A QUARENTENA
O vírus estendeu os seus tentáculos a
uma velocidade nunca vista. O CARVLOC-32 propagava-se a uma velocidade dez
vezes superior ao CORVID-19, que há doze anos tinha assolado o planeta. O mundo
ensimesmou-se e o Brasil não foi exceção. A lei marcial foi imposta com a
aprovação unânime do Congresso e do Senado e os governadores de estado
alinharam pelo diapasão do presidente. Em nome da saúde a democracia foi
colocada na gaveta. Rapidamente e de forma gradual, os cidadãos perderam
direitos e os estados autonomia, sem que houvesse qualquer oposição. O
presidente, Rios Ferraço, era um herói e o homem todo-poderoso do Brasil. No
entanto, quando, para contrariar a desinformação que vinha do exterior, ele
cortou o acesso a qualquer informação externa a revolta bateu à porta, tendo
origem no próprio governo. A remodelação foi feita a uma velocidade relâmpago:
Agora ele era incontestado, pelo menos por alguém que tivesse verdadeiramente
poder. Todos os dias ele falava ao país. Um país de gente que ele catalogava
como feliz e respeitadora, quer fosse na fila do supermercado, do banco, do hospital
ou do serviço público. Os militares, a polícia, sobretudo a polícia política, os
empresários, os quadros médios e superiores e o pessoal da saúde, eram os
heróis do país. Nos seus discursos o presidente não se cansava de os elogiar e
de dizer o quão pouco era tudo o que lhes era dado, quando comparado com o sacrifício
que lhes era pedido. O povo, que era a maioria, constituía a força de trabalho,
usada de forma descartável, por quem detinha o poder. Vivia confinado e subjugado
em prol do respeito pelas regras, definidas pelo Ministério da Saúde. Apesar
das grandes dificuldades em que vivia, que eram atribuídas à crise gerada pela
pandemia, não se manifestavam para não perder o emprego que lhes proporcionava
o parco salário, que lhes permitia comer e pouco mais. A maioria acreditava que
tinha que ser assim, para evitar a propagação da doença. A saúde era gratuita e
a educação também, até determinado nível. Os cursos técnicos e superiores eram
só para os que passavam o escrutínio apertado dos sensores do estado, uma
classe nova, mas em crescimento e ascensão. Estranhamente, cada um destes dois
grupos não pensava de forma unânime, mas, apesar disso, tinham-se criado duas
grandes correntes de pensamento: os que viviam num país perfeito e os que
sentiam no corpo o peso de uma vida dura e na alma a revolta e o
descontentamento. As duas correntes de pensamento tinham adeptos entre os dois
grupos, embora a maioria do primeiro vivesse a utopia e a do segundo a
distopia.
A comunicação era altamente controlada
e veiculava, sistematicamente, a imagem de um país feliz. O formato de programa
mais em voga eram as reportagens regionais e os programas de debate político.
As primeiras eram transmitidas, individualmente, para cada estado e mostravam o
quão bem que se vivia nos outros. Os segundos eram debates entre pessoas de
várias profissões, com formação distinta e de diferente poder económico. A tese
oficial, fosse ela qual fosse, saía quase sempre vencedora, mas, ocasionalmente,
em relação a um determinado assunto específico, a tese do governo saía
derrotada. Nesses casos, o presidente aparecia, publicamente, a reconhecer o
contributo positivo que tinha resultado do debate e a anunciar uma medida para
colmatar a falha identificada. Isso fazia com que a audiência fosse astronómica
e as pessoas enviassem, de forma sistemática, sugestões e criticas para a
televisão, que era outra das vertentes do programa. Essas pessoas davam um
contributo valiosíssimo para a gestão de massas. Existiam dezenas de pequenas
medidas que eram aprovadas pelo governo e que resultavam dessas sugestões.
Sempre que isso acontecia o presidente aparecia a deixar claro a importância da
colaboração e realçando que o país tinha um governo aberto e democrático onde,
de forma indireta, todos podiam participar na governação. O que a maioria
desconhecia era que os que veiculavam críticas de teor político ou pessoal ou
apresentavam sugestões de mudança significativa, desapareciam sem deixar rasto.
Na maioria dos casos eram acusados de um crime qualquer, devidamente provado,
num julgamento fantoche.
