Avançar para o conteúdo principal

A JORNALISTA | PARTE I | CAPÍTULO 6




A JORNALISTA | PARTE I | CAPÍTULO 6– O Interrogatório

Ao fim de oito dias Roger já estava familiarizado com a rotina. Passava demasiado tempo na cela, consigo próprio e isso obrigava-o a pensar demasiado na sua situação. Quanto mais pensava no assunto mais negro via o futuro. Nada havia mudado mas a solidão é traiçoeira e nessas alturas alia-se ao pensamento para nos pregar partidas. Os cenários tinham todos um fim trágico e eram negros como o negrume de uma noite de inverno, sem luar.
Quando o guarda o chamou para o interrogatório ele limitou-se a segui-lo. Caminhava em passos curtos mas ritmados. Sem pressas nem hesitações. Ele estava convencido da sua inocência mas, incapaz de a provar, depositava a esperança nos seus aliados: a advogada e o detetive particular. O fundamental era manter essa esperança viva. Como da última vez a sala estava vazia, entregue ao seu vigilante: o guardador de segredos. «Será que existem segredos?» Pensou.
Quando a porta se abriu ele sobressaltou-se. Virou-se no assento e olhou para a porta. Levantou-se para cumprimentar a sua advogada e saudou os inspetores. Depois ficaram todos de pé e em silêncio, por breves instantes. Sem necessidade de mais palavras sentaram-se. O silêncio pesava toneladas. A equipa de investigadores não tinha pressa de começar. Mónica gostava de criar esse tipo de suspense. Era como se não soubesse bem por onde começar.
Começaram pelas formalidades legais e depois de estarem todos de acordo sobre o procedimento, Mónica Fonseca recostou-se na cadeira e olhou de forma intencional para João Ribeiro.
«Qual era o tipo de relação que mantinha com Karen McDonald?» Perguntou o inspetor chefe.
«Éramos amigos.»
«Apenas amigos?» Perguntou ele em tom irónico.
«Sim.»
Silêncio. Os inspetores estudavam o rosto de Roger, mas este estava completamente tranquilo. João Ribeiro parecia prestes a perder as estribeiras.
«Com que frequência falava com a sua amiga
«Falávamos com bastante frequência.»
«Então deviam ter uma amizade muito “especial”.» Comentou João Ribeiro.
Roger sabia bem onde ele queria chegar mas não podia abrir o jogo. Ele preferia ser condenado a trair a sua amada.
«Porque não admite que Karen era sua amada e que a matou por ciúmes?»
«Vocês estão doidos!» Exclamou Roger, quase a perder as estribeiras.
João Ribeiro encostou-se à mesa e com ar triunfante apresentou os seus argumentos. Eles tinham tido acesso às conversas e mensagens que Roger trocava com Karen. Era claro que eles tinham uma relação muito íntima. Era também claro que tinha sido ela a convidá-lo para ele ir ao palacete na noite fatídica. Os inspetores tinham também descoberto que Karen tinha uma outra relação. Roger ouviu com displicência essa informação. Ele sabia perfeitamente que karen tinha uma relação que por motivos pessoais mantinha reservada. Mas também aqui os factos jogavam contra ele. Tinha que desmontar os argumentos deles!
«Portanto é óbvio que você matou a Karen por ciúmes.»
Roger não podia deixar que as coisas ficassem assim. Ele não tinha cometido aquele crime.
«Já que descobriram isso tudo, deviam também saber que a minha relação não era com a Karen, mas sim com a Anne.»
Esta informação foi um balde de gelo para os inspetores. João Ribeiro e Mónica Fonseca olharam um para o outro estupefactos. Roger explicou que o pai dela queria que ela casasse com um homem tão rico quanto ele e portanto proibia-a de andar com homens que não tivessem esse estatuto. Pai e filha tinham uma relação muito difícil. Karen servia de intermediária entre Roger e Anne e facilitava os encontros, levando inclusive o pai de Anne a pensar que Roger e Karen eram namorados. Mónica sorriu. A teoria do João tinha caído por terra. Ela tinha um palpite mas guardou-o só para si.
Pelo pensamento de Roger passou um flash de cenas e momentos na companhia de Anne. A sucessão de momentos juntos terminava, surpreendentemente, naquele beijo fortuito e inconsequente entre ele e  Karen. Fora o único beijo entre eles, mas ele tinha gostado.
«Explique-nos lá como funcionava a sua relação com Anne.» Pediu Mónica Fonseca com uma voz suave.
Anne e ele tinham-se apaixonado quando ele participou no primeiro evento da empresa do pai dela em 2013. Desde essa altura que se encontravam às escondidas para que o pai dela não descobrisse. Karen servia quase sempre de intermediária mas ele fora muitas vezes ter com ela a locais secretos, mesmo sem a presença da Karen. Ele fazia tudo para estar umas horas com ela e seria capaz de ficar ao seu lado para toda a vida. Ela dizia-lhe vezes sem conta, que desejava o mesmo, mas estava sempre com pressa, não podendo ausentar-se muito tempo para não levantar suspeitas. Roger falou durante mais algum tempo, mas a verdade é que, aparentemente, sabia muito pouca coisa. João Ribeiro achava que ele estava a esconder a verdade, sendo o verdadeiro assassino. Por seu lado Mónica Fonseca começava a achar que Roger ou, era o assassino e por qualquer razão não estava consciente de tal facto, ou estava inocente. «O raio das provas!»  Pensou ela. Era a sua vez de pressionar o suspeito.
«Qual era a sua relação com a governanta?» Perguntou Mónica Fonseca.
«Era puramente profissional, mas era uma boa relação.»
«Existe alguma razão para ela se querer vingar de si?»
«Não.»
«Então assim sendo, como explica que ela diga que o viu debruçado sobre o corpo de Karen, apunhalando-a?»
Roger ficou perplexo. Como podia a governanta dizer tal coisa? Era exatamente o oposto. Colocou-se na pele dela e fez-se luz.
«Já percebi. Eu estava do outro lado do sofá e do local onde ela estava apenas viu o movimento ascendente da minha mão empunhado a faca e assumiu que eu estava a apunhalar a Karen.» Disse ele, batendo com a palma da mão a testa.
Fazia sentido, tal como muitas outras coisas que ali foram ditas mas era tudo circunstancial. Karen tinha sido morta à facada, com as facas dele e as únicas impressões digitais nas facas eram as dele.
«Mais uma explicação muito conveniente.» Disse João Ribeiro.
«Onde está Anne?» Perguntou o inspetor chefe.
«Isso gostava eu de saber. O jantar que eu ia fazer era para ela e para a Karen. Elas tinham viagem marcada no dia seguinte de madrugada. Anne deve ter viajado para a Indonésia.»
«Na sua versão dos factos, como estava Karen quando a virou?»
«Estava desmaiada e a respirar com alguma dificuldade. Parecia estar em grande aflição.»
«Ela disse alguma coisa?»
«Não.»
«Porque é que a governanta não estava em casa quando chegou?»
«Não sei. Ela até podia estar em casa. E se a Karen estava desmaiada alguém me abriu a porta. Pode perfeitamente ter sido a governanta.»
«Mas também pode ter sido a Anne. Você não ia cozinhar para as duas?»
«Não sei quem abriu a porta. Eu assumi que apenas elas estariam no palacete pois o jantar era apenas para elas, mas podiam estar lá outras pessoas.»
«Como explica que você também tenha desmaiado?»
«Quando me debrucei sobre Karen senti um cheiro estranho. Senti o cheiro do sangue dela misturado com outra substância, parecia clorofórmio.»
«Isso é muito conveniente. No entanto, não foram encontrados vestígios dessa substância no local!» Disse João Ribeiro, com ar triunfante, embora ainda não conhecessem os resultados das análises.
«A razão não sei, mas a verdade é que desmaiei e quando acordei a Karen dava os últimos suspiros.»
«Isso também é muito conveniente. Mas a verdade é que ninguém o viu desmaiar a as únicas pessoas que estavam no palacete, quando a governanta chegou, eram você e a Karen e as suas facas claro!» Disse João Ribeiro, em tom jocoso.
«Eu não matei a Karen!» Protestou Roger, em desespero.
Silencio. João Ribeiro não disse nada e recostou-se para trás com um sorriso nos lábios.
Mónica ficou pensativa. Existia uma hipótese que ela queria testar, mas era melhor não adiantar nada sobre o assunto.
«Você no seu conjunto de facas tinha algum bisturi?»  Perguntou Mónica Fonseca.
«Não.»
«Sabe se existia algum bisturi no palacete ou se alguém possuía ou tinha razão para possuir um.»
«Não. Bom… a Anne tirou o curso de medicina e deveria saber usá-lo. Mas que eu saiba não tinha nenhum, embora não deva ser difícil de obter.»
«Isso é curioso, sobretudo porque, de acordo com as informações que recebemos, Anne foi jantar a casa de uns amigos e terá partido daí para o aeroporto.» Disse João Ribeiro.
«Qual a relevância do bisturi nesta história?» Perguntou Roger.
«Se não sabe é porque não precisa de saber.» Respondeu Mónica Fonseca.
Roger olhou para a advogada e esta assentiu com a cabeça. Seria assim até ser aberta a instrução do processo ou ser produzida uma acusação.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O SEMÁFORO

