A PRIMA
Tinha nascido em Portugal, mas o sangue
africano parecia correr-lhes nas veias. O ritmo e o linguajar eram marcados
pelos doze anos que tinha vivido sob o sol dos trópicos. O regresso foi
turbulento, quer pela alteração da conjuntura política, quer pela resistência
mental em adaptar-se à vida simples da aldeia. Era o mais velho de cinco
irmãos, entre os quais se encontrava uma rapariga: a caçula.
O pai, um antigo militar na reforma,
retomou a vida de agricultor e ensinou o ofício aos filhos. Não era uma vida
fácil, mas apesar de estarem todos a estudar, tinham de colaborar nas tarefas
do campo. Essa era a forma que o pai encontrara para complementar a reforma que,
de outra forma, não lhe permitiria dar aos filhos a educação que desejava
proporcionar-lhes.
A primavera tinha feito uma entrada
muito tímida, mas naquele domingo o tempo estava muito agradável. Jorge pegou
na bicicleta comum, de que os irmãos tinham prescindido, nesse dia e decidiu ir
até ao baile. Os mordomos, organizadores da festa da aldeia, em honra de São
Roque, tinham começado a organizar bailes no mês de outubro, do ano anterior e
ele não tinha faltado a nenhum. Gostava de dançar, mas sobretudo gostava de ver
Isabel a dançar. Era uma morena bonita e dona de um corpo esbelto. Infelizmente
para ele ela dançava sempre com a Rita, uma prima que não possuía os mesmos
dotes. Jorge já tinha, por várias vezes tentado interromper o par, mas elas
raramente o consentiam e, em todo o caso, só acontecia se se apresentassem dois
jovens a separá-las, para poderem continuar a dançar: eram duas bailarinas
inveteradas.
O
baile era um evento típico dos anos setenta, de uma aldeia do norte de
Portugal. Os organizadores contratavam um Piqué, a forma pré-histórica de um
disco jokey, que passava música popular portuguesa e de grupos brasileiros e
africanos, entre as duas da tarde e as nove da noite. Durante a tarde, enquanto
o baile decorria, eram vários os eventos que tinham lugar. Os mordomos
instalavam uma barraca que vendia petiscos e bebidas, durante toda a tarde para
matar a sede e a fome aos dançantes, ou apenas para juntar os homens que
gostavam de passar a tarde à volta do garrafão, de um petisco e de uma boa
conversa. Em paralelo, organizava-se o jogo da malha e do bicho, de forma a
tornar o encontro o mais universal possível. Era importante que o número de
pessoas fosse elevado para aumentar o valor da coleta para a festa.
Outra
das atividades típicas destes bailaricos eram os leilões. Os mordomos e outros
populares, ofereciam artigos para serem leiloados que podiam ir desde um saco
de batatas, a uma bola de carne, um garrafão de vinho ou um salpicão. Nesse
caso o ofertante tratava de se assegurar que a sua oferta era arrematada por um
valor interessante. Isso criava uma competição saudável, que fazia com que o
valor por que os artigos eram arrematados não tivesse qualquer relação com o
valor real dos mesmos. Naturalmente que a arte do arrematador era muito
importante para o sucesso. Era ele que tinha que identificar, entre o público,
as pessoas mais disponíveis para pagar o melhor peço por determinado artigo e
depois saber espicaçar o seu orgulho, levando-os a pagar um valor que, quando
analisado de um ponto de vista racional, era um autêntico disparate.
Mas
o artigo que gerava a disputa mais acesa eram os ramos. Tratava-se de um artigo
para usar ao peito, feito de papel colorido e sem qualquer valor, mas que
desempenhava o papel de uma declaração de amor. Por regra apareciam ao longo da
tarde e de forma espaçada, aproveitando a presença da juventude, quer fossem
descomprometidos, namorados ou casados. A ideia era os rapazes oferecerem às
raparigas um ramo como prova do seu amor ou como um pedido de namoro. Os jovens
mais tímidos aproveitavam muitas vezes essa abordagem para ver a recetividade
de determinada rapariga a uma aproximação. Por regra, se ela aceitava o ramo
estava disponível para namorar com o rapaz que lho tinha oferecido. Como cada
ramo podia ser o último e havia sempre mais do que um interessado, o valor por
que era arrematado, tendia a ser elevado. Naturalmente que tudo isto era feito
de forma muito pública o que também podia ser embaraçoso, para os envolvidos,
mas era a comunidade a funcionar como tal.
Jorge
pedalava a bicicleta com vivacidade e não se apercebeu da aproximação do grupo.
Vindas de uma rua transversal, as jovens emergiram, na estrada de alcatrão,
como um afluente desagua num rio: de forma tempestiva.
«Jorge!»
O
grito vinha das suas costas o que lhe causou alguma estranheza, pois não tinha
passado por ninguém. Parou e voltou-se para trás. Elas corriam na sua direção, de
forma desordenada.
«Levas-me na tua bicicleta?»
Era
Fátima quem fazia a pergunta. Ela como várias outras jovens da aldeia bem
gostariam de namorar com ele, mas ele tinha outros interesses. A fixação com
Isabel era tão grande que tinha terminado com a namorada, que era sua colega na
escola filha e de uma família de médicos, que viviam na cidade. Na aldeia e, de
forma geral no Norte de Portugal, nessa época, a família a que a namorada
pertencia era muito importante. Fátima não estudava nem pertencia a uma família
relevante, mas apesar disso, na escala social estava acima de Isabel, mas era a
segunda que povoava os seus sonhos. A
bicicleta estava equipada com um suporte para levar cargas, sobre a roda
traseira e ele estava acostumado a levar a irmã para a missa, por isso não se
fez rogado. Apesar de não estar interessado na moça, gostava de a sentir colada
nas suas costas, com os braços à volta da cintura. Ela agarrou-se a ele e fez
questão de o apertar mais do que era necessário. Com as mãos acariciou-lhe a
cintura, embora de forma quase impercetível e os seios, intumescidos,
anunciaram a sua presença. Jorge gostou e a evidência física tornou-se óbvia.
