A
RAIA
O
padrinho tinha mandado palavra: precisava de ter dois dedos de conversa. Gostava
muito do padrinho e estava com ele muitas vezes, embora isso acontecesse com
menos frequência, desde que este ficara entravado. Abraçaram-se com amizade. O
padrinho era um proprietário agrícola, descendente de um morgado. Era uma
pessoa nobre e justa, que não negava a merecida ajuda a quem dela precisasse.
Isso já lhe tinha causado alguns problemas, no passado, dos quais um advogado
famoso, da capital, o tinha livrado. Era um homem respeitado por todos e
venerado por muitos. Sorvidos os primeiros goles de néctar dionisíaco, surgiu o
pedido.
«Preciso que me faças um favor. Trata-se do
filho de uma pessoa a quem devo muito.»
A
sentença estava dada. A resposta não podia deixar de ser positiva. Faustino
poisou o copo devagar e fitou o padrinho. Pelo ar dele não devia ser coisa boa.
O filho do amigo andava fugido à PIDE-DGS e chegaria, mais ou menos, dentro de
uma semana a Figueira de Castelo Rodrigo. Ele tinha de o esconder durante o
tempo necessário para preparar o salto para Espanha. Tinha uma pessoa à espera,
do outro lado da fronteira, em Bouça, que o faria atravessar Espanha,
entregando-o, são e salvo, em França. O padrinho calou-se e deu-lhe tempo para
digerir a informação, depois segurou-o pelo pulso e fitou-o com ar sério.
«Isto é muito mais perigoso que fazer
contrabando ou ajudar um mancebo a fugir à guerra. Não confies em ninguém. Eu
não quero ser responsável pela tua prisão.»
«Não se preocupe padrinho. Eu trato do
assunto.»
Quem
ficou preocupado foi ele. Regressou a casa, a cismar no assunto. O último poiso
do fugitivo, antes da casa dele, era a Quinta do Torrão, junto à Guarda.
Aparelhou os três melhores cavalos e fez saber que iria passar uns dias na
Guarda, com os dois compadres: iam visitar umas feiras. Partiram quatro dias
depois, na antevéspera da chegada do fugitivo à Quinta do Torrão. Chegados à
cidade foram pernoitar num local que ficava nas imediações. Era apenas um
palheiro pertencente a um amigo que não o usava nessa altura do ano e que
desconhecia a sua presença. Nos dias seguintes patrulharam a imediações da
Quinta do Torrão, a pé. Um deles ficava a guardar os cavalos, vigiando a
entrada principal, os outros dois patrulhavam as restantes entradas da cidade.
Estavam um pouco a sul da Quinta do Torrão, pois queriam apanhar o jovem antes
de este chegar ao seu destino. Durante a noite estava sempre um de vigia. Foi
assim que viram chegar os carros dos militares, acompanhados de dois civis. As
suas suspeitas confirmavam-se: os pides tinham conseguido saber que o fugitivo
passaria por ali. No dia seguinte, desceram um pouco mais para sul o que foi
providencial. À tardinha, Faustino, viu surgir ao longe a carroça do vendedor
ambulante. Sentou-se no muro encostado ao pau, numa postura que aparentava mais
idade do que aquela que tinha. Vinham por um caminho secundário, o que era
perigoso para a carroça e isso apenas podia significar uma coisa.
«Boa noite. O amigo sabe dizer-nos o caminho
para a Quinta do Torrão?»
Estavam
a pedi-las! Perguntar pelo caminho a um desconhecido era o mesmo que anunciar à
polícia a sua chegada. Pensou rapidamente e mandou-os virar no próximo
cruzamento à direita. Isso ia levá-los para junto de um dos compadres e, ele,
cortando o caminho, chegaria lá primeiro que a carroça. Quando perceberam que o
caminho não tinha saída e se viram cercados, ainda procuraram fugir, mas a vara
de Faustino fê-los tropeçar e rapidamente foram imobilizados. Faustino
identificou-se como inspetor da PIDE, dando um nome falso e mandou o homem da
carroça de volta para casa.
«Desaparece daqui. Não te esqueças que sei
quem és. Mantém o bico calado e se tiveres que dar satisfações a alguém, diz
que deixaste o rapaz no seu destino.»
O
jovem ainda tentou uma bravata, mas quando o vendaram percebeu que estava
perdido. Nesse momento, deixou cair a cabeça e aceitou a derrota. Quando
chegaram junto aos cavalos foi colocado na garupa e conduzido até ao palheiro.
