A REDE
A escola ficava
num dos bairros mais antigos da cidade. Era um bairro onde o comércio e os
escritórios predominavam, sendo atravessado pela avenida principal da cidade: A
Avenida Fonseca Paiva. Lado a lado com a câmara municipal, mesmo ao fundo
da avenida, na fronteira do bairro, os
dois edifícios erguiam-se de forma imponente. Nas suas traseiras escondia-se a
Vila Mariana, um casario meio abandonado, que tinha sido o berço da cidade. As
casas térreas, de perpianho imperfeito, encontravam-me em estado de quase ruína.
Apenas meia dúzia de velhos casais e alguns viúvos e viúvas, resistiam a
abandonar o local. Eram a última barreira ao avanço do progresso. Os velhos do
Restelo, nas palavras de muitos. Para chegar ao miradouro, que dava sobre o
rio, com uma vista deslumbrante, tinha de se atravessar a Vila e contornar o
velho cemitério. Tinha sido ali que tudo tinha começado, com um foral régio de
Dom Diniz.
A manhã era
sempre muito animada. Os jovens subiam a escadaria, que dava acesso ao hall de
entrada, em grupos, largados pelos pais junto da rotunda ou despejados pelos
autocarros na paragem da câmara municipal. O encontro matinal era uma
miscelânea de ingredientes barulhentos e esfusiantes: os cumprimentos, os
gritos ou as gargalhadas eram manifestações comuns. O toque de entrada criava
uma mudança de ritmo. Os jovens encaminhavam-se para as salas e quando o famoso
“toque a feriado” soava, as portas já estavam fechadas e o silêncio reinava nos
corredores. Os recreios desertos pareciam tristes e abandonados. Apenas o vento
brincava com alguns papéis abandonados, de forma irresponsável, por algum
estudante.
Pedro sentou-se e
poisou os livros. Apenas viu o papel quando se baixou para poisar a mochila. A candidatura
à Rede tinha sido aceite. A prova era às catorze horas. Para além de ser alto e
forte era demasiado maduro para a sua idade. Pedro já tinha passado por muito e
existiam poucas coisas capazes de o assustar. Tinha ido para Angola ainda de
tenra idade e vivido a guerra colonial de perto. No entanto, poucas coisas se assemelhavam
ao que tinha passado no último ano em Luanda: tinha vivido no meio da luta fratricida
entre os vários movimentos de libertação, correndo todos os dias risco de vida.
Atualmente, vivia no campo, habituado a lidar com situações adversas e a resolver
muitos problemas com meios limitados: as suas mãos valiam por sete instrumentos.
Em Angola, entre os oito e os catorze, tinha tido aulas de defesa pessoal,
conhecendo, com alguma profundidade, várias técnicas. No entanto, guardava tudo
isso apenas para si.
Entrou
diretamente para o oitavo ano de escolaridade, numa turma onde já todos se
conheciam. Desde o primeiro dia que ouvia falar da Rede. Era uma organização
masculina à qual quase todos os rapazes pertenciam. Os que não pertenciam eram
considerados uns fracos e frequentemente abusados pelos restantes. Sendo um
excelente aluno e um bom jogador de futsal rapidamente sobressaiu. Só o facto
de não pertencer à Rede o impedia de ser o líder da turma e até do ano. Ele não
se preocupava muito com isso, mas para a Rede só existiam duas opções: Ou se
tornava um membro da Rede ou era um alvo a abater. O convite foi recebido com
um encolher de ombros. Esse tipo de organizações não era o seu género!
«Ser membro da Rede só é possível para quem for capaz de
evidenciar nobreza e coragem.» Dizia-lhe o delegado de turma.
Pedro não estava
muito convencido sobretudo depois do incidente em que ele interveio para evitar
a humilhação do Francisco, um colega gordinho com quem todos gozavam. A forma
como ele dominou os cinco rapazes que tinham roubado o lanche ao Francisco e se
preparavam para lhe roubar a mochila e o blusão, foi impressionante. Pedro
tomou-o sob a sua proteção.
«Se alguém tocar no Francisco ou o provocar de alguma
forma vai sofrer as consequências.» Falou sem se dirigir a ninguém em específico.
Quase de forma
automática viu-se rodeado por todos os desprezados pela Rede que viram nele a
sua salvação. Quase todos tinha sido levados para o buraco e tinham lá passado
um dia inteiro tremendo de medo, mas ninguém se atrevia a falar sobre o assunto.
A diretora de turma e o conselho diretivo não o pouparam. Teve de ouvir várias
recriminações e avisos sobre a forma como tinha dominado os cinco colegas. No
fim ele falou da Rede e da humilhação que esta fazia aos colegas mais fracos ou
que se recusavam a aderir.
«Não existem queixas e sem isso nada pode ser feito.» Disse
o membro do Conselho Diretivo.
