O EQUÍVOCO
Parte
I – A taberna
O pau
nas mãos do desconhecido era uma arma letal. Tinha que conseguir sair daquela
taberna. Para isso precisava de passar pelo regedor, os dois cabos e pelo
capataz. Não podia colocar-se outra vez nas mãos da justiça, não nas mãos
daquela justiça. Não queria voltar a viver um equívoco. Estava já bastante
próximo da porta, era o momento…
Tudo começara
há dois dias atrás, ou talvez tivesse sido há vinte e cinco anos…
A
taberna do Ti Rouxinol era o ponto de encontro do momento. Tinha sido
arrematada por dez mil reis, pagos em duas prestações. Tinha feito obras de
beneficiação que a enriqueceram, definitivamente. O espaço era amplo e
luminoso, graças às janelas rasgadas, que permitiam uma vista panorâmica sobre
o rio Corgo. O interior era constituído por duas zonas: uma estreita e longa
onde se situava o balcão de pedra e a outra mais ampla, constituindo um
retângulo, com várias mesas e bancos corridos, que tinha vista para o rio. Tinha
ainda um vasto quintal, situado nas traseiras, onde habitavam coelhos, porcos e
galinhas, que proviam a casa, com os ingredientes para refeições mais
consistentes, servidas numa sala privada.
Situada
nos arrabaldes de Vila Real, na fronteira com a paróquia de Mateus, angariava
pessoas de várias localidades, atraindo tanto plebeus, como fidalgos. Por cima
da taberna, numa tradição centenária, existia uma hospedaria, pertencente ao
mesmo dono, onde pernoitavam muitos almocreves e, ocasionalmente, um fidalgo,
usufruindo de um quarto especial, com saída direta para a rua. Era providencial
para receber determinadas visitas noturnas! Aos dias calmos, seguiam-se fins de
tarde e noites avassaladoras. Pela manhã, quase de madrugada, os almocreves,
que desjejuavam antes de partir, acompanhados pela rara presença de um
trabalhador rural, que se pascia com o
mata-bicho, não chegavam para dar vida ao local. O taberneiro esfregava os
olhos para se manter acordado, ébrio de sono. As tardes eram tranquilas,
permitindo ao taberneiro organizar a sua vida e preparar-se para a enxurrada do
fim do dia. Com o fim da jorna começavam a aparecer os primeiros homens. Os
trabalhadores rurais misturavam-se com os almocreves, e os pequenos
proprietários, numa amálgama onde pontuavam alguns fidalgos e por vezes um ou
outro prior. Bebia-se, petiscava-se e jogava-se. Pão azeitonas e vinho era o
pedido mais comum. No entanto, para os que tinham um palato mais requintado, ou
talvez seja mais adequado dizer, a bolsa mais recheada, existiam vários
petiscos, todos à base de bacalhau: a punheta,
os bolos e as pataniscas.
O jogo
não era apenas uma diversão. Muitas vezes apostava-se forte, o que era uma
desgraça para os viciados. O taberneiro fechava os olhos, embora fosse uma
coisa que não lhe agradava. Fazia-o, sobretudo, por causa do fidalgo. O membro
mais jovem da casa Álvares Pereira era endiabrado. As más-línguas afirmavam
tratar-se de um bastardo, realidade que as semelhanças com a aia da dona da
casa não desmentiam. Independentemente da sua legitimidade, ele era o único
filho barão da família, tendo duas irmãs mais velhas. Era, portanto, o herdeiro
do morgadio. Certo é que o jovem era presença assídua da taberna do Ti Rouxinol
e jogador inveterado. Perdia mais do que ganhava e isso era um problema, porque
nem sempre pagava as dívidas e quando o fazia, nunca era de forma atempada. No
entanto, era agressivo e prepotente, cobrando, na hora, quando ganhava. O medo
que tinham das represálias da família fazia com que todos fossem coniventes com
este comportamento. Bernardo, assim se chamava o jovem fidalgo, tinha uma
compleição física notável, era alto e espadaúdo, sendo objeto de adoração das
mulheres, independentemente da classe a que pertenciam. Apesar dos seus
trejeitos e maneirismos todos admiravam nele a afeição que tinha pelo filho do cavaleiro
Rebelo Teixeira, que sendo de uma classe inferior, era tratado por todos, por
imposição deste, como se fosse seu igual. Joaquim, apesar de quatro anos mais
velho, era um jovem franzino, de estatura média, mas com um rosto de anjo. Essa
exigência, não coibia Bernardo de humilhar o amigo, quando isso servia os seus
propósitos.