«Vamos levá-lo para Figueira de Castelo Rodrigo
hoje.» Disse Faustino
Fizeram
a viagem levando o jovem na garupa, à vez, para os cavalos aguentarem uma
viagem rápida. Era de madrugada quando chegaram, mas o galo ainda não tinha
cantado. Depois da viagem, o jovem estava completamente perdido e confessou
quem era, o que foi confirmado pelos documentos na sua posse e pelas
informações que Faustino tinha do padrinho.
«Estás em boas mãos. Somos nós que te vamos
fazer atravessar a raia.»
«Mas então porque me trouxeram para aqui
desta forma?»
«Há mais militares e pides do que populares,
na região. Eles estão por todo lado. Alguém abriu o bico, porque eles estavam à
tua espera na Guarda e se te apanhassem, para além de estares perdido, irias
comprometer-me a mim e à minha família. É crucial que o teu guia pense que
foste apanhado e sobretudo que tenha medo de falar.»
O
jovem assentiu sem pronunciar uma palavra. Estava perante pessoas que sabiam o
que faziam, por isso mais valia obedecer. A primeira coisa foi vesti-lo como um
camponês pobre. A mochila que trazia com ele foi substituída por uma trouxa
onde os pertences foram cuidadosamente arrumados. No dia seguinte, os donos da
casa, na Quinta do Torrão, onde ele ia ficar, foram presos. Eles não sabiam
nada, para além da senha e contrassenha e a PIDE ficou novamente sem pistas.
Ainda bem que Faustino tinha mandado o homem da carroça para trás.
Eram
três as pessoas que ele tinha de fazer atravessar para o outro lado. Um desgraçado
que tinha esfaqueado um padre, que lhe tinha violado a mulher e que, devido à
vergonha, se tinha jogado de uma ponte, depois de contar tudo ao marido. O
segundo, era um jovem mancebo que pretendia evitar o serviço militar, filho de
um grande amigo e o terceiro era o “doutor” que andava fugido da PIDE. Os três
formavam uma coleção digna de ser emoldurada. Por enquanto, estavam os três
escondidos no sótão por cima do palheiro. Comiam ao mesmo tempo que as vacas,
que dormiam na loja do rés-do-chão. A comida seguia num dos baldes que era
suposto ir cheio de água com farinha. Em princípio ninguém sabia que eles
estavam ali, mas Faustino não confiava em ninguém. Nem nos vizinhos, nem nos
empregados. Quando tinha "hóspedes" Faustino não ia para casa. Ficava nas instalações
por cima da corte dos animais. Isso era um procedimento normal de muitos
pastores, quando a cerca dos animais ficava longe de casa, que era o caso.
A
Raia estava a ferro e fogo. As autoridades sentiam-se enganadas por não terem
apanhado o fugitivo, na Guarda e projetavam a sua frustração nos populares. O
governo mandou reforçar a fiscalização da fronteira e à Guarda Nacional
Republicana juntou-se a Guarda Fiscal e a Guarda Florestal. Toda a fronteira
estava em alerta, mas entre o rio Maçãs, no distrito de Bragança e Perais, onde
o rio Tejo entrava em Portugal, a vigilância era especialmente apertada e
comandada diretamente por agentes da PIDE. Tinha sido desencadeada uma
autêntica caça ao homem. Por esses dias foram vários os contrabandistas e os “passadores”,
menos informados, que se aventuraram a dar o “salto” e foram apanhados.
Faustino via o cerco apertar e tratou de encontrar uma saída. Emparelhou o
cavalo e pôs-se a caminho, depois do matabicho. Queria ver e ser visto.
Percorreu aproximadamente quarenta e cinco quilómetros, parando nas tabernas de
todas as aldeias por onde passou. Desceu para Nave Redonda, donde partiu para
Vermiosa, o ponto mais a sul que iria visitar, depois subiu para Escarigo e
continuou até Escalhão, passando por Almofala e Mata Lobos. Faustino era um
homem conhecido e estimado, por isso falou com muita gente e sobre muitas
coisas, estando satisfeito com o resultado da viagem. A notícia do seu périplo
espalhou-se como pólvora. As autoridades ficaram em alvoroço e reuniu-se o estado-maior.
Era
madrugada quando a propriedade foi invadida pela GNR. O alferes que os
comandava estava acompanhado de um homem de fato, com um pesado sobretudo e um
chapéu preto, que era quem verdadeiramente mandava e que ele tratava,
respeitosamente, por Sr. Inspetor. Entraram pela casa dentro sem cerimónia e
vasculharam tudo, desde os alojamentos à corte dos animais. O jovem pastor que
tinha regressado, depois de quinze dias em casa dos pais, estava nervoso e
quando os homens começaram a revolver o palheiro ele tentou impedi-los.
