POR AMOR
Sentado na cadeira da varanda,
insensível à beleza que a natureza exibia, de forma exuberante, naquele início
de primavera, com a cabeça ente as mãos, ele chorava copiosamente. Tinha
perdido tudo. Não se referia aos seus bens, mas aquilo que realmente importava
na vida: as pessoas que amava! O desgosto tinha tomado conta dele e incapaz de
controlar a dor deixou que ela se esvaísse em lágrimas.
Tudo tinha começado há mais ou menos
cinco anos. O advogado do grupo hoteleiro anunciou a sua saída, devido a um
convite irrecusável. Diogo, o CFO, entendia as razões dele, mas isso não
obviava o problema que tinha entre mãos. A solução apareceu-lhe em cima da
secretária, como por milagre. Estavam a terminar a negociação para adquirir um
hotel insolvente e era necessário decidir os trabalhadores com que aceitavam
ficar: era necessário ficar com pelo menos um, para garantir a qualificação
como aquisição de estabelecimento. Sara, a advogada do hotel que estavam a adquirir,
embora não tivesse a experiência requerida, parecia ter o perfil adequado. Foi
uma decisão de risco, mas o tempo encarregou-se de demonstrar a sua propriedade.
Era uma jovem de trinta e cinco anos,
divorciada, que tinha a seu cargo uma filha de dez. Diogo gostou dela logo no
primeiro contacto. A morena, de um metro e cinquenta e cinco centímetros de
altura, não era nenhum modelo, mas tinha um corpo enxuto e as curvas bem
torneadas. O rosto era interessante, destacando-se um nariz perfeito e uns
olhos negros, com um olhar profundo e inquieto. O sorriso era devastadoramente
bonito e a sua boa disposição e sentido de humor muito cativante. Entre eles
acabou por nascer uma cumplicidade, estritamente profissional. Eram ambos
divertidos e muito competentes. Diogo sabia que fosse o que fosse que lhe
solicitasse era executado, com perfeição e dentro dos prazos. Sara era uma
pessoa confiável. Com o tempo a confiança entre eles aumentou o que lhes
permitia ter brincadeiras e trocar pequenas piadas, que extravasavam um pouco a
relação profissional. Quem os observasse com atenção e se não soubesse que ele
era casado e que ela tinha um companheiro, diria que entre os dois existia uma
chama, alimentada mutuamente. A verdade é que, independentemente da
profundidade daquilo que sentiam um pelo outro, o respeito e a admiração mútua,
levava a que a relação fosse estritamente profissional.
O ano de dois mil e vinte entrou de
mansinho, escondendo o mal com que presentearia a humanidade, logo no primeiro
mês. A pandemia, embora não classificada como tal nessa altura, apareceu na
China, no fim do ano anterior e, rapidamente, se espalhou por todo o mundo.
Portugal não foi uma exceção e a partir do dia dezanove de Março o país fechou
e as pessoas entraram em confinamento. Por força das circunstâncias em que os hotéis
foram colocados, pelo estado de emergência e pelas medidas adotadas pela Direção
Geral da Saúde, Diogo e Sara falavam todos os dias, mais do que uma vez, quer
por telefone, quer por videoconferência. Estavam em casa, mas continuavam a
trabalhar. Era o vírus a impor teletrabalho. Talvez por estarem separados
falavam de muito mais do que de trabalho e isso aumentou ainda mais a proximidade
deles. Diogo deu por si a pensar: «Estou apaixonado por esta mulher!» Quando
articulou esta frase para si mesmo, soube que era tempo de colocar algumas
barreiras para evitar cair na tentação. Nessa altura, começou por se questionar
se gostava da sua mulher. A resposta foi clara: ele não apenas gostava da
mulher como a amava. Isso colocou-lhe um grande dilema. Pela primeira vez na sua
vida gostava de duas mulheres. Uma dormia a seu lado outra no seu pensamento.
Frequentemente dizia para si próprio que era fiel à mulher que amava, mas a verdade
é que, em pensamento, a traía muitas vezes. Sara preenchia os seus sonhos, a dormir
ou acordado. No entanto, amava a esposa e não queria perdê-la por nada deste
mundo. Era ela que estava a seu lado, dando-lhe tudo o que necessitava para ser
feliz. O problema era que ele sentia que a felicidade era incompleta, na sua
vida também havia lugar para Sara. O dilema em que vivia fazia-o sofrer. Sofria
por não ter a seu lado Sara e sofria com a perspetiva de magoar a esposa. Foram
muitas as vezes que pensou declarar os seus sentimentos a Sara, mas conteve-se,
embora de forma velada tenha deixado no ar o que lhe ia na alma. Em consequência,
nem esposa nem Sara conheciam os seus sentimentos.
Finalmente o mês de Junho tinha chegado
e com ele veio o regresso ao trabalho nos escritórios. Ver Sara ao vivo, ao fim
de dois meses e meio, foi uma experiência inesquecível. Quando ouviu a gargalhada
ao fundo do corredor soube logo que era ela. O coração disparou no peito e a
garganta ficou seca e apertada. Ela parou à frente do gabinete dele e cumprimentou-o
«Bom dia
chefe!»
A expressão era de júbilo e os olhos pareciam
dois faróis. Apesar das regras ela tirou a máscara e ele derreteu-se com o
sorriso dela. Falaram de banalidades e Sara foi para o seu posto de trabalho.
Diogo enviou-lhe uma mensagem por Whattsapp.
«Meus
Deus! Tu estás lindíssima!»
Ela vestia uma blusa branca, justa no
abdómen, que evidenciava a sua elegância e umas calças de ganga que faziam
justiça às suas formas. O confinamento tinha-a tornado ainda mais elegante.