O SEMÁFORO Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina. No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL As palavras não me ocorrem perante a imensidão do sentimento que me invade o peito. Digo-te aquilo que adivinhas pois os meus olhos e os meus gestos não o conseguem esconder. Amo-te! Amo-te desde o primeiro dia em que entrei na empresa e tu me abriste a porta. Os nossos olhares cruzaram-se e, por instantes, olhamo-nos sem pestanejar. Senti que tinha encontrado a minha alma gémea. O meu coração acelerou quando me estendeste a mão e te apresentas-te. Apenas uma semana depois soube que eras casada. Chorei a noite toda. Não conseguia aceitar que não fosses livre para poder aceitar o meu amor e retribuí-lo como eu tanto desejava. Desde esse dia vivo em conflito: amo-te e por isso quero estar a teu lado, mas não suporto estar a teu lado, sem poder manifestar-te o meu amor. Quero fugir dessa empresa, não quero mais ver-te se não te posso ter, mas não consigo suportar a ideia de não te ver todos os dias. Tu és o sol que ilumina o meu dia, mas és

O BILHETE

O BILHETE Com os cadernos debaixo do braço ele subiu a escadaria do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real. Vivia numa aldeia próxima e tinha vindo a pé. Tinha vários irmãos e como estavam todos a estudar, tinham de poupar em tudo o que era humanamente possível. Já estava com saudades das aulas! Era irónico que tal fosse possível pois os jovens preferem as férias. Não era o seu caso. Tinha vindo de Angola e, por falta de documentos, tinha ficado um ano sem estudar, trabalhando na quinta, ao lado do pai, enquanto os irmãos iam para as aulas. Estudar era, portanto, a parte fácil. Procurou a sala onde a sua turma tinha aulas: Ala este, piso zero, sala seis. Filipe era um aluno acima da média, mas a sua atitude era de grande humildade: esperava sempre encontrar alguém melhor que ele. Dado que tinha ficado um ano afastado da escola estava com alguma expectativa em relação à sua adaptação, mas confiante nas suas capacidades. Não tardou em destacar-se e no fim do primeiro tri