O
PAI NATAL DE CARTÃO
Ainda
era de noite, mas era óbvio que o dia iria clarear um pouco mais tarde que o
normal. O céu, carregado de nuvens, anunciava chuva e o vento uivava nas
esquinas, reclamando os seus domínios. Era sempre assim: a ausência do sol
prolongava as noites e tornava os dias cinzentos. A noite fria entorpeceu-lhe
os músculos e gelou-lhes as articulações. «Parece que vamos ter outro dia de
chuva!» Pensou. O chão da arcada, que lhe serviu de teto, estava gelado. Com
gestos lentos, arrumou as mantas, tudo acomodado num denso rolo que colocou às
costas. Os cartões, juntamente com um cobertor esburacado, ficam a marcar o
lugar. Era um lugar protegido do vento e da chuva. Um privilégio que não podia
perder. As luvas, já gastas nas pontas dos dedos, o gorro enfiado até às
orelhas, o casaco velho e roto, sobre várias camisolas, são as armas que usa
para combater o frio. O vento ignora tudo isso e descobre forma de lhe tocar na
pele. Que gelo! Desconforto! Toca a andar! O frio vai desaparecer… Apesar do ar
desmazelado tem uma apresentação razoável. No entanto, com a casa às costas, penteado
como um gato lambido e com barba de meses, não consegue esconder que é um
sem-abrigo.
Alberto
não tem emprego, mas trabalha. Recolhe cartão para o senhor Pedro. Tem que ser
dos primeiros a chegar para ter direito a um dos carrinhos que ele distribui.
Dessa forma pode carregar mais cartão do que se tiver de o levar às costas.
Para além disso, tem que apanhar a abertura do mercado e dos cafés, é nessa
altura que os caixotes são colocados na rua. As ruas estão desertas. A ausência
de pessoas ainda acentua mais o frio que se faz sentir.
Foi
um dia produtivo. O valor do cartão, mais um ou outro donativo renderam sete
euros e trinta e sete cêntimos. O seu pecúlio tinha aumentado. Os doze euros e
cinquenta que carregava no bolso davam-lhe uma boa sensação.
Passou
o dia a deambular e conseguiu comer sem delapidar o seu pecúlio. Ao fim do dia
foi à sopa dos pobres, nos Anjos. Talvez um dia conseguisse ter lá um
alojamento!
A
noite caiu mais cedo. Alberto está de regresso ao local a que, carinhosamente,
chama casa. As ruas agora estão repletas de pessoas, todas elas a caminho de
casa. Recebe a indiferença dos passantes. Essa indiferença que não lhe é
indiferente, mas à qual se vai acostumando, doí-lhe. É uma dor sem causa
física, mas profunda, intensa… eterna! Ele nem sempre foi assim, mas quando
perdeu a família, num acidente, perdeu-se com ela também. Desapareceu sem
precisar de fugir. À vista de todos, no meio dos sem-abrigo, ele tornou-se
invisível. Afastam-se dele como se tivesse alguma doença contagiosa. Parecia
que tinha lepra! «Nós somos os leprosos sociais!» Refletiu.
O
seu lugar estava ocupado e os preciosos cartões deixaram de ser seus. Era
inútil reclamar. Desde que o Rufino tinha chegado que era assim. Quem não
pagasse não tinha local para dormir. Ele protestou! Foi um erro que pagou muito
caro. Os homens de Rufino encostaram-no à parede e foi o fim.
«Devias ter ficado calado. Vamos ver se tens
alguma coisa de valor.» Disse Rufino.
O seu precioso pecúlio e o canivete de
estimação desapareceram. Alberto gritou de raiva. Gritou de impotência, mas gritou
também de desespero. O seu lamento ecoou de forma fúnebre! Ele tinha ficado sem
nada: sem o local para dormir, sem o dinheiro e sem forma de se proteger do
frio da noite. Logo na véspera de Natal! Tendo sido obrigado a afastar-se,
vagueou sem destino. Tinha começado a chover e ele estava numa zona
residencial. A chuva, tocada a vento, molhava todos os alpendres. Abrigou-se
num mais profundo. Seria perfeito se não fosso o vento, que fazia um túnel,
varrendo a esquina onde se encontrava. A chuva deu tréguas um pouco antes da
meia-noite. Alberto, encolhido num recanto mais abrigado, tiritava de frio. A
época festiva fê-lo recuar no tempo. O Natal com os pais, o Natal com os
amigos, enfim, com os dois filhos e com a mulher… A sua ausência continuava a
doer como no primeiro dia. A emoção ainda o tornou mais frágil e tremores de
frio e de emoção percorreram-lhe o corpo. Já não conseguia chorar por eles.
