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A TATUAGEM



A TATUAGEM

Frederica estava impaciente. Com a mala a tiracolo gesticulava em direção às duas amigas pedindo-lhes que se despachassem. Olhou para a porta de vidro e verificou a sua imagem. Ajeitou o cabelo e espreitou o estado da maquilhagem. Sorriu. Estava tudo perfeito. Passou as mãos pela cintura como que alisando uma dobra imaginária nas calças. Sorriu mais uma vez satisfeita com a sua imagem. Era uma jovem elegante e com um charme que dispensava a beleza que não possuía.
Eram as três finalistas do curso de farmácia e os amigos, ao vê-las passar, costumavam dizer que o jardim se passeava pela avenida.
«Já estamos atrasadas.» Disse Frederica, num tom de censura.
«Não faz mal. Vamos diretos à faculdade de direito em vez de dar a volta pela estrada.» Disse uma.
«Isso é perigoso, sobretudo porque já anoiteceu.» Retorquiu Frederica.
«Não sejas maricas. Vamos embora.» Disse outra.
Elas apressaram o passo deixando Frederica para trás.
«Esperem por mim. Não se esqueçam que estou de saltos altos e não de ténis!»
Elas voltaram-se e desataram à gargalhada ao ver a figura dela a tentar correr, em cima de um salto de quinze centímetros. Depois seguiram as três o mais depressa que podiam. O caminho era um carreiro ladeado de mato alto, onde mal cabiam as três. Frederica sentia-se desconfortável. Não lhe saída da cabeça o caso da colega da residência que tinha sido violada quando atravessava o espaço entre o ISCTE e a Faculdade de Direito. Era exatamente o caminho que estavam a fazer. A única diferença residia no fato da amiga ter feito o trajeto sozinha.
Quando o avistaram estavam mais ou menos a meio caminho. Àquela hora não passava ali ninguém e mesmo que gritassem ninguém as ouviria. Ele aproximou-se rapidamente delas, exibindo o sexo, completamente fora da braguilha. As colegas desataram a correr sem pensar duas vezes. Ela atrapalhou-se com o sapatos e quando se lembrou de os descalçar já ele estava ao pé dela. Exibindo uma navalha de ponta e mola ele disse:
«Se não queres que te faça mal fica quieta.»
Ela olhou para o sexo dele erecto, exibindo-se em toda a sua plenitude. A visão provocou-lhe sentimentos mistos. Tinha nojo daquela situação mas não conseguiu evitar de ficar excitada. «isto é uma estupidez!» Pensou. Tinha ficado momentaneamente paralisada com aquela visão. Reagiu. O momento de inação acabou por lhe proporcionar a calma suficiente para encontrar uma saída.
«O que queres?» Perguntou ela.
«Apenas quero que me vejas masturbar. Se quiseres podes tocar-lhe, mas não te obrigarei a isso.»
Aquilo era muito estranho. Pelo menos ele não queria contacto com ela, o que era bom. Apesar disso, era desagradável ser forçada a ficar ali a ver a cena.
«Tudo bem. Se baixares as calças prometo que, para além de ver, te toco.»
Ele tinha uma máscara de esqui, mas mesmo assim o sorriso de satisfação foi visível. O sexo dele pareceu dar saltos de alegria. «As minhas palavras devem mesmo tê-lo excitado!» Pensou Frederica. Ele guardou a navalha e baixou as calças até quase aos joelhos. Ela hesitou uns segundos e depois baixou-se. Ele nem queria acreditar naquilo que estava a ver. Nem nos seus melhores sonhos teria esperado que uma mulher daquelas se dispusesse a satisfazê-lo. De forma lenta ela baixou-lhes as calças e a roupa interior até aos tornozelos. Aquilo pareceu-lhe completamente desnecessário mas estava tão entusiasmado que nem raciocinou. Sem que nada o fizesse prever, ela levantou-se, tirou os sapatos e desatou a correr. Ele ainda estendeu a mão para a agarrar, mas as calças nos tornozelos impediram-lhe os movimentos. Desequilibrou-se e quase caiu ao chão. Quando vestiu as calças já ela estava fora do seu alcance.
Ao chegar à faculdade de direito foi recebida pelas duas amigas e por um grupo de jovens que apareceu a correr tentando apanhar o exibicionista. A notícia já se tinha espalhado!  As amigas abraçaram-na  e procuraram saber se estava bem. Ela tremia de tal forma que não conseguia dizer nada de jeito. Um pouco depois chegou o namorado que tinha ficado a saber da história e tinha vindo a correr com ar pesaroso. Pedro abraçou-a. Ela encostou-se a ele e sentiu o quanto ele estava excitado. Aquilo não era normal, mas ela não estava em condições de racionalizar os factos. Abraçou-o com força e ficou ainda mais excitada. Apesar das buscas o exibicionista não foi encontrado.
