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O BAR




O BAR


Recostado para trás, com uma expressão ausente, ele levantou o copo e sorveu mais o gole de caipirinha. Era a terceira, mas o dia era especial… O guitarrista esforçava-se por manter a atenção da audiência mas ele ignorava-o. Apenas o seu corpo marcava presença no bar. O lugar onde estava sentado era o melhor da sala, em resultado de se ter tornado cliente habitual do bar, no último ano. Estava sozinho, mas isso não parecia incomodá-lo, tal era a naturalidade com que ocupava o espaço da mesa do canto, pensada para duas pessoas. A seu lado, a mesa reservada permanecia livre. Era uma situação pouco comum, tanto mais que o bar estava à pinha. A sexta-feira era um dia diferente: o espaço enchia-se de pessoas à procura de companhia. Alheio a tudo isso, ele sedava os sentidos com álcool. «Se continuo neste ritmo vou ter de ir de Uber!» Pensou. Pediu algo para comer, isso ajudá-lo-ia a adiar o inevitável.
Com um sorriso simpático, declinou o convite para se juntar à mesa onde quatro mulheres, que deviam andar nos quarenta e algo, se tinham fixado nele, desde que ali chegaram. Pedro tinha um metro e setenta e cinco de altura e sessenta anos de idade, mas passava normalmente por quarentão. Não era um homem bonito, mas tinha o chame conferido por uns cabelos cinzentos, aos quais, um rosto com muito poucas rugas, conferia uma aparência mais jovem que o seu registo de nascimento.
As três mulheres chegaram durante o intervalo feito pelo guitarrista. Ocuparam a mesa ao seu lado e observaram o vizinho de forma descarada. Provavelmente, interrogaram-se sobre o facto de estar sozinho. Eram mulheres jovens e interessantes. Uma delas, a mais velha, era mesmo uma mulher bonita. Foi ela que o olhou de forma diferente e, após um comentário em surdina, fez com que as outras o olhassem como quem aprecia um bezerro numa feira. Ele não se intimidou e, sorrindo, levantou o copo e fez-lhes um brinde. Apanhadas de surpresa, elas retribuíram e olharam-no novamente, agora com curiosidade. Depois da troca de galhardetes ele ignorou-as. As duas mais jovens eram extrovertidas e depois da segunda bebida insinuavam-se de forma coquete, embora sem se dirigir a ninguém em específico. A mais velha, apesar de beber mais do que as outras, mantinha-se mais reservada.
O regresso do guitarrista trouxe alguma tranquilidade ao espaço e o bar vibrou com as músicas. Pelo canto do olho ele pode ver que a mais velha lhe lançava um olhar apreciador, de quando em vez, mas de forma muito discreta. O guitarrista despediu-se com “When I need you” de Rod Stewart. Pedro não resistiu e as lágrimas escorreram-lhe pela face. Ele não se incomodou com o facto e deixou-as correr até a fonte secar. Ela olhou-o frontalmente, com uma expressão de admiração e emocionou-se também. Envergonhada, ingeriu a bebida de uma só vez. As amigas encarregaram-se de pedir outra. A coisa começava a ficar fora de controlo. Entretanto, o bar ficou quase vazio e elas continuaram a beber. Pedro olhou para o grupo e teve a tentação de abanar a cabeça numa censura gestual. Conteve-se. Colocou a cabeça entre as mãos e riu-se de si próprio. «Como posso censurar este comportamento? Logo eu que hoje vim para aqui com o objetivo claro de toldar os sentidos!» Pensou. Depois de alguns minutos levantou a cabeça e fixou o grupo. Aquilo que viu deixou-o preocupado. O grupo de homens que tinha entrado no bar não agourava nada de bom. Tinham-se aproximado das mulheres e a sua intenção era óbvia. Estavam a aproveitar o facto de elas estarem descontroladas para as levarem dali, aproveitando a situação em seu favor. «Tenho que ajudá-las. Elas nem percebem o que está a acontecer. Quem sabe se não têm um motivo, ainda mais válido que o meu, para beber em excesso, esta noite!» Pensou.
