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AO ACASO


AO ACASO

Acabou de almoçar no restaurante do costume, mas tinha a sensação de estar perdida. Levantou-se e, de forma instintiva, levou a mão à bolsa retirando a carteira. Ficou a olhar para ela sem saber o que fazer.
«São oito euros e trinta e cinco cêntimos.» Disse o empregado.
Pagou. Arrumou a carteira e saiu para a rua. Os sítios eram-lhe familiares mas não conseguiria dizer onde estava. Caminhou ao acaso. Existiam duas pessoas dentro dela. Uma comandava os seus passos, como algo natural: uma recordação de um hábito, centenas de vezes repetido. A outra que descobria caminhos nunca antes percorridos, navegava pelas ondas da imaginação, buscando o inatingível, desejando o etéreo. Os sapatos palmilhavam a calçada em linha recta e de forma cadenciada. A imaginação estava em todo o lado ao mesmo tempo. «O que fazia ela ali?» Interrogou-se. Não era aquela a vida que tinha escolhido ela. Tinha-lhe sido “sugerida” pelos encontros e desencontros da própria vida. Nunca imaginara nem planeara casar-se ou ter filhos, mas vivia com o marido há vinte e oito anos e era mãe de duas raparigas e um rapaz. Na verdade já eram todos adultos. Ela queria ter sido piloto de aviões. Viajar pelo mundo inteiro. Ter todos os homens sem pertencer a nenhum. Talvez assim não tivesse aquele corpo. Sim, ser mãe tinha-a deformado. Essa era uma coisa que nunca tinha verdadeiramente ultrapassado. Mudou de direção. «Porque tinha seguido advocacia?» Não sabia. Não se lembrava de uma razão objetiva. Uma razão válida. Nem seque se lembrava de ter tomado essa decisão. Quando se apercebeu estava matriculada na Universidade Clássica de Lisboa. O curso, esse tinha sido fácil. Tinha terminado com dezassete valores. O Oriente… Sim, sempre desejara visitar o Oriente. Apesar de algumas vezes planeado nunca acontecera. Porquê? O dinheiro, os filhos, o tempo, ou mais propriamente a falta dele. Tudo razões válidas, mas completamente irrelevantes. «Os desejos eram para satisfazer, o seu bloqueio apenas gerava frustração!» Devia ser a regra da vida.
Sem se aperceber deu a volta ao quarteirão e estava de novo em frente ao restaurante. Ignorou-o. A sua mente tudo ignorava, pairava por cima do seu corpo, que seguia o caminho traçado pelo destino. Ou seria apenas o reflexo de hábitos passados? Atravessou a rua sem hesitar. Ao seu lado caminhavam outras pessoas. Não as conhecia nem procurara qualquer interação com elas. A mulher era uma ilha! Nem os sorrisos ou as piscadelas de olho a demoviam. Os olhos azuis e os cabelos loiros chamavam à atenção. Até o seu corpo, embora distante do que fora outrora, continuava apetecível ao fim de cinquenta anos. Era essa a mensagem dos olhares gulosos dos trintões que com ela se cruzavam. Porque é que as mulheres tinham de cuidar da casa e dos filhos? A verdade é que a maioria o dos homens eram um desastre a fazê-lo. Mas a prova de que isso podia mudar era o sucesso de alguns a desempenhar a tarefa. Era tudo uma questão de educação e prática. Veja-se o exemplo da culinária: a grande maioria dos chefes eram homens! 
A mente não parava! O que era bom era ganhar o euromilhões. Para isso era necessário jogar, coisa que ela não fazia. Esquece, isso não ia trazer a felicidade. Mas ajudava. Parecia um diálogo. Pergunta; resposta. Argumento; contra-argumento. Hum…! A felicidade… o que me fazia feliz era estar do outro lado do mundo, sem preocupações, nem prisões! Bom podia ter os filhos comigo… e o Artur. Bolas! Afinal quero fugir da prisão mas levo as grilhetas comigo!
O encontro com a árvore foi doloroso. No último instante conseguiu desviar o rosto. Os seios absorveram a pancada, o que a tornou bem dolorosa. Ia tão distraída, com os seus pensamentos, que não viu a pedra que sobressaía da calçada. Foi a morte do artista! Foi como se tivesse despertado de um sonho. Só então se apercebeu de quão abstraída estava da realidade. Estava à porta do escritório. Tirou o cartão de acesso e entrou na rotina do dia-a-dia.

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