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A NOTÍCIA


A NOTÍCIA

Tinha que atender aquele telefonema. «Era muito importante!» Dissera a secretária. O suficiente para interromper a reunião. Não conseguia respirar! A lividez de morte no rosto. A dor que o tolhia. Sentou-se. O desgosto era tão profundo que nem uma lágrima conseguiu verter. Doía-lhe a alma. Sentiu-se claustrofóbico. Com gestos desesperados abriu a portada que dava acesso ao varandim. Com um olhar vítreo fixou a cidade. Nunca tinha percebido que os edifícios eram tão grandes e tão feios. Tudo era feio. Os edifícios, enormes, agigantavam-se sobre ele como se o quisessem esmagar. Ele era apenas um ponto minúsculo. Sentiu-se insignificante. Debruçou-se sobre o varandim, sorvendo uma golfada de ar. A mão amiga sobre o ombro, precavendo o pior. Não. Não ia saltar. Virou-se. Quis agradecer, mas a emoção finalmente tomou conta dele. Chorou. Chorou durante muito tempo, ignorando tudo à sua volta. Estava exausto. Veio o remorso: deveria ter ficado no hospital com ela, embora isso não resolvesse nada. Ela tinha sido sedada e não voltara a acordar. Passaram-lhe pela frente várias imagens. Era como se assistisse ao filme da sua vida. A vida tinha sido no paraíso e agora tinha descido às profundezas dos infernos. Não importava se tinha sido assim. Era assim que ele via a vida com ela. Ela. Sempre ela. Ela que agora não estava ali, mas que estivera sempre a seu lado. Pensou nos filhos, ainda de tenra idade. «Tens de ser forte. Os teus filhos precisam de ti.» Dizia o amigo. Os filhos. Uma lufada de alegria encheu-lhe o coração, logo abafada pelo negrume que lhe tingia a alma. Amparado, qual guerreiro derrotado, foi levado para casa. Tomou um duche longo, deixando que as lágrimas se misturassem com a água que lhe acariciava o corpo. Tinha que tirar aquele filme da cabeça! Estava esgotado e sedento, mas apenas a sede do corpo foi saciada. A alma, essa, enchia-se de gretas. Sentou-se no sofá e fechou os olhos por alguns instantes. Estava pronto. Os filhos estavam a chegar e ele tinha de lhes dar a notícia.

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