Nessa altura, a mais velha não tirava os olhos dele e o grupo de homens hesitou, tentando perceber que tipo de ligação podia existir entre eles. Depois de trocarem algumas palavras entre eles um deles disse, em voz alta:
«O avozinho parece um homem sensato. É melhor manter-se afastado.»
Pedro, em vez de ficar intimidado, levantou-se e olhou o jovem nos olhos. Foi um olhar de desafio mas cheio de ironia. O jovem, que devia andar na casa dos trinta conteve-se e afastou-se para o deixar passar. Entretanto, o grupo das três mulheres tinha sofrido uma metamorfose. As mais novas estavam histéricas e a mais velha completamente enjoada. No exato momento em que Pedro passava por elas pressentiu o que iria acontecer e saltou para o lado, com uma agilidade inesperada. Apesar disso, não conseguiu evitar os salpicos do vómito, ficando com as pernas das calças todas sujas. O grupo de jovens aproximou-se delas e, solícitos, ajudaram-nas não se coibindo de as agarrar, tocando-lhes as partes íntimas. Elas esboçaram uma rejeição pouco convincente, devido ao efeito do álcool e eles pediram a conta, dizendo que iam levar as meninas a casa. Nessa altura, Pedro aproximou-se, ladeado de dois seguranças e gritou:
«Fora daqui!»
O grupo era constituído por seis homens que ainda pensaram reagir, mas os dois empregados do bar juntaram-se a Pedro e o assunto ficou resolvido. Eles pagaram a conta e foram embora. O odor a vomitado tinha invadido o espaço e Pedro sentia-o a invetivar a suas entranhas. Se não saísse dali iria vomitar também. Os seguranças foram lá fora e constataram que o grupo dos seis homens estava à espera que as mulheres saíssem. Pedro tomou uma decisão. Pediu aos seguranças e aos empregados do bar que o ajudassem a levar as mulheres até ao carro e foi levá-las a casa. O cheiro não os abandonou pois, quer Pedro, quer a mulher, traziam consigo os vestígios da mistura explosiva que ela tinha expelido: álcool fermentado e uma refeição quase digerida! No dia seguinte teria de mandar lavar o Audi. Fazia uma semana que tinha comprado um Q8, que ainda cheirava intensamente a novo. A mistura de cheiros resultava pouco agradável. Ele ajudou a mais velha a sentar-se à frente e as duas amigas sentaram-se lá atrás. Viviam as duas nas colinas, em Odivelas e tinham vindo de táxi até à Quinta das Conchas, onde vivia a mais velha. Apesar dos protestos Pedro levou-as a casa e ficou parado, à porta, até elas entrarem no apartamento e virem à janela acenar. Entretanto, Filipa tinha adormecido mal o carro entrou em andamento. Apenas quando chegou à Quinta das Conchas se lembrou de que não sabia qual era o apartamento dela. O segurança do condomínio não o reconheceu e veio ver quem o acompanhava. Quando viu o estado em que ela estava laçou um olhar de censura a Pedro, que o atingiu como um raio. Era difícil acreditar que ainda existissem bons samaritanos. Não valia a pena tentar explicar. O importante era a sua consciência. Sem que o tivesse solicitado o segurança disse-lhe:
«Ela vive no número três, quinto B.»
Pedro acenou com a cabeça num agradecimento mudo. Estava demasiado embaraçado para falar. Parou o carro e tentou acordar a mulher, mas ela estava completamente quebrada, murmurando coisas sem nexo. Pedro pegou nela ao colo e dirigiu-se para a porta de entrada. Felizmente, ela tinha uma bolsa minúscula e as chaves estavam à vista. Mexer na bolsa de uma desconhecida era uma situação desconfortável… Carregou-a até ao elevador e depois colocou-a sobre os pés, mas teve de a segurar, de encontro a si, para ela não escorregar para o chão. Ela pendurou-se no pescoço dele e começou a murmurar-lhe coisas ao ouvido.