Pedro aceitou o convite para fazer a prova de
admissão à Rede. O que ele não sabia era que ele tinha sido marcado como um
alvo a abater!
A prova da
superação era uma escalada. A ponta do miradouro da Vila Mariana era uma rocha
nua e escarpada com três metros de altura num dos lados e sete no outro. A sua
escalada não era complicada pois tinha muitas saliências, mas fazê-lo “em solo”
implicava um conhecimento e experiência inexistente num jovem da sua idade. Ele
apenas tinha de subir três metros com a segurança de que uma eventual queda
seria amparada por um grande colchão de ar colocado no solo. O risco era muito
limitado e ele aceitou o desafio. A dois terços da subida foi impedido de
progredir por cinco jovens com o rosto tapado. Ele ia jurar que eram os rapazes
que ele tinha dominado. Teve de subir pela zona mais alta. Os responsáveis da Rede
vieram em seu auxílio, cometendo a imprudência de abandonar o colchão, que desapareceu
de imediato. Quando chegou ao cimo os cinco jovens tinham desaparecido e foi
ajudado pelo responsável da prova.
«Não te preocupes que já garantimos que eles não nos
incomodam mais. Foi só o tempo de darmos a volta e chegarmos cá acima.»
Pedro agradeceu,
mas sentiu que algo não estava bem. O seu instinto dizia-lhe que aceder àquela
prova era uma insensatez. A descida ao buraco era a última prova. Na verdade
era também ela uma escalada, de cinco metros de altura, mas numa parede
praticamente lisa. Para descer utilizavam uma corda com nós o que simplificava
a operação. Para subir teria que usar, de forma conjugada, as pernas e as
costas. Desceram primeiro os quatros responsáveis da Rede e depois foi a vez de
Pedro. O buraco era estreito, embora o último metro fosse bastante largo, apresentando
um diâmetros de três a quatro metros. Estavam tão próximos uns dos outros que
Pedro se apercebeu tarde demais da armadilha. Numa questão de segundos tinha as
mãos amarradas atrás das costas, foi amordaçado, enrolado numa rede e jogado no
chão. Estava completamente indefeso. Os quatro rapazes foram rendidos por apenas
um. Era um dos agressores do Francisco.
«Agora é que a diversão vai começar. Quando saíres daqui
e se saíres daqui, vais pensar muito antes de te meteres connosco.»
Depois
retirou-lhe a mordaça pois queria ouvi-lo responder. Trocaram alguns “mimos” verbais
e sempre que o adversário ficava sem argumentos Pedro era pontapeado. Apesar da
sua capacidade física e mental Pedro estava completamente esgotado e ao fim de
algum tempo o cansaço começou a tomar conta dele. Mal fechava os olhos era acordado
de forma brusca. O cansaço começou a afetá-lo e o medo começou gradualmente a invadi-lhe
a mente. Ao fim de quatro horas Pedro foi deixado sozinho. A noite tinha caído.
A escuridão no fundo do buraco era total. Pedro mexeu-se de forma a poder olhar
a nesga de céu que o buraco lhe permitia ver. Estava uma noite estrelada mas
não havia luar. Ele tinha combinado ir jantar com um grupo lá da escola pelo
que em casa apenas dariam pela sua falta por volta da meia-noite. Tinha de
arranjar forma de sair dali. Sentiu-se só. Abandonado pelo mundo. Quando estava
quase a entregar-se ao desânimo, lembrou-se do gravador e isso deu-lhe novas
forças. Tinha curiosidade em saber se o seu gravador de ornitólogo tinha
conseguido captar todas as conversas. Elas eram muito incriminatórias
para os responsáveis da Rede e as suas ligações políticas. A sua divulgação ia
ser um escândalo! Apesar de extenuado conseguiu manter a calma e movimentar-se
dentro da rede sem ficar manietado. Retirou o canivete de dentro das botas de
cowboy e cortou a rede. Depois de liberto desta enfiou o cabo do canivete num
buraco da parede e, deixando de fora a lâmina, cortou as cordas que o prendiam
e libertou-se da mordaça. Decorrida uma hora estava no cimo do poço. Espreitou
com cuidado perscrutando a noite. Ao fundo, junto a uma cerca, via-se a
silhueta de um rapaz, de costas para ele. Saiu do poço e surpreendeu-o no ato
de mictar, dominando-o com facilidade. Nesse momento chegaram os rapazes com
quem tinha combinado jantar. Todos eles tinham estado no fundo do poço e adivinharam
que o mesmo estava a acontecer ao Pedro. Todos juntos foram até casa de um
deles, que ficava na cidade e fizeram um cópia da gravação que Pedro tinha
conseguido registar. Era uma obra-prima! O pai dele entretanto tinha sido
avisado e juntou-se ao Pedro na esquadra da polícia. Estavam lá os pais de
todos os “humilhados”, que conseguiram contactar e apresentaram a queixa
suportada pela gravação.
A Rede tinha sido
destruída.
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