A
família de Jorge estava no topo da hierarquia da aldeia e Jorge era um dos
jovens mais pretendidos, pois, para além disso, era fisicamente muito
interessante e dos poucos que tinha continuado os estudos depois do nono ano de
escolaridade. A sua chegada ao recinto do baile fez virar todas as cabeças. Ele
estava habituado a ser notado, mas não esperava aquela reação. Subitamente
percebeu. Ele trazia a Fátima colada a si como uma lapa. A associação foi
imediata: eles eram namorados. Primeiro ficou ligeiramente atrapalhado, depois
encolheu os ombros e rodopiou com ela pelo recinto, ao som de um corridinho.
Quando o grupo de amigas dela chegou juntou-se a eles e Jorge aproveitou para
os deixar, embora contra a vontade de Fátima.
«Então tens nova namorada?»
O
grupo e jovens solteiros, ao qual se tinha juntado, estava morto de
curiosidade. Alguns deles bem gostariam de estar no lugar dele e foi até com
alívio que receberam a notícia.
«Eu apenas dei boleia à Fátima. O meu
interesse está noutro lado.»
Apesar
da curiosidade que todos demonstraram ele
não disse mais nada sobre o assunto. Desde que tinha chegado que estava de olho
em Isabel que, como de costume dançava com a prima. A agitação delas não lhe passou
despercebida. Elas não tiram os olhos dele enquanto dançava, cochichando no
ouvido uma da outra, com uma expressão que não parecia muito feliz. Ele já
tinha trocado vários olhares com elas, mas nunca tinha percebido muito bem se
Isabel lhe correspondia no sentimento, até porque era a prima quem mais olhava
para ele. Aparentemente tinha provocado algum ciúme, talvez estivesse com
sorte. Tinha que ir convidá-la para dançar. Nas músicas seguintes perdeu a
oportunidade para um jovem que estava mais perto do que ele. Tinha de se
aproximar das duas.
Entretanto,
quando se dirigia para o outro lado do recinto foi abordado por um dos mordomos
que precisava de falar com ele sobre a peça de teatro que Jorge estava a
ensaiar com o grupo e que seria representada no dia da festa da catequese. Era
preciso agendar a sua apresentação nas aldeias vizinhas, pois a comissão estava
interessada na receita que reverteria para eles. A conversa demorou algum tempo
e quando regressou ao recinto as jovens tinham desaparecido. Não querendo
denunciar o seu interesse, não perguntou a ninguém por elas. Elas tinham ido
embora e ele decidiu divertir-se. Dançou com várias jovens pois também ele era
um excelente bailarino. Quando se ouviu Roberto Leal, ele brilhou na pista exibindo
a ginga africana num ritmo brasileiro.
Jorge
aproveitou o ensejo para brincar com as jovens segredando-lhe pequenas larachas
que as divertiam. Foram momentos interessantes em que ele utilizou todo o seu
charme para deixar algumas jovens a sonhar, embora a maioria soubesse que tudo
não passava de diversão, mas a verdade é que elas também estavam ali para se
divertir.
A
forma como se apercebeu da presença delas foi um pouco dolorosa. Ao rodopiar
pelo recinto sentiu um ombro espetar-se nas suas costas, sendo projetado para a
frente. Depois de recuperar o equilíbrio, virou-se para ver que lhe tinha feito
a maldade. Isabel rodopiava com a prima afastando-se dele com um sorriso
trocista pendurado nos lábios. Elas estavam de volta. Ainda antes da música terminar
elas pararam e abandonaram o recinto, não sem antes o olharem de forma
significativa. Jorge não percebeu muito bem o que se estava a passar e
continuou a dançar. Elas não
reapareceram. Ele dançou mais um par de músicas e depois decidiu também abandonar
o recinto. Elas tinham seguido pela estrada que conduzia à casa dele e ele
tinha a secreta esperança de as encontrar pelo caminho. Montou na bicicleta e
partiu.
Quando
já tinha perdido a esperança de as encontrar, depois de completar uma curva da
estrada, deu de caras com elas. Não foram necessárias palavras para ele
perceber que devia parar junto delas, que pareciam aguardar por ele.
«Olá.» Disse, Jorge.
Elas
riram. Aquele riso nervoso das raparigas quando querem muito dizer ou fazer uma
coisa, mas não têm coragem. Foi Jorge quem quebrou o gelo.
«Então cansaram-se de dançar?»
«Nós nunca nos cansamos de dançar.» Respondeu
Isabel.
«Então porque vieram embora?»
Era
a deixa para elas. Isabel tomou-a sem hesitar.
«A minha prima quer falar contigo.»
Jorge
sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés. Ele não queria nada com a prima. Ele
queria mesmo era estar com Isabel.
«E tu não tens nada para me dizer?»
«Sim. Estou comprometida.»
«Nunca te vi com ninguém, como é isso
possível?»
«Ele trabalha em Lisboa, só vem cá nas
férias!»
Jorge
não disse mais nada, nem era preciso. A desilusão estampada no rosto era mais
eloquente que o mais perfeito dos discursos. O seu mundo tinha sido virado do
avesso. Ele não esperava nem desejava aquele desfecho. Primeiro porque gostava dela,
depois porque não estava habituado a ser preterido. As primas perceberam o que
lhe ia na alma e o ambiente ficou um pouco estranho. Jorge, sem dizer uma
palavra, montou a bicicleta e partiu, enquanto a prima chorava no ombro da
Isabel.
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