Avançar para o conteúdo principal

NATAL DE IRMÃOS


NATAL DE IRMÃOS

João completava doze anos em Dezembro. Tinha uns pais que o adoravam e uma irmã, seis anos mais nova, que ele idolatrava. No início do verão a família sofreu um revés. O pai que era diretor numa multinacional ficou desempregado. Como trabalhava havia pouco tempo na empresa o valor da indemnização foi muito reduzido. Os pais explicaram a situação ao João e este, apesar de perceber que estava prestes a perder muitas das coisas a que estava habituado, reagiu muito bem. Aquilo que lhe ia custar mais era sair do Externato Marista de Lisboa e ir para uma escola pública. Não pelo facto de deixar de andar num colégio, mas por ser aí que andavam todos os seus amigos.
«Eu ajudo naquilo que for necessário. Vai ser difícil mudar de escola, mas não se preocupem que eu consigo.» Disse João.
O pai fez um esforço descomunal para não chorar. A mãe percebendo isso envolveu pai e filho no mesmo abraço, escondendo dessa forma as suas próprias lágrimas. Lúcia a irmã, que fazia seis anos em Agosto, ficou fora desta conversa. Para ela a vida continuou sem qualquer mudança. Chegou o mês de Agosto e Lúcia queria que a sua festa de aniversário fosse no Nexgym, tal como no ano anterior. Isso era um problema para os pais, dado o modo de poupança em que viviam.
«Os meus amigos querem ir todos ao Nexgym. Eu quero a minha festa lá!» Reclamou  a filha.
Os pais engoliram em seco. Nada lhes daria mais satisfação do que fazer a vontade à filha mas isso estava fora de questão. Com o coração destroçado tiveram que dizer que não. O pai saiu da mesa para esconder as lágrimas e foi à casa de banho. João percebeu o estado em que ele estava e ficou preocupado. A seguir ao almoço foi brincar com a irmã e convenceu-a de que se fizessem uma festa lá em casa podiam brincar também no quarto dele. Como contrapartida ela não podia dizer aos pais o que eles tinham combinado, apenas tinha que dizer que tinha mudado de ideias. A irmã não disse nada.
O irmão não insistiu mas montou a tenda no quarto e mostrou à irmã como tinha ficado bonita. Ela ficou parada à porta do quarto a olhar para a tenda, depois saiu a correr e foi ter com o pai que estava na sala.
«Pai que prefiro que a festa seja cá em casa.»
O pai abraçou-a com um sorriso de satisfação. Felizmente que tudo se tinha resolvido da melhor forma.
«O nosso anjo da guarda não nos abandonou.» Disse a mulher com ternura acariciando-o.
O tempo passou veloz e já era Novembro. Na televisão a publicidade anunciava os novos brinquedos e Lúcia apaixonou-se por um conjunto da barbie. Todos os dias a mãe lhe explicava que não podia gastar cento e cinquenta euros numa barbie porque não tinham dinheiro. Nessa altura já ela sabia que o pai estava desempregado mas ela não entendia o alcance disso. Estava mal acostumada. O pai como sempre penalizava-se por não conseguir dar aos filhos aquilo que eles pediam e vivia numa angústia permanente. O João falou com a irmã e prometeu-lhe que se ela deixasse de pedir a barbie aos pais ele ia ajudá-la a conseguir comprar a boneca. Lúcia tinha uma fé inabalável no irmão e assim fez. 
João contou os trocos do mealheiro. Tinha doze euros. «Como vou arranjar dinheiro para a boneca?» Interrogou-se. A única forma era guardar o dinheiro do almoço. Passou a levar um lanche reforçado para a manhã e para a tarde, mas mesmo assim tinha fome, sobretudo nos dias em que praticava mais desporto. A situação mais dramática foi nos dias dos torneios de futebol: no primeiro dia ele desmaiou e teve que ir para a enfermaria. Nos outros dias roubou o lanche a alguns colegas. No último dia do torneio ele depois de jogar toda a manhã estava com uma fome danada. Entrou na sala e levou o lanche da tarde de dois colegas. Pedro o seu melhor amigo já tinha estranhado ele não ir almoçar, quando descobriu o  motivo prometeu não dizer nada porque ele lho havia pedido. Como não comia fruta Pedro trazia-a no bolso e dava-a ao amigo. Naquele dia ele viu o amigo a comer um lanche e adivinhou o que se tinha passado. Correu para a sala e tentou identificar a quem ele tinha retirado o lanche, na tentativa de o repor. No momento em que mexia na carteira do Lucas, um dos colegas mais quezilento, este entrou na sala, acompanhado de mais cinco colegas. Rapidamente se viu acusado de roubar o lanche do colega e de nada adiantou ele negar. A única forma de ele se salvar era denunciar o amigo e isso ele nunca faria. Assim sendo ficou com o estigma de ladrão, embora tenha pago ao colega um lanche para o compensar, o que foi visto com reparação suficiente por parte da escola. João quando soube do acontecido ficou martirizado. Ele não queria ser visto como ladrão, mas vivia atormentado por ter deixado o amigo ser acusado em nome dele.