«Não te maces. Deixa as autoridades fazerem o
seu trabalho.» Disse Faustino impassível.
Não
havia vestígio nenhum da presença de outras pessoas para além de Faustino e do
pastor.
«O que andou a fazer ontem, todo o dia, pelas aldeias
da raia?» Perguntou o homem do sobretudo, num tom manso, mas imperativo.
Faustino
relatou o negócio que fez em cada uma das aldeias, justificando a sua presença
nas mesmas. O homem sorriu muito levemente, mas sem mostrar os dentes. «Este
homem ou está inocente ou é muito perigoso.» Disse o pide, em surdina, ao
alferes. As autoridades abandonaram a propriedade, mas ele sabia que iria estar
sob vigilância. Era por isso que os três fugitivos tinham partido, na véspera, enquanto
ele se mostrava publicamente e se foram esconder numa gruta que ficava em
terrenos comunitários, ligeiramente a norte de Almofala. Faustino, não vivia do
contrabando, nem de passar pessoas para o outro lado. Apenas fazia isso para
situações especiais e por encomenda. O seu preço ou era muito elevado ou era
gratuito. O caso presente era pro bono. Por isso mesmo, tinha uma rota
alternativa e não recorria à rede de passadores, nem fazia parte desta. Tinha a
sua própria rede.
Tinham
decorrido dois dias desde que os fugitivos tinham sido levados, pelo nascer da
aurora, para uma gruta que ficava entre Almofala e o rio Águeda. Por baixo de
um penhasco, no meio da íngreme encosta que era a aproximação ao rio, ficava um
esconderijo que apenas ele conhecia. A boca da gruta ficava virada para Espanha
e a aspereza do terreno, íngreme e rochoso, tornava o acesso difícil e
perigoso. Quando era jovem perdeu aí uma cabra e ao procurá-la descobriu a
gruta. Manteve a descoberta em segredo. A entrada era estreita, mas a única
nave que esta possuía, era muito espaçosa, permitindo acomodar mais de uma
dezena de pessoas. O que era notável é que a gruta tinha um respirador natural,
que permitia ter pessoas lá dentro, com a entrada fechada. Os homens tinham
comida e bebida para quinze dias e instruções para aguardarem por Faustino,
devendo manter-se dentro da gruta durante o dia.
Era início
de Fevereiro e o tempo chuvoso alternava com momentos de sol esplendoroso. Nos
últimos dois dias tinha chovido torrencialmente e, de Espanha, vinha um vento
gelado, que os obrigou a ter a entrada sempre fechada. Uma chuva, alternada com
granizo, tinha escorrido, em torrente, encosta abaixo, selando a entrada da
gruta, com terra e pedras. No terceiro dia os homens foram acordados pelo latir
longínquo de cães. Não era costume andar por ali ninguém pelo que ficaram em
sobressalto. À medida que o som se tonou mais nítido os homens foram-se
encolhendo, tendo medo até de respirar. Olharam uns para os outros, como se
adivinhassem o que lhes atravessava o pensamento. «Alguém nos denunciou!»
Encostaram-se uns aos outros, enrolados nas mantas e aguardaram. Esperavam a qualquer
momento que um militar entrasse gruta a dentro e lhes desse ordem de prisão. O
som dos latidos, agora, era audível em dois locais distintos: junto à entrada e
através do respirador. Os cães estavam tão perto do respirador que os latidos
pareciam mesmo lá dentro. A determinada altura até a voz dos homens se tornou
audível.
«O raio do cão não para de latir para este
rochedo. Vamos embora. Aqui não há nada!» Disse uma voz, mesmo ao lado do
respirador.
O
que é facto é que o buraco do respirador terminava numa rocha proeminente e pontiaguda, não sendo, de todo, visível. Entretanto, o
cão que estava à entrada da gruta afiava a unhas na rocha, que tapava a entrada,
de forma desenfreada.
«O que há por aí que o raio do cão está tão
nervoso?» Perguntou o homem do sobretudo.
«Não vejo nada senhor inspetor!»
«O cão não ladra assim sem motivo. Vou
descer.»
Lá
dentro os três homens, que até então tremiam de medo, ficaram em pânico. O
inspetor retirou duas ou três pedras mais pequenas, que as águas tinham amontoado
e inspecionou a rocha de um e outro ângulo. O cão não parava de ladrar. O
doutor chorava de mansinho e os outros dois fixavam a entrada com ar
aterrorizado. No entanto, a sorte estava do lado deles. A chuva tinha selado a
pedra à gruta de tal forma que era totalmente impossível adivinhar que atrás
desta estava o buraco da entrada.
