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OS SONHOS




OS SONHOS

Quase sem fôlego corro na escuridão. Um túnel de negridão adensa-se à minha volta. Agita-se, comprime-me, persegue-me, estendendo as garras para me aprisionar. A instantes flashes de luz invadem-me os sentidos. Não os vejo, nem sequer os sinto, mas pressinto-os. Atrás de mim, a escuridão toma a forma de um monstro que me persegue. Urros horrendos ecoam nos meus ouvidos. O chão treme e um bafo quente atinge-me a nuca, num choque térmico que me faz estremecer. Instintivamente salto em frente. Quero sair dali. Tenho que sair dali! O túnel parece não ter fim… «Talvez haja uma saída lateral!» penso. Mudo de direção, passando junto às garras do monstro, que apenas por sorte não me abocanha. O monstro continua no meu encalço e sinto que me toca suavemente nas costas. «Está quase a apanhar-me» penso. Esbracejo e peço às minhas pernas mais um esforço. Na tentativa de escapar ao monstro, viro repentinamente. O choque é brutal!

A cabeçada na mesinha de cabeceira faz-me despertar, acordando também a minha companheira de um sono profundo e um ressonar violento. Era ela que respirava no meu pescoço! Esfrego os olhos e baixo a persiana, para evitar que as luzes dos automóveis ocasionais entre no quarto. Afinal tudo não passou de um sonho!

Volto para o vale dos lençóis e entrego-me mais uma vez nos braços de Morfeu. Quando fecho os olhos percebo que estou num prado verdejante a apanhar margaridas num dia de primavera. Pachorrentos, os rebanhos espalham-se pela encosta enchendo-a de novelos de lã. O cão pastor corre à volta das ovelhas, mantendo o rebanho unido, não vá o lobo mau apanhar as tresmalhadas. O Céu azul claro tem uma luminosidade especial e as pequenas manchas bancas das nuvens que o povoam aumentam a sua beleza. O pastor, encostado ao cajado, ajeita o capuz para se proteger melhor do ar primaveril, que traz consigo ainda o gelo do inverno. «É tudo tão real! Será um sonho?» interrogo-me.  Ao fundo ouve-se um silvo que parece o apito de um comboio. Estico o pescoço e coloco-me na ponta dos pés, para ver onde é a linha. Quando o ruído aumenta acordo. Afinal era o despertador!




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