«Sabes… eu… eu amo-te Vitor. Tu… só tu… tu és a minha vida…»
Depois começou a beijar-lhe o pescoço.
«Hum… cheiras bem… não me lembro deste cheiro Vitor… hum…»
Pedro estava completamente atordoado. Era uma situação completamente disparatada. Uma mulher linda, completamente bêbada beijava-lhe o pescoço e declarava o seu amor a outro homem! Apesar da incoerência de tudo aquilo ele ficou excitado. Aquela mulher mexia com ele! Quando chegaram ao quinto andar teve de a carregar outra vez e de abrir a porta. Entrou e, com todo o cuidado, depositou-a no sofá. Ela não o queria largar, mas ele soltou-se e cobriu-a com uma manta, que estava dobrada na borda do sofá, depois preparou-se para ir embora.
«Vitor!» Disse ela, tentando levantar-se e caindo imediatamente no chão.
Pedro correu em seu auxílio «Espero que não se tenha magoado.» Pensou.
«Quero ir para a cama. Vem Vitor…» Disse ela, enroscando-se no pescoço dele.
Pedro levou-a para o quarto e a pedido dela ajudou-a a despir. Deixou-a ficar com o top preto e retirou-lhe os ténis, as meias e as calças. Ela era uma mulher com um corpo bem delineado. Por alguns instantes o olhar perdeu-se nas formas dela. Instintivamente, ficou excitado. «Meus Deus! O homem é mesmo um animal!» Pensou. A voz dela chamou-o à realidade.
«Abraça-me Vitor!» Exigiu ela puxando-o pelo braço
«Vou beber um copo de água e já venho.» Disse ele, alinhado no jogo e tapando-a com o edredom.
Ela colocou-se em concha e acalmou-se. Passados cinco minutos, dormia profundamente. Nessa altura, Pedro abandonou a o quarto, pé ante pé, foi até a cozinha deixar a roupa dela e fechou a porta da rua, sem fazer ruído. Quando chegou a casa colocou a roupa de molho e foi tomar um banho, para se libertar daquele cheiro. O braço onde ela tinha encostado o rosto, quando a retirou do carro, tinha o cheiro dela. Sentiu-o, uma e outra vez, era um cheiro tão agradável que chegou a pensar não o lavar. Riu-se da parvoíce daquele pensamento e meteu-se debaixo do chuveiro. Eram cinco da manhã. Deitou-se e dormiu profundamente. Acordou com o toque do telefone, quando eram onze horas. Um amigo desafiava-o para ir jogar ténis. Pedro absteve-se de partilhar a história com quem quer que fosse, mas a noite tinha deixado as suas marcas. Nesse sábado, tinha um jantar de amigos e estes foram unânimes em comentar que ele estava diferente. Parecia que tinha ficado mais jovem, diziam as mulheres.
As amigas da Filipa eram duas jovens de trinta e cinco anos, divorciadas, que viviam juntas. Quando acordaram, ligaram para ela. Precisavam de falar sobre a noite anterior pois era tudo um pouco confuso. Estavam preocupadas porque a tinham deixado sozinha com aquele homem. Ele parecia ser simpático, mas não deixava de ser um desconhecido. Depois de várias tentativas sem que ela atendesse, ligaram para a cunhada dela, que por sua vez ligou ao irmão e, em conjunto, decidiram ir ver como estava Filipa. Estavam um pouco constrangidos, pois não sabiam se a iam encontrar acompanhada, o que seria desagradável para todos. Tocaram insistentemente à campainha e ao fim de quinze minutos Filipa abriu-lhes a porta. Estava com um aspeto lastimável e com uma dor de cabeça horrível.
«As tuas amigas estavam preocupadas. Dizem que passaste mal a noite e que vieste para casa com um desconhecido.»
«Infelizmente, a minha recordação da noite é pouco agradável e algo difusa.»
«Estás bem e ninguém te fez mal, certo?» Perguntou a cunhada.