«Cala-me o raio do cão. Deve pensar que
viemos à caça de coelhos. Vamos embora que aqui não há nada.» Disse o inspetor,
irritado pelo facto de ter descido em vão.
Apenas
quando deixaram de ouvir os cães eles relaxaram um pouco. Nessa noite não
tiveram coragem de sair para fora da gruta e, apesar de não chover, esticaram
as pernas caminhando de um lado para o outro, como nos dias anteriores.
Passaram muitos mais dias sem que tivesse aparecido alguém para os resgatar. Foram
dias de angústia, de medo e de sofrimento. Sentimentos que acabaram por criar
uma solidariedade entre aqueles homens, inimaginável, há uma semana atrás.
Entre
as autoridades tinha deixado de haver consenso. Havia quem pensasse que os
fugitivos tinham atravessado a fronteira noutro lado e quem achasse que eles se
tinham acoitado, para deixar passar a “tempestade”.
«Impossível! Temos muitos informadores por
aqui e ninguém viu nada, nem sabe nada. Se eles estivessem na região nós
saberíamos.» Argumentava o inspetor.
O
que era certo é que tinham desmobilizado parcialmente, criando espaço para
alguma ação. Faustino dizia que eram tempos de ser mocho: Tinham que ficar
quietos, no seu poiso e de olhos bem abertos. Foi o que fizeram. Apesar da
calma aparente a apreensão de Faustino aumentava cada dia que passava. Ele
sabia o risco que existia de os homens perderem as estribeiras, saírem da gruta
e denunciarem a sua presença.
Quando
decidiu tirá-los de lá fazia quinze dias que eles estavam na gruta. Naquela
altura do ano, apesar do rio não ser muito profundo a corrente era muito forte
e a água estava demasiado fria para entrarem nela. O truque era atravessar numa
jangada. Partiam de um ponto mais a norte, que o local onde desejavam aportar e
deixavam que a corrente os levasse. A jangada era equilibrada com varas, por
Faustino e pelo compadre. Esconderam a jangada e meteram-se a caminho. Tinham
que andar depressa, pois Faustino e o compadre tinham que estar em Almofala antes
de amanhecer. Eram dezanove horas quando atravessaram o rio. Tinham que
percorrer aproximadamente vinte e dois quilómetros até Fuenteliante e outro
tanto para regressar. Faustino conhecia bem o caminho. Eram quatro horas e meia
para cada lado. Depois levaria mais uma hora para atravessar o rio e chegar a
Almofala. Era à justa, mas dava para estar na cama às cinco da manhã. No
inverno, a essa hora ainda estaria toda a gente a dormir.
Alternavam
a caminhada com a corrida, pois queriam passar ao lado das localidades e isso
alongava a distância. Foram várias as vezes que tiveram que se esconder,
assustados por algum ruído e duas vezes pela presença de algum notívago, que
regressava a casa. Conseguiram chegar às proximidades de Fuenteliante, sem ser
vistos por ninguém. Isso era muito bom.
«Todos para fora do caminho!» Disse Faustino
em surdina.
Tinham
avançado bastante rápido, por isso ainda não eram vinte e três horas, embora em
Espanha já fosse quase meia-noite. A aldeia não estava tão calma como seria de
esperar. Havia uma ou outra habitação que tinha luzes acesas.
«Será que estão à nossa espera?»
«Não é possível. Nem eu sabia que vínhamos
para aqui.» Respondeu o compadre.
«Fiquem aqui que eu vou averiguar.» Ordenou.
Faustino
movimentava-se cosido com as sombras. Parecia ser invisível. Quando os cachorros da
aldeia começaram a ladrar estancou. Não podia atravessar a aldeia. Era
mais um contratempo, pois contorná-la iria alongar o trajeto. Contornou a
aldeia movendo-se silenciosamente. Apesar disso, os cachorros não se acalmaram
e acenderam-se mais algumas luzes. Entrou no quintal, que ficava nas traseiras
da casa e o guarda canino aproximou-se dele com o rabo a abanar. Afagou o
animal e ficou uns bons minutos em silêncio, tentando perceber se existia
movimento na rua. A casa ficava fora da aldeia, numa posição sobranceira, que
lhe permitia ver se alguém se aproximasse. Apesar de existir movimento na
aldeia, ninguém se aproximou da casa. Lançou três pedras à janela e esta não
tardou a abrir-se. Trocada a senha e contrassenha, na escuridão, o dono da casa
desceu. Abraçaram-se e Alfonso, deu-lhe a chave do casebre onde os homens iriam
ficar. Tinha que se despachar porque os cães não paravam de ladrar e era cada
vez maior o número de luzes acesas, sendo audível algum movimento na rua.