O mês
de Abril já ia avançado e a primavera transformara os campos num quadro de
Monet, mas, apesar disso, o céu continuava a jorrar água, como se não houvesse
amanhã, fazendo jus ao ditado popular que dizia “em Abril águas mil”. Os homens
entravam na taberna e sacudiam os capotes, deixando atrás de si um mar de água.
Josefina, a filha do taberneiro, acudia, solícita, varrendo a água para o
exterior e torcendo o pano grosso, que tinha colocado no chão, para os clientes
limparem os pés. Tratava-se de uma tasca com algum asseio, o que a diferenciava
das demais. Bernardo, nessa noite, tinha ganho uma quantia avultada e quando um
dos jogadores pediu para continuar a jogar, com crédito, ele recusou
terminantemente. A reação não caiu muito bem e, apesar de ser fidalgo viu as
coisas mal paradas. Estavam no privado e estando todos os presentes contra ele,
seriam todos coniventes se lhe dessem um corretivo, situação que não esteve
muito longe de se verificar. Pesou os vários aspetos da questão e decidiu
abandonar o local. Os homens acabaram com o jogo e juntaram-se aos restantes,
na sala principal. A algazarra era grande. O vinho corria a jorro, levando na
sua frente as reservas e inibições. Tinha soltado a língua aos tímidos e dado
desenvoltura aos medrosos. O ambiente estava ao rubro. As vontades podiam
facilmente ser arregimentadas para uma causa, boa ou má. Era nessa altura que o
rouxinol entrava em ação. A filha pegava na flauta, instrumento que tocava com
mestria e o taberneiro fazia gemer as cordas da viola, ao mesmo tempo que a voz
se elevava e a turba acalmava-se. Meia hora depois, uns estavam podres de
bêbados e aos outros, o efeito do álcool tinha passado, deixando-os a todos
sossegados. Era graças à excelente voz de tenor que o taberneiro devia a
alcunha de Rouxinol.
Depois
da clientela sossegada surgiu a história. A cena de Bernardo, à mesa de jogo,
foi narrada com o exagero próprio de quem conta um conto. Nessa altura já
Joaquim se encontrava na Taberna. Tinha vindo à procura de Bernardo, mas
tinham-se desencontrado. A indignação foi geral. Conversa puxa conversa,
começaram a ser colocadas sobre a mesa algumas sugestões de vingança. O
taberneiro tentou colocar água na fervura, mas perdeu o controlo da situação.
Um grupo muito alargado dos presentes tinha-se juntado num canto e, em surdina,
acabaram por combinar uma forma de se vingar do jovem fidalgo. O Rouxinol ainda
tentou perceber o que falavam, mas foi em vão. Ele receava que pudesse vir a
ser alvo da ira do fidalgo e, consequentemente, das autoridades. Isso era tudo
o que ele não desejava. Os clientes começaram a desmobilizar e às onze horas o
taberneiro colocou os últimos na rua.
Parte
II - Sangue
«Acudam! Acudam!»
«Josefina vai ver o que se passa!» Ordenou o
taberneiro.
«Parece…» Josefina foi interrompida e teve de
se desviar para não ser derrubada pela porta.
«Acudam!» Gritou Bernardo, esbaforido e com o
rosto alterado pela emoção
«O que se passa menino Bernardo.» Indagou o
taberneiro, condoído com a dor do jovem.
«Está coberto de sangue… muito sangue.» Disse Bernardo,
num discurso incoerente.
«Isso é sangue?» Indagou um dos companheiros de
jogo, apontado para as manchas vermelhas que coloriam a camisa branca do
fidalgo.
«Sim, é sangue.» Disse Bernardo, parecendo um
pouco confuso sobre o sangue a que se referia.
«Querem ver que o fidalgo agora é quem mata as
galinhas lá no solar dos morgados!» Disse um dos clientes, em tom jocoso e
arrancando uma gargalhada geral.
«Tenham respeito pelo homem. Se calhar está
magoado!» Disse o taberneiro preocupado, arrancando mais uma gargalhada em
resposta.
«Não sou eu, é ele!» Gritou Bernardo, apontando
para a rua, perante o ar divertido da assistência.
«Era bom demais. Logo vi que não era o fidalgo
que matava as galinhas. Tem as mãos mais delicadas do que a língua.» Disse o
homem a quem ele havia recusado que jogasse a crédito.
«Josefina! Vai ver se o fidalgo está magoado e
leva-lhe um banco. O rapaz está completamente fora de si!» Disse o taberneiro,
que olhava, atónito, os clientes, sem perceber o motivo da reação destes.
