ONDE
PARA O CARNAVAL
A
notícia tinha caído como uma bomba e tinha-se espalhado como um rastilho: o
carnaval tinha desaparecido. Primeiro apareceram os rumores sobre os desfiles
de carnaval. Por qualquer razão, que ninguém parecia conhecer, não haveria
desfile no Rio, nem em Salvador, nem em Olinda, nem... Aprofundado o assunto,
identificou-se a dimensão da desgraça: não haveria carnaval! Porquê?
Interrogavam-se as pessoas. Ninguém parecia ter resposta para a pergunta. O
carnaval não tinha apenas desaparecido das ruas, o próprio calendário tinha
apagado o seu registo. A própria
história tinha esquecido as Bacanais, as Saturnais, as Dionisíacas
ou os Rituais da Fertilidade. Nada, do carnaval nem vestígios! Os
primeiros arautos anunciaram que a Igreja tinha vencido. «Finalmente acabaram
com o carnaval!» Ouviu-se em clamor. Rapidamente apareceram outros culpados,
que desapareceram com a mesma rapidez. O
desconhecimento gerava ansiedade e esta gerou algo muito pior.
Uma
sensação de infelicidade abateu-se sobre a humanidade. Uns países sentiram “a
coisa” de forma mais intensa que outros, como era o caso dos brasileiros.
Tirar-lhes a alegria dos festejos do carnaval era o mesmo que tirar-lhes a
vida. Os governadores de todos os estados reuniram-se e, juntamente com o
presidente, decidiram criar várias comissões para resolver o problema. A
primeira investigaria as causas do desaparecimento, a segunda, partindo das
conclusões da primeira, anularia essas causas, a terceira encontraria os
culpados, a quarta determinaria o castigo dos culpados e assim sucessivamente.
Os políticos multiplicavam-se em declarações, dizendo ter feito tudo o que
podiam e, qual Pilatos, lavaram daí a suas mãos, bem sujas, deste e de outros
pecados.
Os
intelectuais, pensadores e comentadores, foram profícuos em opiniões,
identificando causas económicas, políticas ou sociais, para o desaparecimento
do carnaval. Foram várias as teorias formuladas. Infelizmente, nenhuma delas
demonstrou ser viável ou credível. Com o passar do tempo, também eles foram
afetados pelo imobilismo que se instalou no país.
Entretanto,
na casa do Chiquinho do Batuque o grupo de pessoas à volta da mesa ia
engrossando. O chope geladinho não tinha tempo de aquecer nos copos e, ao mesmo
tempo que matava a sede, libertava a mente. Eram compositores, chefes de banda,
presidentes de escolas de samba, tudo pessoas ligadas aos festejos do carnaval.
Na casa do Chiquinho do Batuque reinava a alegria e esse estado afetava todos quantos
ali entravam.
«O
desespero começa a tomar conta dos espíritos e até o país está sem rumo.» Disse
um dos homens das escolas de samba.
«Com o
presidente da república que temos, o país já estava sem rumo antes.» Disse um
compositor.
«Vamos
deixar a política de fora.» Disse Chiquinho do Batuque.
Riram-se,
em uníssono. Ali tudo era possível. Iriam iniciar uma viagem cujo destino
desconheciam. Seria um regresso à velha casa ou a fundação de uma nova?
Indecisos entre uma Odisseia e uma Eneida, partiram. O ambiente era alegre e as
pessoas tinham uma energia e uma vontade que contrastava com o que se passava
lá fora. Era esse o espírito necessário para resolver o enigma do
desaparecimento do carnaval. A discussão foi acesa e os argumentos diversos.
Não era a falta de inspiração dos compositores, nem a ausência de habilidade na
execução das bandas ou a deficiente organização das escolas, isso era o que
abrilhantava a festa. O problema era a vontade.
«Estamos
a falar da vontade de quê?» Perguntou uma voz.
«Eu diria
que estamos a falar da vontade de “quem” e não de “quê”.» Respondeu o Chiquinho
do Batuque.
O país
definhava. Era como se uma pandemia tivesse tirado a alegria dos corações e o
sorriso dos rostos. As pessoas caminhavam pela rua como autómatos, ignorando-se
uns aos outros. Cada um parecia uma ilha isolada e prestes a ser submergida. O
desaparecimento do carnaval era o tsunami que a iria engolir e o epicentro, a sua
data de calendário. Apesar disso, existia no fundo dos olhares algo quase
invisível, mas, todavia presente. Uma réstia de esperança, um desejo
inconfessado, uma ténue convicção de que, de um momento para o outro, algo
podia libertá-los da tristeza que os subjugava. Ao menor som, ainda que
distante, levantavam a cabeça esperando ouvir os batuques ou a voz rouca do
Matinho da Vila. Era o carnaval, sufocado dentro de cada um deles, querendo
libertar-se.