Ela estava num estado de excitação tal que decidiu entregar-se, nessa noite, ao namorado.  Ele já lho havia solicitado várias vezes mas ela tinha resistido. Queria ter a certeza do passo que ia dar. Entregar-se a um homem, pela primeira vez, era sempre uma um passo marcante. Infelizmente, depois dos ânimos serenarem, ele disse que tinha um compromisso familiar de última hora e não poderia estar com ela. Frederica decidiu não divulgar as suas intenções. Se ele tinha compromissos ela arranjaria forma de se comprometer também.
No entanto, era mais fácil dizer do que fazer. Sentou-se nas escadas da faculdade e ficou ali a olhar em frente. Do outro lado da alameda os colegas da faculdade de letras saiam do edifício aos grupos e seguiam a sua vida. Olhou à sua volta e o cenário repetia-se na faculdade de direito. O mundo continuava a girar e as pessoas continuavam com as suas vidas. Afinal o mundo não tinha acabado. Porque seria então que ela se sentia como se tal tivesse acontecido.?Estava só e abandonada. Apeteceu-lhe chorar. Tapou a cara com as mãos e ignorou o resto do mundo.
«Pode parecer que é o fim do mundo, mas a vida continua...»
Ela levantou a cabeça e olhou para o lado buscando o rosto daquela voz. Ele sorria, meio enigmático e meio trocista. Ela ia mandá-lo passear, mas o rosto dele ficou sério.
«Não mates o mensageiro. Apenas quero dizer que conheço bem a sensação de ser votado ao abandono. Sei o que é sentirmos-nos sós!»
Ela olhou-o nos olhos. Ele parecia estar a ser sincero. Na verdade João era um pária. Gostava de se vestir de forma diferente e de ostentar uma atitude arrogante e desafiadora. Para além disso consumia drogas leves de forma ostensiva. Não era mais grave do que fumar um cigarro, mas conferia-lhe um estatuto de rebeldia que ele cultivava. "Era uma pena que um jovem tão inteligente optasse por desperdiçar a vida", costumavam dizer alguns professores.
«Queres ir tomar um café?» Perguntou ela.
Ele acenou afirmativamente e levantaram-se. Ela começou a descer a Alameda das Universidades e ele acompanhou-a sem saber para onde iam.
«Onde queres ir?» Perguntou ele.
«Vamos ao largo da Avenida de Igreja.»
A companhia dele era bem mais interessante do que ela esperava. Na verdade ele era bem mais “normal“ que o namorado. A diferença era que ele gostava de se afastar das pessoas. Ela até já tinha reparado nele pois era um jovem que dava nas vistas, mas o comentário do Pedro tinha sido bem esclarecedor.
«Para além de arrogante e anti-social é um drogado!»
Naquele momento ele parecia ser o jovem mais simpático do mundo. A verdade é que tinha sido o único a preocupar-se com ela. E ali estava ele a conversar com ela de forma franca e simples.
«Queres vir até minha casa? Eu vivo aqui ao lado.»
O convite dela apanhou-o completamente de surpresa. Isso era o que ele mais queria, só não sabia se queria obtê-lo naquelas circunstâncias. Ela estava demasiado frágil!
«Tens a certeza que queres que eu vá contigo para tua casa?»
Ela olhou-o nos olhos, e disse, ao mesmo tempo que lhe acariciava, gentilmente, a mão.
«Sim. Eu quero estar  contigo.»
Ela beijava-o de forma apaixonada, entregando-se sem reservas. João tinha uma paixão secreta por Frederica mas nunca tinha imaginado que ela se pudesse interessar por ele. Despiram-se de forma sôfrega e fizeram amor como se fossem amantes de longa data. Ela estava feliz por ter decidido entregar-se ao João. Agora que tinha acontecido, não percebia bem porquê, pois ela não era de se entregar assim à primeira a um homem. Mas João era um homem em todos os sentidos da palavra. Tinha sido meigo, carinhoso e tinha sabido esperar o tempo dela. O final tinha sido perfeito! Ela quis admirar o corpo dele e levantou o lençol. A imagem prendeu de imediato o seu olhar.  A rosa tatuada na virilha esquerda, com as palavras SA por baixo, deixaram-na num estado indescritível. Ela tremia incapaz de pronunciar uma palavra e quando ele lhe tocou deu um salto, como se tivesse apanhado um choque elétrico. João olhou para ela perplexo.
«O que se passa?»
Ela apontou para a rosa.
«Essa tatuagem...»
«É uma brincadeira. Porque? Incomoda-te assim tanto?»