«Estou bem. Ontem fomos salvas por um anjo. Um verdadeiro anjo.» Filipa narrou-lhes tudo o que aconteceu e os dois irmãos ficaram a olhar para ela. A sua gratidão em relação ao desconhecido era evidente, mas nas suas palavras existia algo mais do que gratidão. Isso deixou-os curiosos.
«Portanto, vomitaste em cima do homem e ele ainda te salvou de seres assediada por um bando de vadios!»
«Por falar em vomitado, onde está a minha roupa? O quarto devia estar a cheirar a azedo!»
Foram até à cozinha e encontraram as calças e a blusa emersas em água e já limpas do vomitado. O desconhecido era uma fada do lar!
Nos dias que se seguiram ela tentou saber quem seria o desconhecido que as resgatou, mas foi em vão. Filipa não desistiu e na sexta-feira arrastou as amigas para o bar, para ver se ele aparecia. Elas estavam contrariadas.
«Admito que o velho foi simpático, mas esse teu interesse por ele está a tornar-se doentio!» Disse uma delas.
«Se não querem vir, vou eu sozinha.»
Foram as três. Como o homem não apareceu, Filipa, num dos intervalos da música, foi ter com o empregado que as tinha ajudado. Ele lembrava-se bem delas e do homem.
«Lamento, mas não posso ajudá-la. A única coisa que sei é que o senhor se chama Pedro.»
«Obrigado.» Disse ela com ar compungido.
«Espere! Ele deve ser professor universitário porque no mês de Julho reservou o bar para um grupo de estudantes.» Disse o empregado.
«Consegue dar-me mais detalhes desse grupo?»
«Apenas que sabiam todos muito de impostos.»
Filipa agradeceu e retirou-se. Não disse nada às amigas, mas existia uma coincidência que ficou a martelar-lhe o pensamento. No sábado foi falar com o cunhado. Dinis tinha sido quem lhe recomendou o bar, exatamente porque tinha estado com o professor de fiscalidade, no fim do mestrado, a tomar um copo com toda a turma. Dinis conhecia o homem apenas como professor, mas, apesar disso, achou a hipótese pouco verossímil.
«Eu preciso de esclarecer esse assunto. Podes arranjar forma de me encontrar com o teu professor?»
«Não é preciso. Vem cá.»
Ligou o computador e entrou no Linkedin. Lá estava o perfil do Professor Pedro Abreu.
«Meu Deus! É ele!» Disse Filipa, com um entusiasmo incontrolável.
Dinis assustou-se com o grito da cunhada. O elo que a ligava àquele homem era inexplicável. Era óbvio que se sentia profundamente grata e, na verdade, tinhas razões muito válidas para isso. Depois dela insistir, Dinis Pereira combinou um encontro com o professor. No dia seguinte, o professor Pedro ia almoçar à Versalhes e, antes do almoço, tinha reservado quinze minutos para conversar com o aluno.
Quando Pedro chegou ao restaurante já o aluno lá estava. Aquilo que lhe pareceu inexplicável era por que razão Filipa estava ao lado dele. Dinis explicou tudo ao professor e ela pediu-lhe que a ouvisse. Pedro estava muito reticente. É verdade que a noite tinha deixado as suas marcas, mas daí a criar um vínculo com aquela mulher ia uma grande distância. O pedido mudo do olhar dela quebrou a barreira e ele acedeu. Já que iam conversar, durante algum tempo, o melhor era aproveitarem para almoçar.
Pedro não sabia muito bem o que havia de dizer, por isso optou por centrar a conversa no almoço. Fizeram o pedido e ele calou-se.
«Eu queria começar por lhe agradecer o facto de me ter salvo de uma situação muito desagradável.»
«Não era necessário qualquer agradecimento. Vocês não estavam em condições de se defenderem.»
«Também lhe devo um pedido de desculpas, por ter vomitado para cima de si. Quanto ao agradecimento, ele é mais do que necessário. Não era qualquer um que enfrentava aquele grupo de vadios, para defender umas bêbadas e em seguida era tão cuidadoso e gentil como o senhor.»