Existam os que tudo tinham, em termos
de conforto, privilégios e liberdade, talvez por desconhecer este conceito,
pois faziam do pensamento oficial o seu próprio pensar. Esses, embora vivessem
numa bolha, consideravam que viviam no país perfeito. Incluíam-se aqui os
quadros superiores, pertencentes à elite, que auferiam excelentes salários Em termos
de género não se pode dizer que um prevalecesse sobre o outro. O governo privilegiava
aquele que melhor servisse os seus interesses, o que, geralmente, significava
que quem liderasse o casal, ou o negócio, era o eleito. A elite era assim
constituída de homens e mulheres que se misturavam, com alguma promiscuidade
até. Existiam também os que nada tinham e viviam exclusivamente do produto do
seu trabalho, um trabalho considerado menor e por isso mal remunerado.
Adelaide era uma jovem de dezassete
anos, filha de um banqueiro, que vivia numa ilha social. Um acidente de carro
veio interromper a vida perfeita, que estava convencida de viver, embora outros
pudessem qualificá-la de fútil, de forma inimaginável. A intervenção rápida e
corajosa de Jorge Garcia salvou-lhe a vida. Pendurou-se, de forma corajosa, mas
inconsciente, no cabo de alta tensão e desviou-o. O jovem tinha dezanove anos e
era estudante de engenharia, embora fosse nado no seio de uma família pobre.
Desde pequeno que tinha aprendido como se comportar na sociedade, graças a isso
e a uma inteligência superior, tinha chegado à universidade. A jovem
apaixonou-se por Jorge e ele aproveitou a boleia. Sabia que por mais que
gostassem um do outro nunca poderiam ter uma vida em comum, por isso não criou
grandes ilusões. Isso mesmo lhe foi transmitido pelo pai dela, como
agradecimento de lhe ter salvo a vida, no próprio dia em que isso aconteceu.
Durante dois anos e de forma gradual, Jorge
levou Adelaide a ver sítios que ela nem sonhava que existiam. Sítios onde ele
era conhecido por ajudar as pessoas que vivam miseravelmente. Com grande tato Jorge
fazia questão de não dizer mal do governo, mas ia mostrando, de forma
sistemática os erros e falhas da governação, foram imensas as vezes que
Adelaide, num arrojo de desapego e de demonstração de uma retidão
inquestionável, quis confrontar os pais com essa realidade, que eles
desmentiam. Jorge conseguiu sempre demovê-la. Ele desejava ardentemente esse
confronto, mas achava-o inútil. Era um jovem pragmático que regia os seus atos
em função da eficácia dos mesmos. Adelaide deixava-se convencer, mas sentia-se
enganada. O país onde imaginava que tinha vivido, até aí, não existia: Ela
tinha vivido e continuava a viver uma mentira. Aqueles que tudo tinham eram uma
minoria, quando comparada com a maioria que trabalhava, arduamente, para
sustentar essa minoria. Eles viviam num nível de subsistência básica e numa
miséria física e intelectual. O sentimento de revolta foi crescendo dentro de
si até tomar conta dela, de uma forma avassaladora.
Entretanto, a tomada de consciência dos
explorados foi-se dando de forma gradual. Alguns deles trabalhavam nas grandes
mansões e o conhecimento do que aí se passava foi-se propagando. À medida que
os relatos aconteciam o povo foi tomando consciência de que existia outra
realidade. Foi aí que o estado de inevitabilidade em que viviam, deu lugar à
gratificante vontade de mudar, que se tornou a semente da revolta. Entretanto, Adelaide
tinha chegado a um ponto de rutura. Não conseguia suportar a presença dos pais,
nem do núcleo onde estes gravitavam. Com o tempo percebeu que Jorge não era o único
amor da sua vida, mas isso era algo bom: ela tinha-se devotado a uma causa.
Falava horas a fio com o Jorge, sobre denunciar os pais, os amigos destes e o
próprio governo, cabendo-lhe a ele o papel de lhe demonstrar a inutilidade de
tais atos.
«Alguma
coisa tem de ser feita!» Gritou em desespero.
«Qualquer
ação, para funcionar, tem de criar uma rutura profunda, capaz de abalar o
regime, de outra forma será inútil!» Retorquiu Jorge.
Adelaide tinha sentimentos controversos
em relação a Jorge. Ao mesmo tempo que odiava a sua passividade, admirava, ao
ponto de o idolatrar, a sua sensatez e capacidade de ajuizar o resultado de uma
ação. Isso ao invés de a fazer desistir dava-lhe força para atos mais ousados.
Foi numa dessas conversas que definiram uma estratégia para por fim à ditadura.
Era um ato louco e ousado, cujo fim se afigurava trágico.
