OS TRÊS MASTINS
Apesar de ainda ser
Maio, o calor de Junho anunciava a sua presença e a natureza regia em
conformidade. As videiras, viçosas, exibiam os seus pâmpanos (pampos, em
linguagem local): eram como longos braços, estendidos, procurando alcançar o
infinito! O vento brincava com eles, esgarçando-os com a maior das facilidades.
Era necessário apertá-los junto ao tronco, para evitar a desgraça. O vermelho
das cerejas cintilava por entre a folhagem, convidando os melros a
deliciarem-se. Era a primeira fruta do ano! A passarada festejava, com o seu
chilreio, o acontecimento da vida: o aparecimento das crias. Esvoaçavam por
todo o lado buscando alimento para si e para os seus. Assim era a vida, na pequena aldeia do norte
do país.
O
ancião, de costas ligeiramente curvadas pelos anos, avançava com uma rapidez
admirável para a sua idade: Era um jovem de oitenta e quatro anos! Com o molho
de junco preso à cintura com um elástico, avançou para as videiras, que
bordejavam a propriedade, com determinação. Os pâmpanos tinham crescido muito
na última semana e ele quase não lhes dava vazão. O vento já tinha esgarçado
uns quantos. Apesar da idade trabalhava de sol a sol. Tinha que fazer tudo
sozinho! Os filhos eram muitos mas nenhum tinha ficado na agricultura e a
maioria nem sequer vivia perto. Tinham partido para a cidade em busca de vidas
mais fáceis. Sabe Deus aquilo que tinham encontrado. A sociedade, nos dias de
hoje, não proporciona vida fácil a ninguém, seja qual for o nível social ou o
tipo de emprego.
«É a vida!» Diz
o povo.
Chegou-se ao bardo
de videiras, que faziam extrema com o terreno vizinho e iniciou a tarefa. A
rapidez com que fazia o atilho era admirável. Resultava de um saber de
experiência feita. Um conhecimento de muitos anos, repetindo a mesma tarefa,
vezes sem conta. A execução estava de tal forma interiorizada que enquanto as
mãos trabalhavam, em piloto automático, a mente viajava. Fazia e desfazia
negócios, definia estratégias de governação para o país ou desenhava impérios,
que poderiam dominar o mundo. Tudo isso intercalado com coisas simples como: o
que seria o almoço, preparado, com amor, pela esposa, uma conversa sobre
política, que queria ter com o compadre ou os assuntos da agenda da próxima
reunião da comissão fabriqueira, à qual presidia. Francisco era um homem sem
grande instrução, tinha a quarta classe de adultos, mas era possuidor de um grande
conhecimento. Lia muito e tinha uma memória notável!
Estava tão
absorvido que só reparou nos cães quando eles saltaram para a frente, irrompendo
num ladrar furioso, ao mesmo tempo que colocavam as patas dianteiras quase no
topo do muro. Os cães estavam presos numa propriedade que ficava a um nível
inferior, mas a corrente permitia-lhes chegar ao muro e lançar-se sobre este tentando galgá-lo.
Por precaução verificou o tamanho e resistência das correntes. Os cães nunca
lhe poderiam chegar aos pés, mas isso não os impedia de tentar.
Eram
três cães negros, de raça indefinida mas corpulentos, cujo ladrar o incomodava,
pareciam três mastins. Francisco tinha de se debruçar sobre o muro para agarrar os pâmpanos que cresciam do outro lado e os amarrar e os cães ladravam mesmo por baixo dele. Começava a ficar irritado com o barulho. O intenso latir era alternado pelo
rosnar furioso e isso ainda o incomodava mais. «Vou
cantar alguma coisa para ver se eles se calam.» Pensou. Ele gostava bastante de
cantar o que o tinha levado a fazer parte do grupo coral da igreja. Começou a
cantar a primeira música popular que lhe veio à memória e a reação dos mastins
foi violenta. Desataram a ladrar de forma ainda mais furiosa, como se a
cantoria tivesse sido uma provocação. O ancião achou o facto estranho e decidiu
mudar de música. O cântico de entrada para a celebração eucarística foi o que
lhe veio à memória. “Que alegria quando me disseram vamos para a casa do Senhor...”
Cantou. Os mastins calaram-se de imediato. Francisco observou-os. Eles tinham
colocado as quatros patas no chão e lançavam olhares para cima como se algo os
impedisse de colocar as patas no muro e ladrar. «Que estranho!» Pensou. Quando
terminou o cântico os cães recomeçaram a ladrar embora com menos vivacidade.
Ele começou a cantar o hino de Vila Real. A reação dos mastins foi a mesma de
anteriormente: os animais tinham-se sentido provocados. Aquilo era estranho.
Era mesmo muito estranho. Um pensamento assaltou-lhe a mente e começou a cantar
outra música religiosa. Os mastins, como que por magia, emudeceram. Assumiram
uma atitude de subserviência contrariada, mostrando os dentes naquilo que
parecia ser um sorriso de quem é obrigado a silenciar-se contra a sua vontade.
O canto terminou e, sem qualquer intervalo, os cães voltaram a ladrar. Quando
Francisco cantava algo mundano eles ladravam de forma mais furiosa ainda e
remetiam-se ao silêncio quando ele entoava cânticos religiosos. Isto repetiu-se,
de forma sistemática, durante todo o tempo em que esteve a trabalhar no bardo
que servia de extremo da propriedade.
Francisco sendo um homem religioso ficou impressionado e não
buscou qualquer outra interpretação para o facto. Os mastins deixavam de o
incomodar sempre que ele invocava o nome de Deus através dos cânticos e
ganhavam liberdade sempre que ele optava por cânticos mundanos. Não se atrevia
a classificar o facto como um milagre, mas estava convencido da intervenção
divina.
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