«Não me pareceu que fossem pura e simplesmente umas bêbadas. Existem muitas razões para uma pessoa se exceder. Eu próprio, nessa noite, tinha decidido embebedar-me e não o fiz por vossa causa. Talvez seja eu quem vos deva um pedido de agradecimento.» Disse Pedro, com ironia.
«A diferença reside exatamente nessa capacidade de decidir não se embebedar. Eu perdi a mesma no dia em que um acidente me roubou o marido, o Vitor, e os meus dois filhos. Desde essa altura que quando saio a noite acaba, invariavelmente, da mesma forma. Mesmo durante a semana são muitas as vezes em que não vou dormir sem beber. O álcool ajuda-me a não pensar neles.»
Despois da confissão, Filipa ficou emocionada e Pedro não sabia o que dizer. Segurou as mãos dela, entre as suas, com carinho, procurando controlar a sua própria emoção.
«Eu não consigo imaginar o drama que vives – sem se aperceber tinha começado a tratá-la por tu – talvez entenda uma parte porque perdi a minha esposa recentemente. No sábado em que nos cruzamos no bar, fazia exatamente um ano que ela tinha morrido, abalroada por um camião, que se despistou, na A5. Mas perder um filho…»
Ela arregalou os olhos e apertou as mãos dele com força e chorou convulsivamente. Algo naquilo que ele tinha dito a tinha tocado de uma forma impressionante. Ficaram assim durante largos minutos, deixando toda a gente, à volta deles, constrangida. No entanto, para eles o mundo, naquele momento, era aquela mesa do restaurante, eram eles os dois e mais ninguém. Ela tentou várias vezes falar, mas a emoção impediu-a de o fazer. Pedro respeitou o momento. Nada do que dissesse faria sentido. Era necessário que a dor cedesse o lugar às palavras e as lágrimas eram a melhor forma de o conseguir.
«O meu marido morreu exatamente nesse dia, também num acidente de automóvel, na A4, a caminho de Braga. Isso não pode ser apenas uma coincidência!»
As lágrimas voltaram a correr, agora pelo rosto dos dois. As lágrimas pareciam não ter fim, mas quando estas acalmaram eles mantiveram as mãos entrelaçadas, como se quisessem ficar unidos para sempre. Havia uma energia que fluía, de um para o outro, através desse ponto de união, que os acalmava. A dor que carregavam e que até aí parecera insuportável, e sufocante, tinha adormecido. As lágrimas tinhas sido libertadoras mas, o melhor de tudo, era aquela energia que fluía entre eles. Olharam-se, atónitos, sem compreender bem aquilo que se estava a passar. Nesse olhar viram os sentimentos um do outro e as palavras tornaram-se dispensáveis. Os rostos aproximaram-se lentamente e selaram o momento com um beijo. O contato dos lábios, embora suave, foi eletrizante. Afastaram-se confusos. Voltaram a beijar-se e uma descarga elétrica percorreu-lhes o corpo. As bocas, entreabertas, ansiavam uma pela outra e eles não contrariaram o desejo. Os lábios devoraram-se e as línguas entregaram-se a uma guerra insana, sem vencido, nem vencedor. Cansadas de se digladiar enrolaram-se, numa valsa Vienense, até que os lábios se separaram.
Olharam-se, novamente, enquanto os rostos se afastavam. Ele segurou-lhe a mão direita e, gentilmente, depositou-lhe um beijo carinhoso. Era um pedido de desculpas pela sua ousadia e um sinal de respeito. Com a outra mão ela acariciou-lhe o rosto, manifestando, numa declaração muda, que o contato era consentido, mais ainda: era desejado. Apesar daquele beijo, eles eram apenas dois desconhecidos, unidos por uma circunstância fatal. Tinham um caminho muito longo pela frente, mas concluíram que não podiam ignorar aquilo que aquele beijo os tinha feito experimentar. Seria apenas uma experiência física ou havia algo mais que os unia?