Jorge estava em casa de um amigo, que
era o líder de uma organização clandestina. O grupo tinha-se reunido esperando
o desenlace dos acontecimentos. O atentado aconteceu ao vivo. O presidente
baixou o pescoço para receber a graduação honoris
causa, entregue por uma jovem aristocrata e não voltou a levantá-lo.
Adelaide desferiu-lhe um golpe fatal na carótida. A sua morte catapultou a
revolta popular e a tomada de poder aconteceu sem mais incidentes. Adelaide foi
considerada uma heroína pelo povo, apesar de ter cometido um crime.
Surpreendentemente uma das alas militares, lideradas por um velho general com
uma integridade inquestionável liderou a defesa de Adelaide e com isso chegou
ao poder. O povo festejou a eleição do novo líder e o governo provisório
começou a preparar a transição para a democracia. O velho general rodeou-se de
amigos de confiança com os quais formou o governo de transição. Eram quase
todos militares ou pessoas ligadas a estes. O dia em que o general anunciou que
as eleições teriam lugar daí a seis meses foi duplamente memorável: Os festejos
populares tiveram uma dimensão inigualável e o general faleceu em casa, tendo a
polémica morte sido atribuída a um problema cardíaco.
A ausência de uma referência provocou
alguma instabilidade e vazio de poder. A liderança acabou por ser assumida por
um oficial menor, mas com grandes ambições. Para agravar a situação o país
entrou numa crise económica, em parte causada pelas benesses que tinham sido
distribuídas a esmo. Os novos líderes pediram sacrifícios para poder recuperar
a economia. Em simultâneo, nacionalizaram algumas das maiores empresas,
desmembrando os grandes grupos económicos que poderiam fazer-lhes frente. Isso
ao invés de ajudar a recuperar a economia ainda piorou a situação. Em seis
meses o país estava na bancarrota. Nessa altura o governo disse que não
existiam condições para realizar eleições e adiou as mesmas por dois anos. Para
resolver o problema, apresentou um plano de recuperação do país, que colocava
todos os brasileiros a viver muito melhor dentro de dois anos. Foram
organizadas grandes manifestações a favor do plano e o povo voltou ao trabalho,
tendo na mira a liberdade e o bem-estar prometidos. À medida que os dois anos
se foram esgotando a liberdade tornou-se uma miragem e o bem-estar um mito.
Adelaide, a heroína da revolução, foi julgada e condenada à prisão perpétua e
os tempos mudaram definitivamente. Os novos privilegiados vivam numa ostentação
superior à do regime anterior e consideravam que o sistema era perfeito. Os
restantes viviam oprimidos e revoltados, maldizendo a hora em que tinham
apoiado a queda do anterior regime, que agora consideravam bem melhor que o
vigente.
Entretanto Jorge tinha terminado os estudos
com a melhor nota do curso e graças a isso tinha conseguido uma posição
relevante na hidroelétrica nacional, até ao dia em que a sua associação a
Adelaide passou de notável a notada.
«A sua
relação com Adelaide pode ser um problema.»
O presidente da empresa estava com um
ar sério, sentado do outro lado da mesa e ladeado pela responsável dos recursos
humanos e pelo comissário político.
«A minha relação com Adelaide nunca
passou de uma amizade, da qual me afastei quando percebi a sua tendência contestatária.»
«Explique isso melhor.» Disse o
comissário político.
«Eu
salvei-lhe a vida, como é do conhecimento público. Ela sentiu-se atraída pelas
minhas origens e eu mostrei-lhas. Quando percebi que ela tinha uma agenda
política afastei-me. Foi depois disso que ela cometeu o assassinato.»
Os três interlocutores fixaram os
olhares nele, tentando adivinhar o que lhe ia na alma. No entanto, isso era
impossível: eram muitos anos de prática em fazer coincidir o comportamento com
o discurso, de tal forma que, nele, isso era natural. A conclusão foi-lhe
favorável: Jorge era o homem ideal para integrar a estrutura. Isso tornou-se
tão óbvio que não tardou muito ele teve a sua primeira promoção. Ao contrário
da maioria dos membros da classe dos privilegiados ele dedicou-se
exclusivamente à profissão e à formação. Tirou um segundo curso, em tecnologias
de informação e tornou-se um especialista em linguagens de programação. Era de
tal forma considerado pelo regime que foi dos poucos autorizado a tirar
especializações no exterior. O regime não tinha cortado a comunicação com
mundo, tendo optado por controlar as pessoas através da repressão. Aos quarenta
anos de idade Jorge era tão conhecido como o presidente Luis Andrade e muito
mais respeitado.
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