«Essa era a tatuagem que o exibicionista que me atacou tinha.»
Nesse momento ele percebeu tudo. Ela pensava que ele era o exibicionista. Era fácil culpá-lo. Ele tinha criado algumas expectativas sobre eles, mas afinal tudo não havia passado de ilusões. Não se podia ser diferente numa sociedade, pois o “diferente” é sempre o culpado.
Frederica não sabia bem o que pensar, nem o que fazer. João deixava-a louca, mas ele era o exibicionista. Como podia sequer ponderar estar ao lado daquele homem! Ele percebeu a mensagem espelhada no olhar dela. Vestiu-se e partiu sem trocarem uma palavra. «Tenho de fazer queixa à polícia. Mas isso implica assumir que estive com o João, sendo ele o exibicionista. Meu Deus! O que devo fazer?» Interrogou-se.
Nos dias que se seguiram Pedro não mostrou grande interesse em estar com ela. Até parecia que ele sabia o que se tinha passado entre ela e o João. Ela não tinha dito nada a ninguém, nem sobre a sua aventura, nem sobre a sua descoberta.
Entretanto, João tinha convocado a reunião semanal dos membros do clube dos Sex Admirers. Ele tinha sido o fundador do clube. Tudo tinha começado como uma brincadeira à qual tinham aderido as pessoas mais improváveis.  O clube tinha sessenta e sete membros e ao fazerem a chamada dos presentes detectaram que apenas um deles tinha faltado à reunião.
«O Pedro já na semana passada faltou.»
Aquela chamada de atenção fez João levantar a cabeça com uma expressão reveladora no rosto. A assembleia ficou à espera que ele dissesse alguma coisa mas ele baixou a cabeça e deixou que os trabalhos prosseguissem.
Entretanto ao fim de uma semana Frederica encontrou-se com Pedro e estavam os dois, no bar de direito, quando apareceu João. Ele ia ignorar a presença deles mas Pedro chamou-o.
«Tu não disseste que ele era um drogado e arrogante? Porque o chamaste?» Perguntou Frederica, com evidente desagrado.
«Não te preocupes. Há dois meses eu comecei a dar-me com o João e até pertencemos ao mesmo clube.»
Aquilo pareceu-lhe surrealista. O Pedro e o João juntos! A menção a um clube era tão estranha que ela nem sabia o que dizer.
«Ele também é do Sporting?» Perguntou Frederica.
Pedro desatou a rir de forma desenfreada.
«Não é isso. Já vais ver.»
João aproximou-se deles mostrando-se algo constrangido. Ele sabia o que Frederica pensava dele, embora também soubesse, devido às confidências de Pedro, que entre os dois nunca tinha acontecido nada. Era também o único que sabia quem era o verdadeiro Pedro.
«João, explica à Frederica o que é o nosso clube.»
«Tens a certeza?»
«Claro que sim.»
«Já agora diz-me porque não vieste às últimas duas reuniões. Trata-se de apenas uma reunião por semana!» Perguntou João.
«Ontem tive um compromisso e na semana passada cheguei atrasado.»
«As reuniões são apenas de trinta minutos!»
Frederica estava completamente baralhada. Entretanto, João explicou o objectivo do clube e a origem do seu símbolo. Todos os membros eram obrigados a tatuar o mesmo na virilha esquerda. Frederica ficou boquiaberta. «Então existiam sessenta e sete pessoas com aquela tatuagem?» Pensou. Isso queria dizer que existia a possibilidade de o João não ser o exibicionista. O seu coração bateu acelerado.
«A que horas é a vossa reunião das quintas feiras?» Perguntou ela.
«Começa às dezanove e trinta e termina às vinte.»
Frederica olhou João nos olhos e ele viu que ela tinha percebido.
«Quantos membros faltaram à reunião na semana passada?» Perguntou Frederica.
«Apenas eu.» Disse o Pedro, longe de entender o que se estava a passar.
Ela olhou para João e ele retribui-lhe o olhar. A sua expressão dizia tudo e Frederica assentiu com a cabeça.
No dia seguinte João e Frederica encontraram-se e ela disse-lhe que tinha terminado tudo com o Pedro. João gostou de saber e aceitou o pedido de desculpas dela. Estavam os dois felizes. A relação entre eles parecia ter encontrado um caminho.
«Eu quero que o Pedro seja apanhado.» Disse ela.
Na semana seguinte a reunião dos SA  foi marcada e cancelada à última hora. Pedro não foi avisado do cancelamento. O cube estava espalhado pelo espaço da cidade universitária e a polícia tinha sido avisada. A jovem escolhida para isco desempenhou o papel na perfeição e Pedro foi apanhado em flagrante.  Sempre é verdade que as aparências iludem!


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