A
FLOR
Ainda
era inverno. Lá fora o vento soprava, frio, intenso, com furor. A altitude do
local proporcionava uma vista de cortar o fôlego e uma humidade que fazia doer
os ossos. Protegido pela fina camada de terra, o tubérculo latejava. Dentro dele
a Flor agitava-se com impaciência: queria conhecer o mundo! Ainda a primavera
mal tinha começado e a Flor esticou o primeiro braço tentando colocar a mão de
fora. Como quem se espreguiça, esticou os dois braços, depois o corpo todo e o
embrião brotou. Os dias estavam mais amenos e cada vez maiores, mas a chuva e o
frio continuavam a marcar a sua presença. O sol, esse, espreitava por entre as
nuvens. Aproveitava todas as oportunidades, todos os espaços, mas a sua
presença era tímida. Quando perfurou a fina camada de terra o embrião
encolheu-se com o choque. «Que frio… e esta chuva!» Reclamou. Era tempo de se
adaptar. Afinal o mundo não era tão acolhedor como havia pensado. Lentamente, adquiriu
a cor verde e foi-se fortalecendo antes de expor a sua haste ao vento, que
tentava constantemente vergá-la. Foram tempos despreocupados mas difíceis: ora
ventava, ora chovia, ora fazia sol e os dias não paravam de crescer. Estranho e
excitante era todos os dias aprender uma coisa nova.
Foi
pela duração dos dias que percebeu que era altura de deixar de ser rebento para
se tornar numa flor. A fase do crescimento havia terminado. Era altura de mostrar
ao mundo a sua beleza, feminina e caprichosa! Encostada a uma pequena pedra, na
beira do talude, que se elevava sobre a encosta, olhava para ela com inveja. O
seu sonho era descer o talude e ir ver o mundo. Queria conviver com as outras
flores, mas ela era uma flor de jardim. Intranquila e insatisfeita com o seu
destino apenas conseguia invejar as flores do prado e da floresta.
O
verão tardava em chegar e, embora fosse tempo dele, os elementos conjugavam-se
para desmentir essa realidade. Chegou Agosto e com ele foi-se a chuva e o sol
iniciou o seu reinado. As flores do campo, sem os cuidados e atenção das do
jardim, começaram a murchar, mas ainda assim a Flor invejava o tom bronzeado
que estas exibiam, como se tivessem ido passar férias a um lugar paradisíaco.
Chegou o Outono, mas o calor intenso desmentia essa realidade. O prado e a floresta
estavam loiros e secos, como uma seara madura. As flores do campo e da floresta
viviam curvadas e ofegantes, tendo sido várias as que não sobreviveram. A Flor,
no conforto do seu poiso, olhava para tudo com um sentimento de tristeza. O ímpeto
de correr o mundo tinha diminuído, mas o sonho de liberdade não tinha morrido.
Aquela inquietação e uma pequena dose de inveja, corroíam-lhe as entranhas.
Os
gritos e lamentos acordaram-na do sono vespertino. A sesta. Olhou à sua volta
com os olhos esbugalhados. As chamas avançavam vertiginosamente pela floresta e
prado. Os gritos das flores ecoavam-lhe por entre as pétalas. Instintivamente
encolheu-se e tapou os olhos. Não podia ver. Não queria ver o mar de chamas que
devoravam tudo à sua volta. O calor era insuportável! O jardineiro correu, zeloso,
a lançar água, protegendo o jardim. Refrescada, a flor inspirou profundamente e
olhou à sua volta e para si própria. Estava envelhecida e brevemente perderia
as pétalas e o seu caule murcharia, recolhendo ao tubérculo onde nova vida
seria gerada. Apenas nesse momento se deu conta de que em vez de ter vivido a
vida possível, tinha feito os possíveis para viver uma vida impossível. A vida
passou por si. O tempo passou por si. Ela apenas tinha memórias de querer viver
outra vida. Chorou. Lamentou o tempo perdido, mas o tempo é inexorável e nunca volta
para trás. «Se eu soubesse…» Disse a Flor. Ninguém sabe. Alguns vivem
aprendendo, outros nem “vivem” nem aprendem!
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