«O sangue não é dele, mas também não é de
galinha!» disse Josefina, fazendo com que alguns rostos de espanto se virassem
na sua direção.
«Se não é galinha é pato ou outra coisa
qualquer. Seguramente que é animal de penas.» Retrucou um homem.
«Isto não me cheira nada bem!» Segredou
Josefina ao ouvido do pai, que a olhou com espanto e preocupação.
«Vou levá-lo para casa. Ele está demasiado
perturbado.» Disse um dos poucos homens que não se estava a divertir com a
situação.
«Vai, vai. Pode ser que caias nas graças do
pai.» Disse um dos homens.
«Vê lá não caias antes na desgraça. Ele assim
que vir o filho no estado em que está vai descarregar no mensageiro.» Disse
outro.
«Como se o velho quisesse saber do bastardo
para alguma coisa!» Disse um encapuçado que se cosia com as sombras, no canto
da taberna, fazendo com que todos olhassem na sua direção.
«Lameiros! Ajuda o teu compadre, que ele
sozinho não consegue carregar o fidalgo.» Disse o taberneiro, em tom
autoritário, fazendo com que o encapuçado se voltasse a sentar.
«Nunca pensei que o rapaz se impressionasse
tanto com tão pouco.» Disse um dos homens do grupo, que se tinha juntado no
canto mais afastado. Era o mesmo grupo que aí havia estado no cochicho no dia
anterior.
«Estes fidalgos não prestam. É só conversa.»
Disse outro, em tom de desdém.
«O jovem fidalgo pode não prestar como pessoa,
mas medroso é coisa que ele não é. O comportamento dele foi muito estranho.»
Disse aquele que parecia ser o líder do grupo.
«A verdade é que apanhou um grande susto.
Quando voltar a si, vai querer vingança. É melhor estarmos preparados.» Disse
um dos que tinha estado mais calado.
«Alguém sabe quem é o encapuçado?» Perguntou o
líder, olhando em volta.
«Lembram-se daquele jogador de pau que nas
festas de Vila Real, em Junho do ano passado, derrotou três competidores,
arrancando-lhes os botões do colete, sem que eles se apercebessem e sem os
magoar? Perguntou um dos homens.
«Sim.» Responderam quase em uníssono.
«É ele.» Retornou.
«Nesse caso o melhor que temos a fazer é deixá-lo
em paz.» Retornou o primeiro
Parte
III – Os bastardos
O
regedor entrou de rompante, acompanhado dos dois cabos de polícia. O silêncio
tornou-se sepulcral e os homens aconchegaram os capotes, sentindo um calafrio, tal
era a sensação que tinha entrado com ele na taberna. Era raro ele aparecer
acompanhado dos dois cabos, isso significava que algo de muito mau tinha
acontecido.
«O que se passou com o filho do Sr. Cavaleiro
Rebelo Teixeira é muito grave. Quero saber quem foi o instigador da coisa.»
Os
homens olharam uns para os outros, abismados com o ar sisudo do regedor. Tinha
sido apenas uma brincadeira.
«Senhor Regedor. Foi apenas uma brincadeira e o
Joaquim concordou em fazer o seu papel.» Disse o líder do grupo.
«Então considera o assassinato do rapaz, apenas
uma brincadeira.»
«Ora bolas senhor regedor. Ele não está morto,
apenas lhe encharcamos a camisa com o sangue de uma galinha.» Disse o homem.
«Pois o rapaz está morto e bem morto, tendo
sido apunhalado várias vezes.»
A
taberna ficou em silêncio. Os homens não estavam a perceber nada e demorou
algum tempo até apreenderem o significado da informação recebida. Ficaram primeiro
baralhados, depois aterrorizados. Fazia muitos anos que não existia um crime
tão hediondo por aquelas bandas.
«Para agravar a situação, em vez de ajudarem o
Bernardo Ávares Pereira ainda se riram dele.»
«Nós apenas queríamos pregar um susto ao jovem
fidalgo e o Joaquim participou voluntariamente na brincadeira.» Disse outro dos
homens.