A casa
do Chiquinho do Batuque rebentava pelas costuras. De todo o país chegavam
homens da cultura e das artes, atraídos por algo que não sabiam explicar. Era
como se a estrela dos Reis Magos tivesse voltado a brilhar, para lhes indicar o
caminho para a casa do Chiquinho, grande na condição de artista, mas humilde na
relação com o mundo. Os egos tinham ficado fora de portas e a condição de
igualdade, que os irmanava, foi crescendo. Na véspera do carnaval já não cabia
mais ninguém dentro de casa. Convictos de que essa era a postura correta para
resolver o problema deram as mãos e, conscientes de que não tinham conseguido
resolvê-lo, desejaram ardentemente o regresso do carnaval. Permaneceram assim
por tempo indeterminado. Alheios a tudo o que os rodeava, mas focados no desejo
que os tornava uno.
Ao
sábado de carnaval sucederam-se os outros dias e o país tornou-se
irreconhecível. As ruas estavam despidas, sem enfeites, nem figurantes. O ar
era incolor, sem a música, os sorrisos e as gargalhadas dos foliões. O chão
negro do asfalto ou da calçada, reclamava a ausência dos confetes e serpentinas,
que os deviam colorir e chorava a ausência do samba, dançado, freneticamente,
por milhares de pés, cada um com o seu ritmo e do seu jeito. Era tanta a
saudade que se esvaneciam as lembranças dos ritmos de outros tempos. Os bairros
choravam lágrimas de saudade, reclamando a ausência dos blocos, com as bandas
de bairro, que, numa competição saudável, atraiam milhões de foliões. No
sambódromo do Rio, ouviam-se ecos estranhos, como se os fantasmas de outros
carnavais voassem por ali, reclamando da ausência dos desfiles. As
arquibancadas vazias, mostravam uma fealdade nunca antes percebida. A estrutura
vibrante de outrora, tinha dado lugar, simplesmente, a uma natureza morta. Uma
ironia do destino! A tristeza tomou conta até das paredes das casas e cerrou-lhes
as portas. Os que conseguiram resistir à clausura espalharam-se pela cidade,
como sonâmbulos, sentados nas praias, no calçadão ou nos jardins. A segunda
feira de carnaval chegou ao fim, sem que este desse sinal de vida, e a noite
trouxe a escuridão. Uma escuridão que penetrou nos corações, como nenhuma outra
noite o havia feito. Afinal era a noite de carnaval!
Na casa
do Chiquinho do Batuque o silêncio era sepulcral. As centenas de pessoas que
preenchiam a casa e o quintal murado, continuavam de mãos dadas. Tinham-se
tornado um só, unidos fisicamente pelas mãos e mentalmente pelo mesmo desejo
ardente. Quando o dia de terça feira nasceu, algo mudou. Era como se os astros
se tivessem realinhado, ao mesmo tempo que a energia que aquele grupo emanava
se expandia. Lentamente, essa energia foi invadindo as casas de toda a cidade,
espalhando-se pelo estado e contagiando o país e o mundo. As pessoas pareceram
acordar de um sonho mau e sem qualquer razão ou explicação o ar encheu-se de
música e as ruas de pessoas, dançando e cantando. O carnaval tinha voltado e as
pessoas agarravam-se a ele com todas as energias. Agora sabiam o que era viver
sem ele, mas sabiam que aquela festa era muito mais que um simples festejo de
carnaval. A energia que tinha emanado do universo, era uma grande lição: cada
um de nós pode matar o carnaval que há em si e, quando isso acontece, em
simultâneo, por alinhamento perverso dos astros, o carnaval desaparece. Nessa
inusitada circunstância será necessário, mais uma vez, um Chiquinho do Batuque.
Talvez possamos ser todos Chiquinho, quer usemos o batuque ou outro instrumento
qualquer.
Na
quarta, já de madrugada, o povo recolheu-se. Teria sido um ano sem carnaval ou
apenas um ano com o carnaval diferente?
No se si ha perdido al traducirlo, pero me gustó. Te sigo.
ResponderEliminarMuchas gracias. Tener a alguien de otro idioma que me siga es un incentivo aún mayor para continuar.
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