«Ai,
acho que a graduação dos seus óculos já não está adequada. Tem que ir tratar
disso.»
A resposta de Diogo não se fez tardar.
«Tu és
uma mulher bonita, isso é indiscutível. O “lindíssima”, acredito que possa ser dos
meus olhos, mas alguma razão eles devem ter para te ver assim!»
Foi um dia de tormento. Depois de
muitos dias de afastamento ele estava com dificuldades em estar ao seu lado sem
a poder abraçar e beijar. Naturalmente que não o podia fazer, quer porque era
um homem comprometido, quer porque ela não lhe tinha permitido tal veleidade. A
estes dois impedimentos juntava-se um terceiro, que era o facto de trabalharem
juntos. Diogo, quando estava longe dela ansiava pelos momentos que passavam juntos
no escritório, mas quando estava a seu lado vivia atormentado pela dor de uma
paixão não satisfeita e, provavelmente, não correspondida. Depois de tomada a
firme decisão de não ceder à tentação, ir ao escritório tornou-se insuportável.
Vê-la feliz, espalhando boa disposição e imaginar que ao fim do dia, ela
estaria nos braços de outro, tornou-se insuportável. Diogo tomou uma decisão:
iria deixar a empresa. A vida tinha-lhe permitido acumular um belo pecúlio,
isso dava-lhe a autonomia necessária para tomar a decisão de se afastar, sem
que isso acarretasse dificuldades financeiras. Antes de o fazer tentou
perceber, ainda que de forma subtil, quais eram os sentimentos dela. Ela, ao
mesmo tempo que desvalorizava a importância do companheiro, assumia-o, de forma
inequívoca. Estava decidido, ambos eram comprometidos, portanto, não havia espaço
para outra relação. Setembro foi o último mês dele na empresa e à medida que o mês
se aproximava do fim, a ansiedade foi tomando conta de Diogo. Parecia que se
aproximava o fim do mundo. Vivia os dias com o coração apertado e o olhar
triste era o espelho de uma alma em sofrimento. Vê-la todos os dias sem a ter
era um grande sacrifício, mas prescindir dela estava a revelar-se ser ainda
mais difícil. Mais do que uma vez deu com ele fechado na casa de banho a derramar
lágrimas de fel. Chorava a dor que lhe ardia no peito, mas esta parecia uma
fonte inesgotável. Finalmente chegou o último dia. A empresa quis organizar um
jantar de despedida, mas ele declinou, argumentando que que iria ausentar-se do
país, uma mentira piedosa, destinada aliviar o sofrimento que mais umas horas de
convívio lhe iriam provocar. A partir dessa data, Diogo reduziu
significativamente os contactos com a sua antiga equipa, pois Sara fazia parte
dela e, por mais que tentasse, esquecê-la, a sua memória tinha ficado gravada
dentro de si, como os dez mandamentos nas tábuas de pedra do Monte Sinai. O Outono
deu lugar ao Inverno e a Primavera sucedeu ao segundo, mas no peito de Diogo
ainda moravam os dois amores. O destino por vezes trata-nos com ironia, outras
com desprezo e ainda outras, de forma trágica. No caso do Diogo, o destino presenteou-o
com tudo isso em simultâneo. Nos primeiros dias de Abril de dois mil e vinte e
um, um ataque vascular cerebral, fulminante, roubou-lhe Ana, a esposa. Nessa
altura, ele tinha conseguido adormecer um pouco o sentimento que ainda nutria
por Sara e vivia feliz ao lado de Ana. O destino era, definitivamente, cruel: Primeiro
impedia-o de experimentar as alegrias de um segundo amor, depois roubava-lhe o
primeiro. «Talvez seja castigo por amar duas mulheres, em simultãneo!» Pensou
ele sentado na varanda. A verdade é que se culpava por ter sido infiel, ainda
que apenas em pensamento. Tinha sido educado na fé católica e os pecados eram
por “pensamentos, palavras, atos e
omissões”.
Sara tinha marcado presença no velório.
«Olá
Diogo.» Disse ela com um sorriso e a sua voz de veludo.
Ele olhou para ela em silêncio. Tinha
ficado sem palavras. A sua presença continuava a dominá-lo por completo.
Finalmente recuperou um pouco de presença de espírito.
«Olá
Sara. Bonita como sempre.» Disse ele com sinceridade, mas com uma tristeza
capaz de cortar a alma.
Ao fim de algumas horas o marido veio buscá-la.
Diogo olhou-os de soslaio, quando se cumprimentaram e ela entrou no carro. Sara
era uma mulher feliz. «Ainda bem que pelo menos ela é feliz.» Pensou ele, com o
coração dilacerado. O beijo suave nos lábios que eles tinha trocado foi como uma
punhalada que quase o fez desfalecer. Cambaleou e um amigo ajudou-o a manter-se
de pé. Tanta dor junta era difícil de suportar. Embora involuntariamente, ela
tinha vindo reabrir a ferida. Afastou-se um pouco e foi até ao carro. Fechou-se
lá dentro a abandonou-se à dor. Chorou baba e ranho, durante mais de uma hora,
até que adormeceu. Acordou com os três filhos a bater no vidro da janela,
preocupados com o pai. Já eram todos adultos, mas ainda viviam com ele. No meio
do choro e da aflição ele tinha pedido ajuda a Deus e a resposta vinha de forma
indireta: os filhos. Eles seriam sua tábua de salvação, pelo menos até ganhar
forças para refazer a vida. Sim, porque por maior que seja o desgosto, a dor e
o sofrimento, a vida continua.
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