O
regedor era um homem inteligente. Era um burguês, com vários negócios que
fizera dinheiro no Brasil, para onde fora ainda criança. Com olhar arguto,
avaliou a situação rapidamente. Aqueles homens estavam em estado de choque,
pois aquilo que tinham iniciado como uma brincadeira, tinha terminado numa
desgraça. Não tinham sido eles a assassinar o filho do cavaleiro. No entanto, o
seu instinto dizia-lhe que o assassino estava ali. Colocou os dois cabos na
entrada da porta, pedindo ao quarto homem, que se tinha mantido no exterior,
para entrar. Nessa altura todos puderam ver o capataz dos Álvares Pereira. Era
um homem imponente. Como de costume trazia amarrado à cintura um chicote que
nunca ninguém o tinha visto utilizar. Dizia-se que era mestre na arte de o
manobrar, embora também se dissesse que não passava de um enfeite. Era um
hábito que tinha trazido do Brasil, onde tinha sido feitor de um fidalgo, amigo
da família. Era um beirão que tinha adotado Trás-os-Montes. O regedor ordenou ao
taberneiro que separasse os homens em dois grupos. De um lado os que tinham
chegado antes dos homens que participaram na brincadeira e, do outro, os que
tinham chegado depois. Eram cinco os homens que tinham chegado depois e estavam
todos presentes. O regedor ordenou ao primeiro grupo que se juntasse ao fundo
da zona mais ampla da taberna e ao segundo grupo que se colocassem, de pé,
encostados à parede.
«Baixa o capuz.» Ordenou ao encapuçado.
O
capataz dos Álvares Pereira, quando percebeu quem era o encapuçado, deu alguns
passos para trás, protegendo as costas com a parede e instintivamente levou a
mão direita ao chicote. Era um homem perigoso, mas não o tinha na conta de
assassino. «Será que foi ele?» Pensou. O regedor interrogou, um a um, os
suspeitos. Queria conhecer os seus passos. Eram todos homens de bem, com a
exceção do encapuçado, que para ele era um desconhecido. Isso fez com que o
olhasse de imediato com desconfiança. Relaxou os ombros e pensou «Tenho que ser
imparcial. O facto de ser de fora não faz dele um assassino.» Depois do
interrogatório ficou na mesma. Ou talvez não. O único homem que tinha
confessado passar pelo local, onde se dera o crime, fora o encapuçado, mas este
limitou-se a descrever a brincadeira que viu os outros homens fazer, porque
vinha mesmo atrás deles. Os homens confirmaram a descrição, embora não se
recordassem de o ter visto.
«Senhor regedor! Chegou a testemunha.» Disse um
dos cabos.
A
expressão do encapuçado endureceu. A mão direita agarrou com força o pau que
tinha debaixo da túnica comprida. Talvez precisasse da ajuda do seu fiel amigo
para sair dali. O homem entrou na taberna e avançou a tremer para junto do
regedor. Era um velho curvado pelo peso dos anos. Tinha visto tudo da esquina
onde se tinha encostado, para descansar do passeio vespertino. Era a idade que
o fazia tremer e não o medo. Já não tinha nada a perder, pois a única coisa que
tinha de valor, tinha-a perdido quando aceitou testemunhar: a honra
«Foi ele.» Apontou, sem hesitação, na direção
do encapuçado.
O
homem manteve-se impassível, enquanto o velhote se afastava, ajudado pelo regedor.
«O senhor está preso. Cabos algemem o homem.»
Ordenou o regedor.
Os
cabos aproximaram-se dele retirando da cintura os cacetes de madeira, que era a
única arma que estavam autorizados a usar. Quando estavam a cerca de dois
metros o desconhecido retirou o pau de debaixo da túnica e brandiu-o em direção
aos homens. Sentia-se injustiçado e isso dava-lhe energia para resistir e
vencer qualquer adversário. Eles mal tiveram tempo de aparar os golpes que o
outro desferia, com mestria e inusitada violência. Depois da terceira pancada
sentiram os cacetes voarem-lhes das mãos, passando a aparar os golpes com o
corpo. Fugiram para junto da porta, enquanto o regedor apanhava os dois cacetes
e se apresentava para a refrega. A habilidade do regedor era surpreendente e o
desconhecido ergueu as sobrancelhas, em sinal de admiração. Apesar disso, o
regedor estava em desvantagem, no que dizia respeito ao ataque, pois as suas
armas eram mais curtas que a do adversário. Já no que dizia respeito à defesa
parecia dar conta do recado. Depois de avanços e recuos o regedor começou a
chegar mais perto do desconhecido e com isso ganhou alguma confiança. Esse foi
o seu erro. Com um golpe de ventoinha o desconhecido colocou o regedor com os
dois cacetes a apontar para fora, desprotegendo o corpo e atirou um golpe
dirigido à cabeça. De súbito sentiu que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Sem
que tivesse percebido, o capataz dos Álvares Pereira lançou o chicote,
enrolando-lhe a ponta nos tornozelos e puxou com força. Ele caiu violentamente
e de forma desamparada no chão. Os cabos de polícia avançaram sobre ele e
algemaram-lhe as mãos atrás das costas. Restabelecida a calma na taberna,
taberneiro e clientes quiseram conhecer as razões de tão brutal assassinato.