Quando chegou junto dos fugitivos o ambiente era de grande apreensão. Correram,
mantendo-se curvados e afastaram-se da aldeia. Felizmente o casebre ficava
afastado desta. Quando Faustino e o compadre deixaram os homens no casebre já
existiam homens a cavalo nas ruas. Por precaução mantiveram-se fora da estrada,
utilizando os caminhos dos proprietários dos terrenos ou dos pastores. Apenas
quando estavam bastante afastados regressaram
à estrada.
à estrada.
Já
era uma da manhã. Se fizessem o caminho a andar não chegariam à hora prevista.
«Está na altura de provar que ainda conseguimos
fazer a maratona.» Disse o compadre.
Faustino
assentiu e, sem necessidade de mais palavras, desataram a correr, num ritmo
moderado. Quando estavam próximos da raia saíram do caminho e foram a corta
mato. Ficaram algum tempo escondidos a perscrutar a outra margem do rio. Estava
tudo calmo. Atravessaram o rio e guardaram a jangada na gruta, depois de
desmontada. Chegaram a Almofala, exaustos, quando eram cinco e dez da manhã. Foi
por um triz. Pouco depois de terem chegado as ruas encheram-se de homens e não
tardou nada bateram-lhes à porta. Acordaram sobressaltados pois tinham acabado
de adormecer. O ar estremunhado com que abriu a porta era impossível de fingir.
A verdade era que o esforço feito durante a noite ajudava a compor o quadro. A
guarda revistou a casa, mas foi uma busca infrutífera.
«Vejam os cavalos. Eles devem ter chegado há
pouco tempo e os cavalos devem estar suados e ofegantes.» Ordenou o homem do
sobretudo.
«Estes cavalos estão em repouso há muitas
horas. Não podem ter sido utilizados esta noite.»
«Verifiquem a roupa e as botas!»
Nada.
As botas e as roupas apenas tinham vestígios de pelos dos cavalos. Antes de
dormir tinham procedido à troca: quer as botas, quer as roupas, que tinham
utilizado, foram colocadas num esconderijo, dentro da parede de perpianho.
Tinham pensado em tudo.
Tinham
decorrido dois meses e a situação tinha voltado à normalidade. No ar tinham
ficado as ameaças vãs da GNR, com promessas de descobrir quem tinha ajudado os
fugitivos a passar a fronteira e de lhes aplicar um castigo exemplar.
Entretanto, já toda a gente tinha esquecido os factos e a rede de passadores e
contrabandistas tinha voltado a ficar ativa. Faustino continuou com a sua vida
normal, mas quando recebeu o recado do padrinho, uma sombra toldou-lhe o
espírito. Não queria voltar a viver aquilo porque tinha passado.
«Não te agradeci devidamente aquilo que
fizeste.»
Faustino
meneou a cabeça. Apesar de detestar ter de voltar a repetir o processo,
fá-lo-ia se o padrinho lho pedisse. Tragaram mais uns goles em silêncio. Era
visível que o padrinho tinha algo para lhe dizer e o seu coração ficou
apertado. Mentalmente dirigiu uma prece a Deus, pedindo que não tivesse de
atravessar a raia outra vez. A expressão do padrinho era simultaneamente de
tristeza e preocupação.
«Foi tudo em vão!» Explodiu finalmente.
Uma
lágrima teimosa aflorou-lhe o canto do olho. Faustino abriu a boca para falar
mas o seu espanto era tal que não saiu nenhum som.
«O filho do meu amigo foi deixado na cidade
de Bordéus e apanhou o comboio para Paris, onde o esperava uma surpresa. Os
seus próprios camaradas tinham-no denunciado.»
«E então?»
«Oito dias depois estava em Portugal e morreu
às mãos dos seus carrascos. Não aguentou a tortura, mas não disse uma palavra.
O valente preferiu morrer a denunciar-te a ti e aos restantes camaradas.»
«Que grande homem!» Exclamou Faustino.
«Sem dúvida. É pena ter partido tão novo e de
forma tão ignóbil!»
Faustino
regressou a casa cabisbaixo. Estava contente por estar livre, mas o sacrifício
do “doutor” pesava-lhes nos ombros, como se carregasse o mundo às costas.
Definitivamente a vida era injusta!
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