No último dia de aulas, antes das férias de natal, o diretor de turma promoveu uma reflexão sobre o tema Natal tempo de perdoar. Foram vários os alunos que confessaram pequenas coisas que os professores ou os colegas perdoaram e foi ai que Lucas se levantou.
«Eu quero pedir desculpa ao Pedro por o ter acusado de roubar o meu lanche. Eu devia ter percebido que se ele o levou era porque precisava e evitado que ele tivesse sido exposto da forma que foi.»
Pedro agradeceu e aceitou o pedido de desculpas mas não tomou qualquer iniciativa. O Diretor de turma perguntou ao Pedro se ele não queria dizer nada ao Lucas, uma vez que este nunca tinha reconhecido que tinha retirado o lanche ao colega. Pedro ficou parado sem saber o que devia fazer. Não conseguia confessar publicamente que tinha roubado o lanche, quando isso não correspondia à verdade.
«Eu preciso de falar.» Disse o João.
«João, espera pela tua vez. Primeiro deixa o Pedro responder.» Disse o diretor.
«Fui eu que retirei o lanche.» Disse João.
A turma ficou em silêncio. Todos sabiam mais ou menos as dificuldades porque passava a família dele. O silêncio era sepulcral. João contou em detalhe o que o levou a roubar os lanches. Pediu desculpa a todos a quem tinha roubado lanches e depois elogiou Pedro pelo facto de o ter ajudado, trazendo-lhe a sobremesa todos os dias e pediu-lhe desculpa por o ter deixado ser acusado no seu lugar. A turma estava toda emocionada não só com o drama do João, mas sobretudo com a coragem do Pedro. Até o diretor estava com a lágrima no canto do olho. Subitamente teve uma intuição.
«Pedro, tu sabias que tinha sido o João a roubar o lanche?» Perguntou o diretor.
«Sim.» Respondeu Pedro.
Durante o silêncio que se seguiu João levantou-se e ajoelhou-se aos pés de Pedro pedindo-lhe perdão. Pedro agarrou-o pelos braços, levantou-o, abraçou-o e choraram no ombro um do outro.
Um por um, toda a turma, abraçou os dois. Quando a calma regressou à sala o diretor de turma tomou a palavra.
«Hoje vivemos aqui o verdadeiro espírito do Natal. Espero que nenhum de vocês esqueça o exemplo do Pedro. Espero também que tenhamos aprendido a prestar mais atenção às necessidades dos que nos rodeiam, pois essa necessidade pode levá-los a atos desesperados, muitas vezes em nome de causas nobres, como é o caso.»


Comentários

Mensagens populares deste blogue

O SEMÁFORO

O SEMÁFORO Na cidade do Porto, numa rua íngreme, como tantas outras, daquelas que parecem não ter fim, há-de encontrar-se um cruzamento de esquinas vincadas por serigrafias azuis, abertas sobre azulejos quadrados, encimadas por beirais negros de ardósias, que alinham, em escama, até ao cume e enfeitadas de peitoris de pedra, sobre os quais cai a guilhotina. Estreita e banal, sem razões para alguém perambular, esta rua, inaudita, é possuidora de um dispositivo extraordinário, mas conhecido de muito poucos: Um semáforo a pedal, que sobreviveu, ao contrário dos “primos”, tão em voga na década de sessenta, na América Latina. No início do século XX, o jovem engenheiro, François Mercier, de génio inventivo, mudou-se para o Porto. Apesar do fracasso em França e na capital, convenceu um autarca de que dispunha de um dispositivo elétrico e económico, bem capaz de regular o trânsito dos solípedes de carga, carroças, carros de bois a caleches, dos ilustres senhores. O autarca

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL

CARTAS DE AMOR - AMOR IMPOSSÍVEL As palavras não me ocorrem perante a imensidão do sentimento que me invade o peito. Digo-te aquilo que adivinhas pois os meus olhos e os meus gestos não o conseguem esconder. Amo-te! Amo-te desde o primeiro dia em que entrei na empresa e tu me abriste a porta. Os nossos olhares cruzaram-se e, por instantes, olhamo-nos sem pestanejar. Senti que tinha encontrado a minha alma gémea. O meu coração acelerou quando me estendeste a mão e te apresentas-te. Apenas uma semana depois soube que eras casada. Chorei a noite toda. Não conseguia aceitar que não fosses livre para poder aceitar o meu amor e retribuí-lo como eu tanto desejava. Desde esse dia vivo em conflito: amo-te e por isso quero estar a teu lado, mas não suporto estar a teu lado, sem poder manifestar-te o meu amor. Quero fugir dessa empresa, não quero mais ver-te se não te posso ter, mas não consigo suportar a ideia de não te ver todos os dias. Tu és o sol que ilumina o meu dia, mas és

O BILHETE

O BILHETE Com os cadernos debaixo do braço ele subiu a escadaria do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real. Vivia numa aldeia próxima e tinha vindo a pé. Tinha vários irmãos e como estavam todos a estudar, tinham de poupar em tudo o que era humanamente possível. Já estava com saudades das aulas! Era irónico que tal fosse possível pois os jovens preferem as férias. Não era o seu caso. Tinha vindo de Angola e, por falta de documentos, tinha ficado um ano sem estudar, trabalhando na quinta, ao lado do pai, enquanto os irmãos iam para as aulas. Estudar era, portanto, a parte fácil. Procurou a sala onde a sua turma tinha aulas: Ala este, piso zero, sala seis. Filipe era um aluno acima da média, mas a sua atitude era de grande humildade: esperava sempre encontrar alguém melhor que ele. Dado que tinha ficado um ano afastado da escola estava com alguma expectativa em relação à sua adaptação, mas confiante nas suas capacidades. Não tardou em destacar-se e no fim do primeiro tri