A JORNALISTA | PARTE I | CAPÍTULO 4 - A governanta
A
governanta era uma testemunha crucial para o processo pois era a única
testemunha ocular do crime. Para além disso conhecia tanto a criadagem como os
donos do palacete. Os inspetores decidiram que seria a primeira testemunha a
ser inquirida. Foi um processo longo, cansativo e de resultados duvidosos.
Desde
o início que ela se apresentou muito nervosa mas muito solícita. Falava pelos
cotovelos, tendo de ser interrompida sistematicamente. Sobretudo porque a
conversa acabava por derivar para assuntos sem qualquer interesse para o processo.
Aos quarenta e dois anos de idade ela era uma mulher muito interessante. Tinha
um metro e setenta e cinco de altura, uma tez clara, olhos verdes e cabelos
castanhos. A sua elegância faria inveja a uma modelo, não apenas por ter um
corpo perfeito, mas por estar muito bem cuidado. Não era uma mulher bonita e o
sorriso parecia um esgar de dor. Era cordial no trato, sem ser simpática. O registo
que melhor se adequava à sua personalidade era o formal. Provavelmente era o
resultado de vinte anos de profissão. Sentada do outro lado da mesa ela não
conseguia manter-se quieta numa posição. Para além disso contorcia os dedos o
tempo todo e esfregava o nariz quando iniciava a resposta à maior parte das
perguntas. Depois de cumpridas as formalidade de identificação e clarificação
dos direitos e obrigações o inspetor chefe iniciou o interrogatório.
«Há quanto tempo trabalha para os atuais
patrões?»
«Desde 2009. Fui eu que tratei da decoração
do palacete. Haviam de ver aquilo quando eles comparam o espaço. Estava tudo
abandonado, até metia dó. Lembro-me...»
João
Ribeiro interrompeu-a sem cerimónias.
«Sim, sim. Você toma conta apenas da parte
habitacional ou também tem a responsabilidade pelo espaço de escritórios?»
«Credo! Nem eu queria! O responsável pelo
espaço dos escritórios é o financeiro da empresa. Um senhor respeitável e muito
simpático. Um homem às direitas, é pena é ser gay. Um desperdício num homem
lindo como aquele. Eu... »
Mais
uma vez ela foi interrompida.
Era
necessária uma grande dose de paciência para conseguir manter a governanta
focada no que era importante. Ao fim da manhã tinham conseguido obter algumas
informações importantes. A sociedade, cuja firma era LTCBK Capital S.A., era detida por
cinco famílias, mas quatro delas não participavam na gestão. O CEO era o sócio
brasileiro, que chefiava uma equipa de três administradores, com
responsabilidades nas áreas: financeira, imobiliária e turística.
A
residência estava separada dos escritórios por uma grande porta metálica com um mecanismo de abertura complexo, comandado por uma chave. O acesso a essa chave era restrito à administração, aos sócios, aos
seguranças e à governanta.
«Quer dizer que se pode aceder à residência
através dos escritórios?» Perguntou
Mónica Fonseca.
«Sim, mas apenas quem tem chave. Não existe
um acesso com cartão como nos escritórios. Sabe, ter uma chave como eu tenho é
uma grande responsabilidade. Trago-a sempre à cintura, nunca a deixo em lado
nenhum. Pois, não...»
«Quando sai para a rua leva a chave
consigo?»
«Não. Os patrões mandaram instalar um cofre
e eu deixo aí todas as chaves ou documentos guardados. Uma vez logo no
início...»
«Você nunca utilizou a entrada do
escritório para aceder à residência?»
A
governanta teve um momento de hesitação
breve mas perceptível.
«Eu? Não! Não, porque havia de entrar pelo
escritório? O meu trabalho é na residência. Eu nunca passei pelo escritório...
Quer dizer eu já fui ao escritório. Fui sim senhor. Fui quando me chamaram lá.
Sim porque eu sou muito cumpridora. Está a ver?»
Desta
feita a governanta interrompeu-se a si própria, ficando à espera de um
assentimento de compreensão.
