a mão ao ourives
embevecida.
-
Podes levar o anel que quiseres. Nada é bom demais para o amor da minha vida.
O
ourives olhava para ele com uma expressão estranha. Era inveja seguramente!
-
Enquanto escolhes o anel vou ao banco. Volto num instante. – Disse Raul.
Raul
entrou apressado. Piscou o olhar para se certificar de que estava a ver bem.
Laura estava no topo do balcão, debruçada sobre este, projetando as ancas para
trás. O ourives acariciava-lhe as nádegas numa lentidão consentida. Quando o
viu ele tirou a mão, sorriu para Raul e assumiu uma posição expectante,
aguardando a decisão do cliente. Laura estava corada até à raiz dos cabelos e
manteve o olhar fixo nas joias. O choque deixou Raul num estado autista. Era
como se ele fosse um espetador daquela cena. Ele via o filme da própria vida!
Agindo de forma autómata elegeu um dos três anéis que colocavam Laura indecisa.
Pediu para embrulhar o anel dentro da respetiva caixa e pagou. Pegou no braço
de Laura e virou-se em direção à porta.
-
Desculpe… - Disse o ourives.
-
A conta está fechada e paga, certo? – Disse Raul de forma abrupta.
-
Falta pagar a outra peça…
Raul
olhou alternadamente para Laura e para o ourives. Pela sua mente passaram
dezenas de pensamentos sem nexo e outra vez aquela imagem…
-
Qual peça? O anel está embrulhado e pago!
-
A senhora sabe… - Disse o ourives dirigindo a Laura um olhar irónico.
Aquilo
era demais! Raul estava completamente perdido. Virou-se para Laura e
agarrou-lhe os pulsos com força. Laura que olhava para o ourives, assustou-se.
-
Estás a magoar-me! – Disse a medo.
-
Queres explicar-me o que se passa? – Disse ele com a voz ligeiramente alterada
e sacudindo-lhe os pulsos.
A
mala de Laura caiu no chão e abriu-se. O alfinete de gravata saltou lá de
dentro como se quisesse marcar presença naquela cena. Laura ficou pálida e sem
qualquer reação. Raul sentiu que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Deixou cair
os braços incapaz de reagir. Decorridos breves instantes virou-se, tirou a
carteira do bolso e pagou.
-
Pois claro, o alfinete. Que disparate!
Saíram
do ourives e dirigiram-se para a rua do Carmo. Ele conduzia-a pelo braço,
mantendo-a a seu lado. O silêncio parecia formar uma bolha que os envolvia. O
céu coberto de Cirros anunciava trovoada e o ar parecia cheio de eletricidade.
O pregão dos cauteleiros anunciava a sorte grande, o fumo dos assadores das
castanhas humedecia-lhe os olhos e as gargalhadas dos jovens, que por ele
passavam, agrediam-lhe os ouvidos. Ao cimo da rua do Carmo ela soltou-se a
parou.
-
Vamos acabar com esta farsa. Eu gosto do ourives e como deves imaginar tudo
começou faz muito tempo. – Disse, num tom atrevido, que ele nunca lhe ouvira.
Raul
agarrou-lhe no braço, puxou-a para si como se lhe fosse bater. Ela encolheu-se.
-
És uma ladra e uma vagabunda. Desaparece da minha vista. – Disse de forma
surpreendentemente dura.
Largou-a,
virou-se e desceu a rua Nova do Almada, em direção à praça do Município. No dia
seguinte partiu para o Funchal e nunca mais voltou a Lisboa. Até hoje.
-
Até hoje – Dizia Raúl, sentado na minha frente, no bar do Praia Dourada.
Nota: Este texto é uma rescrição do conto de Eça de Queiroz
"Singularidades de uma rapariga loira"
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