«Alguém conhece este homem?» Perguntou o
regedor, dirigindo-se a todos os presentes.
«Este homem era um almocreve que se distinguiu
no jogo do pau. Tornou-se tão bom que numa competição matou um adversário. Foi
o cavaleiro Rebelo Teixeira que evitou que fosse preso.» Disse o capataz dos
Álvares Pereira.
O som
de uma gargalhada sarcástica ecoou na taberna. Os rostos voltaram-se todos para
o desconhecido. Que ria e chorava em simultâneo. O regedor olhou-o de forma
penetrante e perguntou.
«Quer ter a gentileza de partilhar connosco o
seu nome e a sua história?»
O
Almocreve narrou a história da sua vida e no fim não havia alma dentro da
taberna, que não estivesse condoída. O nome dele era Afonso Dias e era
almocreve de profissão, mas também um homem ao serviço do reino. Nessa sua
atividade tinha juntado algum dinheiro e ganho o direito a algumas terras em
Vila Seca de Poiares, onde tinha construído uma casa. Tinha recebido treino
militar, tendo-se tornado um especialista na luta com o pau. Nas suas viagens
tinha aprendido muito sobre o assunto, pois era uma técnica popular e o país
estava recheado de especialistas. Há vinte e cinco anos atrás, numa
desmonstração numa feira, o seu adversário desprotegeu a cabeça, num momento em
que era suposto aparar um golpe violento. Apanhado de surpresa tentou desviar o
pau, mas acertou-lhe numa têmpora. O adversário teve morte instantânea. Soube
mais tarde que o criado do cavaleiro Rebelo Teixeira tinha falado com o seu
adversário e combinado a alteração da desmonstração, que determinaria a sua
morte.
Quando
estava preso recebeu a visita do cavaleiro, acompanhado do juiz, que lhe
propuseram partir para o Brasil, ficando aí durante vinte anos e libertando a
sua Leonor do compromisso de noivado. Soube apenas quando regressou do Brasil
que, para garantir a liberdade dele, a noiva se comprometeu a ser aia da mulher
do Cavaleiro e a ter um filho dele, que deveria ser entregue à nascença, para
ser criado como filho do cavaleiro. O jovem que sou acusado de matar era filho
de Leonor Vasconcelos e do Cavaleiro Rebelo Teixeira. Não satisfeito com o
facto de ter usado a sua noiva, três anos depois vendeu-a aos Álvares Pereira,
para que esta lhes desse um filho varão. O Bernardo Álvares Pereira era filho
bastardo do fidalgo. Afonso, na sua posse, tinha um documento, assinado pelo
juiz da comarca onde tinha morto o seu adversário e pelo cavaleiro,
confessando, que montaram o esquema que o levou a entregar a noiva ao cavaleiro,
porque este se tinha apaixonado por ela. Leonor apenas tinha sido vendida,
porque a mulher do cavaleiro, que conhecia a paixão dele por Leonor e a razão
por que esta se lhe submetia, o obrigou a prometer, no leito da sua morte, que
a libertaria do seu jugo. Ele cumpriu a promessa, submetendo-a ao jugo de
outro. Afonso tinha jurado que, os filhos que Leonor tinha sido obrigada a ter
e a entregar aos seus senhores, saberiam o seu segredo. O único arrependimento
que tinha era de apenas ter cumprido metade da promessa. Quando terminou a
narrativa tinha perdido a compostura. A cabeça estava caída, o troco curvado e
os olhos vertiam uma torrente silenciosa de lágrimas. O silêncio era sepulcral.
Os dois polícias seguraram-no pelos braços, quase com delicadeza e conduziram-no
para fora da taberna.
«Preciso de urinar, por favor.» Disse Afonso,
entre soluços.
Os
homens libertaram-no das algemas e voltaram-lhe as costas para ele usar o canto
escuro sem constrangimentos. Quando se viraram o homem tinha-se evaporado. Nessa
mesma noite, Leonor desapareceu e os Álvares Pereira encontraram a seguinte
mensagem no quarto de Bernardo:
“Eu sei quem matou o Joaquim,
agora o Bernardo também sabe. Aliás sabe de tudo! Agradeçam a vida do (vosso
filho) à Leonor. Afonso Dias”
A história
correu Vila Real e arredores e, para fugir dela, os Álvares Pereira mudaram-se
para o Rio de Janeiro, desconhecendo que assim se tornavam vizinhos de Afonso
Dias e Leonor Vasconcelos, que tinham reencontrado o amor e a paz.
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