Mónica
Fonseca ficou a olhar para ela tentando perscrutar o que lhe ia na alma. Abriu
a boca para fazer uma pergunta e depois calou-se e foi o João Ribeiro que
continuou. As perguntas incidiam agora sobre a tarde e a noite do crime. A governanta
tinha saído por volta das sete da tarde, embora não estivesse autorizada a
sair. Mas tinha ido visitar uma amiga ao hospital da Luz e como não era suposto
estar ninguém em casa ela tinha saído. Por precaução tinha enviado um email ao
senhor Lins a informar sobre a sua ausência.
«Tem a certeza da hora em que saiu?»
Nova
hesitação.
«Sim. Não. Quer dizer eu acho que sim.»
«Porque é que as câmaras não registaram a
sua saída? Não saiu pela porta da residência?»
«Bem eu... Existe uma porta de homem cuja
chave só eu tenho e a câmara está avariada.»
«Então quer dizer que não existe prova
nenhuma, nem da hora a que saiu, nem da hora a que regressou ao palacete.»
«Podem ver a hora a que enviei o email ao
senhor Lins.» Disse a governanta de forma apressada.
«O email foi enviado do telemóvel ou do
computador?»
«Bom eu acho que foi do computador.»
«Tem a certeza?»
«Bom talvez tenha sido do telemóvel...»
«Isso quer dizer que podia estar já fora do
palacete!»
«Pois...»
«Como estava a sua amiga?»
«Quem? Há sim, a minha amiga. Pois...
estava bem. Quer dizer, não estava pior... Sabe como é quando se está doente...»
A
governanta estava tão atrapalhada e incomodada com a menção do estado da amiga
que eles abandonaram o assunto.
Fizeram uma pausa para tomar um café e o
interrogatório continuou em seguida.
«Conte-nos o que viu quando chegou ao
palacete.»
«Quando cheguei reparei que o carro do
Chefe Walker estava estacionado à porta. Achei estranho porque não era suposto
estar ninguém em casa. Olhei para o relógio e vi que eram vinte e duas. Provavelmente
as meninas tinham decidido voltar ao palacete.»
Ela
fez uma pausa e João Ribeiro incentivou-a
«E depois?»
«Mal entrei fui direta à cozinha pois
imaginei que ele estivesse a cozinhar para as meninas. Isso já tinha acontecido
antes. Ele é um grande cozinheiro. Só nunca imaginei que ele pudesse matar a
menina Karen. Ela era um pouco bisbilhoteira, mas os jornalistas são mesmo
assim.»
«Jornalistas?»
«Sim a menina Karen era jornalista e estava
a fazer um trabalho para a CNN. Ela queria sempre saber tudo e adorava
coscuvilhice! A ultima vez…»
«O que viu quando chegou à cozinha?»
«Na cozinha não vi nada. Por isso fui à
procura. Ai que susto meu Deus! Quando entrei na sala o Chefe Walker estava ajoelhado junto ao corpo da menina Karen, com
o braço levantado e empunhava uma faca, ensanguentada, preparando-se para a
espetar na pobre Karen. Ela ainda estava viva porque vi as pernas a estremecer.
Ele tinha acabado de a matar. Santo Deus, que loucura!»
A
governanta interrompeu-se e num gesto dramático tapou o rosto com as mãos
«Tem a certeza que ele estava a esfaquear a
vítima e não a tentar salvá-la?»
«Salvá-la como? Espetando-lhe uma faca? Eu
sei bem aquilo que vi!»
«Era possível alguém entrar na casa sem que
isso fosse gravado pelas câmaras?»
«Não.»
«Isso quer dizer que mais ninguém tem a
chave da porta de homem. Como é possível?»
«Bom a fechadura foi mudada recentemente e
as outras três cópias da chave estão no cofre. O senhor Lins ainda não disse a
quem deviam ser entregues.»
«Quer dizer que você era a única pessoa que
podia entrar a qualquer hora no palacete sem ser vista.»
«Bom… Sim, mas… Eu não matei a menina
Karen!» Protestou a governanta, apertando as mãos de tal forma que os nós dos
dedos ficaram brancos.
O
inspetor chefe João Ribeiro encostou-se para trás com um sorriso enigmático nos
lábios. A governanta olhava alternadamente para ele e para Mónica Fonseca, que
mantinha o rosto impassível.
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