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O PAI NATAL BATEU À PORTA


O PAI NATAL BATEU À PORTA

Carlos, aos oito anos de idade, estava convencido que conhecia as dificuldades da vida. Fazia dois anos que o pai tinha desaparecido. Apaixonou-se por uma angolana, depois de estar a trabalhar no país durante um ano e deixou de ter qualquer contacto com a família. Aquele ato impensado do pai pareceu-lhe injustificado e muito cruel. Ele era o seu ídolo e a mãe não se cansava de elogiar o sacrifício que ele fazia ao ir trabalhar para África. Mãe e filho sentiram-se traídos. Apesar disso, ela nunca disse abertamente mal do marido.
«Talvez um dia ele nos explique as suas razões.» Dizia a mãe
O carinho, o amor e o constante apoio da mãe acabaram por ajudar Carlos a ultrapassar a situação. No entanto, nada conseguia compensar a falta do amor do pai e o impacto da falta do dinheiro que a sua ausência provocou. Ele tinha um irmão e uma irmã e a mãe tinha de sustentar a família sozinha. Embora não lhe faltasse, nem teto nem comida, felizmente a casa estava paga, tinham que poupar em tudo e luxos era coisa que não existia. Mau grado as dificuldades, a mãe arranjava sempre forma de lhes dar um mimo no aniversário e no natal. A verdade é que para quem tinha apenas o essencial qualquer coisa era um mimo.
Carlos tinha começado a render-se à eletrónica e o seu Game Boy era usado até à exaustão. Os seus amigos já tinham uma Play Station, mas ele sabia que a mãe não lhe podia comparar uma, por isso nunca a tinha pedido. No seu íntimo ele achava que era o rapaz mais pobre lá da escola e isso era motivo para alguma revolta. As circunstâncias especiais desse ano deram-lhe coragem
«Mãe sabes que as Play Station baixaram muito de preço. Será que posso ter uma no natal?» Perguntou Carlos.
«Não filho. Ainda que elas custem pouco dinheiro a mãe não pode compara uma porque tem de pagar a prestação adicional do condomínio.»
«Eu sou mesmo o menino mais pobre lá da escola!»
Carlos não disse mais nada, mas o semblante dizia tudo. A mãe ficou com o coração apertado. Ela bem gostaria de lhe poder dar tudo que ele queria. Sabe Deus os sacrifícios que fazia: tinha um segundo trabalho, feito em casa depois de deitar os filhos e quase não cuidava dela. Era tudo para os filhos. Mesmo assim ainda arranjava tempo para ir uma vez por semana distribuir comida aos sem-abrigo. Talvez estivesse na altura de levar o Carlos consigo. Carlos adorou a ideia. O entusiasmo com que ele distribuía a comida e as roupas era contagioso e todos os voluntários sentiram isso. Foi uma noite emocionante para todos. No regresso, Carlos estava tão pensativo que a mãe começava a duvidar da sua decisão. «Se calhar não devia ter exposto o miúdo a uma realidade tão má como a dos sem-abrigo.» Pensou. Não havia nada a fazer. A verdade é que por muito dura que tivesse sido a experiência ele tinha de perceber o que era a pobreza. Os irmãos já estavam a dormir e os avós, que eram quem ficava com as crianças nesses dias, foram-se embora.
No dia seguinte a vida seguiu a rotina. Carlos e a mãe estavam na paragem do autocarro à espera que o pai de um colega viesse busca-lo. Os pais de quatro dos rapazes lá da escola articulavam-se por forma a que os miúdos fossem juntos para a escola: assim cada um fazia apenas um quarto das viagens.
«Mãe já reparaste no senhor que está ali sentado. Ele já é muito velho e está sempre por aí com um ar de cachorro abandonado. Se calhar é um sem-abrigo.»
A mãe já tinha reparado no senhor. Ele vestia-se de forma bastante descuidada e como estava sempre na rua era bem possível que fosse um sem-abrigo. Apenas as suas bem cuidadas barbas brancas desmentiam essa situação. O senhor levantou-se e passou por eles no seu passo lento.
«Mãe. Estive a pensar. Eu não preciso que me dês nenhuma Play Station. Na verdade nem sequer preciso de nenhuma prenda. Quero dar os quinze euros que estavas a pensar gastar na minha prenda a um sem-abrigo.»
O velhote que estava a passar por eles olhou para a o miúdo e os seus olhos brilharam. Era raro ver um jovem daquela idade ter esse tipo de sentimentos. Decorridos alguns dias, eles estavam no mesmo local mais ou menos à mesma hora. Carlos tinha no bolso o dinheiro da sua prenda e num impulso levantou-se e foi dar o dinheiro ao velhote. O homem arregalou os olhos de surpresa e recusou. Mas o Carlos insistiu e o seu rosto refletia um prazer tão grande ao fazer aquela boa ação que o homem aceitou. Comovido e com a voz embargada disse:
«Aceito a tua oferta meu jovem, mas com uma condição. Tens de me dar a tua morada para eu te poder mandar um postal de natal.»
Depois da concordância da mãe, Carlos deu a informação ao velhote e ele partiu dispensando-lhes um sorriso de agradecimento profundo. Carlos estava feliz e a mãe também. Na verdade aquilo que tinha pensado comprar era algo supérfluo. O dinheiro era muito mais bem empregue, utilizado daquela forma.
«Obrigado meu filho. Deste-me uma grande lição.» Disse a mãe, abraçando-o e com as lágrimas no canto do olho.
Era o dia vinte e quatro de Dezembro. A família estava toda reunida. Sendo filha única os pais passavam lá o Natal, por isso o jantar foi para seis. Depois do jantar foram para a sala jogar. Carlos adorava jogos de tabuleiro. A determinada altura a mãe e os avós foram os três para o quarto e deixaram os filhos na sala. A campainha da porta tocou e Carlos foi ver quem era. Lá fora estava o pai natal. Nenhum dos adultos veio abrir a porta e Carlos gritou:
«Mãe o pai Natal tocou à porta!»
Quando ouviu o filho a gritar ela veio a correr. Espreitou pelo monóculo e lá estava o pai natal Era um pai natal que lhe parecia familiar. Claro! Era o velhote a quem o filho tinha dado os quinze euros. Abriu a porta. O pai natal entrou e poisou o saco no chão. Era um saco pesado e ele já não era jovem. Carlos conduziu o pai natal para o sofá e por indicação deste abriram o saco. Lá dentro estavam as prendas que cada um dos membros da família desejava. «Como era possível o velhote ter adivinhado?» Interrogou-se a mãe.
O velhote era um senhor muito rico mas sem família. Depois de ter recebido o dinheiro do Carlos ele procurou ouvir todas as conversas para saber tudo sobre aquela família. Foi assim que ele descobriu. A explicação foi dada à mãe em surdina e esta ficou mais descansada.
O pai natal chamava-se Roberto e foi convidado a passar a noite com eles. Carlos adorou o pai natal Roberto. Quando a noite chegou ao fim e Roberto se preparava para sair, Carlos tomou-lhe a mão.
«Eu gostava que tu fosses o meu outro avô.» Disse com simplicidade, mas com carinho.
Roberto não se conteve. As lágrimas corriam-lhe pela face contagiando toda a família. Muito devagar ajoelhou-se e abraçou Carlos, também desfeito em lágrimas.
«Nada me faria mais feliz do que ser teu avô.»
Carlos, com o seu gesto de amor, ganhou um novo avô mas sem o saber tinha também ganho todos os presentes que o dinheiro podia comprar.

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