Durante os restantes dias da semana encontraram-se para almoçar e várias vezes jantaram juntos. Os dois filhos de Pedro, um casal de jovens, já eram crescidos e estavam a trabalhar no estrangeiro, pelo que ele tinha o tempo todo disponível para ela. Ambos tinham muita vontade de estar juntos, mas existiam muitas coisas que os separavam. Os amigos, de uma e outra parte, achavam que a relação estava condenada: Ela tinha trinta e oito anos e ele sessenta. Filipa dizia que sempre gostara de homens mais velhos, a evidência disso era que o falecido esposo tinha mais dez anos que ela. Para além disso, não era o tipo de mulher que gostava de noites loucas, preferia a tranquilidade de um bar, embora gostasse muito de dançar. Eles eram, em muitos aspetos, o par perfeito.
Em teoria tinham testado todos os pontos, mas o dia-a-dia da vivência em conjunto iria ser o verdadeiro teste. Ao fim de três semanas de relação, ainda sem intimidade física, decidiram juntar os amigos dos dois num jantar. Foi um jantar que teve tanto de divertido como de trágico. Não havia maneira de juntar os dois grupos, que se mantiveram completamente separados, até à hora de se sentarem à mesa. O jantar era na casa de Pedro, que tinha um grande salão onde tinham sido colocadas três mesas de doze pessoas cada. Pedro foi quem distribuiu os lugares, misturando os dois grupos. A resistência foi grande mas quando o vinho começou a rodar o ambiente ficou mais desanuviado. Pedro tinha contratado um cantor a solo, que atuou para o grupo, cantando musicas conhecidas e intemporais. Ao fim de algum tempo os convidados estavam a cantar em uníssono. Se o princípio foi uma tragédia, o fim foi uma paródia e o balanço foi positivo.
Quando todos partiram, Filipa ficou sozinha com Pedro a acabar de arrumar a cozinha. Até nisso o entendimento era total: preferiam deixar tudo limpo antes de ir dormir. Quando terminaram estavam cansados. Filipa olhava de soslaio para Pedro. Ela fervia de desejo, mas consciente da idade dele e de que podia estar cansado, não se manifestou. Quando terminaram, ele abraçou-a por trás e ela estremeceu nos braços dele. Ele sentiu-lhe o desejo e, apertando-a conta ele, fez-lhe sentir o quanto a desejava também. Ela ficou radiante. Aquele homem era um poço de surpresas! Virou-se lentamente, beijou-o e puxou-o de encontro a si esfregado o seu corpo no dele. O fogo tinha sido ateado, agora era deixá-lo consumir o desejo que os alimentava. Foi o seu primeiro contacto íntimo. Eles exploraram cada canto do corpo do parceiro, com paciência e com curiosidade. Dando e sentindo prazer, um prazer que os fez explodir em vários clímax. Experimentaram todas as posições com ele no comando e ela submissa, mas ativa. Ela não recusou nenhum dos desafios, mesmo os que lhe causaram alguma dor e eram completamente novos para ela. Foi um entendimento perfeito. Quando se deram conta do tempo perceberam que eram quatro da manhã. Eles tinham deixado a cozinha às duas!
Estavam ambos exaustos, mas ela estava deliciada e completamente rendida. Muitos dos jovens que tinha conhecido, na sua longa experiência sexual, teriam caído para o lado ao fim dos primeiros trinta minutos. Ele era o homem da vida dela! Pedro estava em delírio. Era difícil encontrar uma mulher que se submetesse daquela forma, mas ao mesmo tempo tivesse iniciativa. Nada tinha sido fingido! Ela sentia prazer a cada toque dele, a cada instrução, a cada palmada, até as obscenidades, que ele lhe tinha segredado ao ouvido, a tinham deixado excitada. O sexo não é tudo numa relação, mas é um argumento muito poderoso, que muitas vezes determina o sucesso da mesma. Entre eles o sexo era do outro mundo! Adormeceram nos braços um do outro, cansados, satisfeitos e felizes.
O caminho era longo, mas aquela noite agoirava coisas boas para a relação.

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