Tinham sido tantas as lágrimas vertidas que a fonte secou. Pela primeira vez
questionou a decisão de ter desaparecido. Que seria feito dos seus amigos?
«Como estará o meu afilhado Rui? Neste momento já deve ter dezasseis anos.»
Fechou os olhos e dormitou por alguns instantes. Sonhou com o Pai Natal.
Acordou sobressaltado. O Pai Natal estava vestido de Cartão? Levantou-se. A cabeça e os pés eram do Pai
natal, o resto era uma caixa de cartão. Nessa altura ele percebeu a ilusão. Um
jovem, vestido de Pai Natal, colocava no lixo uma caixa que o tapava por
completo. Era mesmo o que ele precisava.
«Boa noite. Desculpe, pode dar-me essa caixa
antes de a destruir?»
O
jovem assustou-se. Refeito, olhou o vagabundo de cima a baixo. Estava com um ar
miserável. Ensopado dos pés a cabeça, tremia sem parar.
«O senhor vai ficar aí na rua?»
«Sim. Essa caixa vai ajudar a proteger-me do
frio.»
O
jovem ficou condoído do homem. Sem nenhuma razão aparente lembrou-se do seu
padrinho. Tinha desaparecido, fazia dez anos. Quem sabe se ele não era um sem-abrigo
a precisar de ajuda. Decidiu ajudá-lo.
«Venha comigo. Os meus pais vão arranjar-lhe
roupas secas e uma boa refeição. O meu nome é Rui.» Disse o jovem, apresentando-se.
O
coração de Alberto deu um salto. Aquilo era um sinal. Não podia ser! Seguiu o
jovem com uma ligeireza que julgava já não possuir. Assim que entraram no prédio
e lhe viu o rosto e as dúvidas assaltaram-no. Seria possível? Com medo de ter
razão encolheu-se.
«Não. Não posso subir contigo. Os teus pais
não vão gostar de me ver.» Disse Alberto.
O
coração estava apertado e as pernas tremiam-lhe de medo. Com que direito podia
ele apresentar-se na casa do compadre depois de ter desaparecido há dez anos?
Será que era mesmo ele?
«Não se preocupe com os meus pais. Nós
costumamos ajudar os sem-abrigo. Eu costumo fazer distribuição de artigos numa
carrinha da Santa Casa.»
A
emoção tomou conta de Alberto e as lágrimas brotaram de uma fonte que ele
pensava ter secado. Ao vê-lo chorar Rui segurou-lhe os braços e disse.
«Não tenha medo os meus pais vão recebê-lo de
braços abertos.»
Entraram
em casa e Rui anunciou a sua presença.
«Trago uma pessoa que encontrei na rua.»
A
família dirigiu-se toda para o hall de entrada. Alberto reconheceu de imediato
os compadres. Mas o estado em que estava fez com que não fosse reconhecido.
«O senhor precisa de tomar banho e de umas
roupas secas.» Disse Rui.
«Vou buscar.» Disse a mãe.
«Rosa espera!»
Os
rostos voltaram-se todos para o vagabundo. Como podia ele saber o nome dela? Os
olhares inquiridores exigiam uma resposta.
«Sou
eu, o Alberto.» Disse ele, com as lágrimas nos olhos e a voz embargada pela
emoção.
Quando
atentaram bem no rosto dele reconheceram-no.
«Alberto!»
«Padrinho!»
Que
emoção! Crianças e adultos choravam e riam ao mesmo tempo! Alberto, depois de
se por apresentável, contou a sua vida. Havia muita dor, muito sofrimento,
muita revolta. Não houve recriminações, apenas aceitação e compreensão. Alberto
tinha regressado e isso era a única coisa importante. Rui era o mais radiante
de todos. O seu padrinho tinha ressuscitado! Alberto abraçou-o emocionado.
«És
o meu Pai Natal de Cartão!» Exclamou Alberto.
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