A JORNALISTA | PARTE II |CAPÍTULO 11 – Alarme Canino
Perestrelo tinha uns exames para fazer. Como tinham de ser
feitos em jejum, levantou-se cedo, passou por casa, para a sua higiene pessoal
e às oito e trinta já estava despachado. Sentado no café, com o pequeno almoço
à sua frente, olhou para o telemóvel pela sétima vez. Não tinha querido
telefonar a Anabela por ainda ser muito cedo. Na verdade estava à espera que
ela ligasse ou lhe enviasse uma mensagem. Ela conhecia a razão da ausência dele
pois tinha-lhe deixado um bilhete, com uma mensagem carinhosa, mas não muito
lamechas. O seu pensamento voou para a noite anterior. Tinham que falar sobre
eles. Era importante encontrarem um equilíbrio entre a relação profissional e a
pessoal. Nada de complicado, apenas precisavam de definir algumas regras. O som
do telefone sobressaltou-o!
«Bom dia!» Disse ele, com entusiasmo e uma voz doce, depois de
ter visto o nome de Anabela no ecrã.
«Bom dia. Já estás despachado?» O tom da voz dela era suave mas
menos entusiástico que o dele.
«Sim.»
«Onde nos encontramos? Eu quero ir contigo à morada que
trouxeste da Austrália.»
Combinaram encontrar-se no café onde ele estava, porque ficava
perto da casa dela e no percurso para o local onde iam. Quando ela chegou
cumprimentaram-se com cerimónia. A noite anterior estava presente mas não
impediu que tratassem dos assuntos profissionais durante o percurso.
Mónica Fonseca estava a caminho do escritório quando recebeu o
telefonema. O seu superior comunicou-lhe que iria ficar responsável pela
investigação de mais um homicídio.
«O número de casos que tenho torna difícil, para não dizer
impossível, tratar de mais um.»
«Isso é temporário. O caso do Chef Walker tem ser encerrado
dentro de dias, o que te vai deixar liberta para o novo caso.»
Mónica não respondeu nada. Ela percebia que a nomeação para o
novo caso era mais uma forma de pressão para encerrar o anterior. Dirigiu-se
para a morada indicada. Iria tomar conta do caso e depois logo veria como
lidava com o excesso.
O cenário que encontrou era chocante, desagradável e
incomodativo. A mulher não deveria passar muito dos quarenta. Era uma mulher
alta e forte. Apesar da lividez do cadáver eram visíveis os traços de um rosto
perfeito. Tinha sido uma mulher com chame e carisma, embora sem ser bonita. A
garganta apresentava um corte profundo e o corpo jazia sobre um mar de sangue.
Apesar do espetáculo macabro o pior de tudo era o cheiro. O corpo já tinha
entrado em decomposição...
Tudo tinha começado com uma denúncia feita há dois dias. O
vizinho de cima queixava-se dos gemidos do cão da vizinha de baixo, que o tinha
ignorado todas as vezes que tinha ido tocar-lhe à porta. Não era a primeira vez
que ele se queixava da vizinha e as razões porque o fazia eram muitas vezes
questionáveis: a queixa foi ignorada. No entanto, no dia anterior o vizinho da
frente, com quem a senhora tinha uma boa relação, reportou à polícia que fazia
três dias não via a vizinha e esta não atendia o telefone nem a campainha da
porta. Acrescia que o apartamento tinha começado a emanar um cheiro
desagradável. A senhora vivia sozinha e podia ter falecido em casa. A polícia
tinha aparecido às oito da manhã e quando forçaram a porta depararam-se com o
cadáver. Recolhidos todos os depoimentos e entregue a cena do crime aos
técnicos forenses, Mónica decidiu abandonar o local.
Perestrelo não queria dar nas vistas por isso estacionou o carro
um pouco afastado. Preferia aproximar-se do local a pé. Isso permitia-lhe
conhecer melhor as redondezas e identificar se existia mais alguém interessado
na morada. Perestrelo não era só detetive, era um detetive cauteloso.
Aproximaram-se do local de mão dada. Para além do gesto lhes dar prazer o
disfarce de um casal a passear era perfeito. Quando avistaram a morada foram
surpreendidos pelo aparato policial. A entrada no prédio foi-lhes barrada.
Identificaram-se e disseram ao que vinham. Nessa altura tomaram conhecimento da
tragédia. «Que coincidência! A mulher faleceu no dia em que liguei à Anabela.
Meu Deus, o escritório dela está sob escuta!» Pensou. Perestrelo pegou em Anabela, pelo braço e afastaram-se. De costas voltadas para a entrada, ele
comunicou-lhe as suas suspeitas.
