O CORAÇÃO DA CIDADE
O outono tinha chegado. O céu
pardacento, pintado aqui e ali de manchas de azul, por onde o sol teima em
espreitar, retira o brilho à cidade. Por baixo dos guarda-chuvas que se entrechocam,
num jogo surdo, abrindo passagem aos passantes, sobressaem, como novidade, as primeiras
gabardines coloridas ou as botas altas das senhoras, escolhidas com esmero para
enfrentar o inverno. Os passeios húmidos, devido aos primeiros chuviscos, fogem
debaixo dos pés, obrigando a um exercício de equilíbrio precário. Por uma
nesga, rasgada no tapete cinzento que forra o céu, o sol brilhou. A cidade
parece subitamente maior. Os guarda chuvas fecham-se. Os passantes circulam
agora de forma rápida e fluída pelos largos passeios da avenida. O som de uma
ambulância assinala marcha de emergência. Os carros tentam acomodar-se em duas
faixas, deixando espaço para o veículo prioritário. Depois da passagem
barulhenta da ambulância todos tentam ganhar vantagem. O som da sirene é substituído
pelo barulho irritante das buzinas.
- Ó parvalhão não sabes onde é a tua faixa?
– Ouve-se alguém gritar.
- Vai pentear macacos! – Ouve-se do
outro lado.
Indiferente a tudo isso ele caminha de
forma rápida. À medida que avança pela zona vedada aos carros os sons mudam.
Agora são as conversas dos passantes, o ruído dos tróleis dos turistas, que há
muito invadiram a cidade, ou ainda as gargalhadas dos estudantes, que passam aos
magotes ou se agrupam junto a um banco. O Instituto Superior Técnico está mesmo
ali ao lado. Para ele tudo faz parte da cidade. Esses são os ruídos que servem
de pano de fundo para o manancial de ideias que vai germinando na sua cabeça. «Que
engraçado! Tenho que escrever algo sobre o assunto.» Pensa. Terminado o passeio passa
o cartão no sistema de controlo de entradas da empresa.
- Boa tarde. – Saúda sem interromper a
caminhada.
- Ai esta receção! Este barulho
mata-me! - Diz a rececionista, à laia de cumprimento.
Ele para no terceiro degrau e volta-se
para trás. A sua expressão reflete estranheza. Para ele aqueles são os ruídos
da cidade.
- Estamos em Lisboa menina! A cidade
está viva e fala connosco. Isto é o coração da cidade a pulsar! – Diz ele, com
ar bem-disposto.
- Não me convence! – Responde a
rececionista.
Ele vira-se e continua a subir as
escadas. «A vida na cidade é para ser vivida com o espírito de cidade.» Pensa. É
sexta-feira. É dia de experimentar outros sons. É dia de sentir o pulsar agitado
que o coração da cidade tem à noite. «O coração da cidade. Excelente título!»
Pensa. Um sorriso ilumina-lhe as feições.
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