Mónica mal colocou o pé na rua deu de caras com eles, embora
estes não se tivessem apercebido da sua presença. «O que estão estes dois aqui
a fazer?» Interrogou-se. Uma espécie de sexto sentido colocou-a em alerta.
Existia uma ligação entre os casos! «Lá estou eu a imaginar coisas. O melhor é
falar com eles». Pensou.
«Bom dia! Não estava à espera de os encontrar aqui. Que grande
coincidência.»
Eles reconheceram a voz da CSIC e voltaram-se com a surpresa
estampada no rosto. Entretanto o sub chefe da polícia, que tinha estado a falar
com eles, aproximou-se e pôs Mónica ao corrente de tudo.
«Muito interessante. Qual o motivo da vossa visita?»
Perestrelo interrogou Anabela com o olhar.
«O motivo da nossa visita é profissional, mas a polícia não tem
nada a ver com isso.» Disse Anabela.
«Considerando que a pessoa que vinham visitar está morta isso
torna a vossa relação profissional com ela motivo de interesse da polícia. Mas
eu preferia não ir por aí.»
«Muito bem. Nós podemos colaborar com a polícia partilhado a
informação que temos, mas queremos visitar o local do crime antes da remoção do
corpo.»
«A polícia não tem de colaborar convosco, mas vocês são obrigados
a colaborar connosco, senão serão acusados de obstrução à justiça.» Disse
Mónica, com um sorriso irónico.
«Isso não se aplica numa situação em que representamos o arguido.
Nesse caso temos o direito de reter toda e qualquer informação.» Disse Anabela,
retribuindo o sorriso.
Mónica sentiu um estremecimento. O seu pressentimento estava
certo. Ligou para o chefe e obteve autorização para chegar a um acordo com a advogada.
Perante a informação recebida Mónica Fonseca decidiu voltar ao
local do crime. Advogada e detetive acompanharam-na, embora não tivessem
autorização para mexer em nada. O apartamento tinha um quarto e uma sala, para
além da cozinha e da casa de banho. O apartamento foi revirado, numa busca
desenfreada. Enquanto os peritos, numa verdadeira azáfama, se envolviam na
busca, Perestrelo dedicou a sua atenção à estante, repleta de obras. Os livros
estavam alinhados numa perfeita simetria. Organizados por autor, estavam com as
lombadas perfeitamente alinhadas e colocados por ordem decrescente de altura,
da esquerda, para a direita. Parou diante das obras de Eça de Queiroz. Algo não
batia certo. Aquele livro alto e esguio estava fora do sítio. Era tão fino que
não tinha o título na lombada. Não resistiu à curiosidade e chamou à atenção de
Mónica para o facto.
Mónica retirou o livro da estante. Era um conto do Eça com o
título: Singularidades de uma rapariga
loura. Folheou-o. Não encontrou nada de espacial a não se uma anotação na
última pagina:
«Isto diz-lhes alguma coisa?» Perguntou Mónica, mostrando-lhes a
anotação:
“Esta loura
era ladra, mas não era assassina!”
Perestrelo viu a anotação, guardou mentalmente a sua imagem e
encolheu os ombros.
Quando saíram dali Anabela não se conteve.
«A pista deixada no conto de Eça é óbvia!»
«Eu não encontrei nenhuma ligação. Queres partilhar comigo a
conclusão a que chegaste?»
«No conto existe uma loira que é ladra e no fim perde tudo
devido a isso. Quem escreveu aquela pista quer dizer-nos que quem assassinou a
mulher foi uma loira.»
«É bem visto. Pode ser essa a ligação ou pode ser alguém a
querer que façamos essa ligação.»
«Tens razão, mas não custa nada averiguar. Podias tentar falar
com os vizinhos e ver se alguém viu uma loira no prédio, no dia em que a
senhora morreu.»
Perestrelo decidiu voltar ao local apenas no dia seguinte.
Queria passar desaparecido e isso não era possível com o aparato policial que
ali se encontrava. Efetivamente uma jovem loira tinha sido vista a entrar no
edifício no dia fatídico, já ao final da tarde. Tinha a prova de que
necessitava. Quando regressava ao carro passou em frente ao cabeleireiro da
esquina e a dona, uma ruiva provocante, estava no exterior a fumar. Trocaram
algumas palavras e ele aproveitou para perceber se ela sabia alguma coisa sobre
a loira.
«A mulher que refere tinha tanto de loira como eu. O que ela
tinha era uma bela cabeleira. Aliás eu estava a estacionar lá atrás quando ela
chegou. Vi-a colocar a cabeleira. Tratava-se de uma morena de raça mista. Deve
ter um progenitor europeu e outro oriental.»
Perestrelo sorriu mais para si do que para a ruiva. Esboçou um
agradecimento e acenando um adeus partiu.
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