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O PODER DA IMAGEM


O PODER DA IMAGEM
A sacristia estava cheia. Era sempre assim no fim da missa dominical. Enquanto o padre despia os paramentos, utilizados na celebração eucarística, primeiro a Estola, depois a Casula em seguida o Cíngulo, que cintava a longa camisa clerical branca e finamente a camisa clerical, os paroquianos iam passando pelo espaço para se despedirem ou para darem dois dedos de conversa. No fim o padre acabava por ficar com uma ou duas pessoas que o acompanhavam até ao carro. Nesse dia a sacristia esvaziou-se rapidamente e o padre estava em vias de ficar apenas acompanhado do sacristão, que arrumava as vestes eclesiásticas no gavetão. O senhor Gerónimo era um dos que ficava sempre até ao fim, mas naquele dia estava com pressa.
Quando se apercebeu já ele estava a passar pela ombreira da porta. O padre interpelou-o.
«Senhor Gerónimo, posso dar-lhe uma palavra?»
O sacristão ficou logo de orelha em pé. Gostava de estar a par de tudo, mesmo quando não lhe dizia respeito. Isso podia não ser um problema, mas, infelizmente, tinha uma língua de trapo! O padre já o conhecia e não e fez rogado em frustrar-lhe as expectativas.
«Acompanhe-me até ao carro.» Disse o padre, tomando-lhe o braço.
«Em que posso ajudar?» Perguntou o senhor Gerónimo.
O ancião tinha completado setenta e cinco anos e era um dos homens influentes da aldeia. Para além disso, era um homem de fé. Tinha curso de cristandade, era ministro da comunhão e tinha professado como leigo da ordem de São Francisco. Era um dos homens de confiança do abade.
«Preciso que me ajude com o Ti Manel das Hortas.»
O padre contou ao ancião que o Manuel das Hortas, estava muito doente. Tinha sido desenganados pelos médicos: estava seguro de que em breve partiria deste mundo. Apesar disso, não queria confessar-se nem receber a comunhão ou a extrema unção. Gerónimo ouviu-o com atenção e não fez grandes comentários.
«Eu sou amigo dele de longa data. Vou fazer-lhe uma visita.»
Gerónimo não estava seguro de que pudesse fazer alguma coisa, mas se no seu caminho era colocada uma ovelha tresmalhada, ele tinha a obrigação de a tentar reunir com o seu pastor. Nesse mesmo dia, logo após o almoço, tomou a decisão de fazer uma visita ao amigo, que fazia algum tempo estava acamado. Antes de partir recolheu-se em oração e pediu à virgem que fizesse o amigo ver a luz, convertendo-o, para que ele deixasse o mundo liberto dos pecados que lhe manchavam a alma.
«Senhora, eu sou apenas vosso servo. Fazei de mim o vosso instrumento se tal vos aprouver.» Disse o ancião, no fim de uma longa prece.
Depois de rezar pegou numa imagem do Sagrado Coração de Maria e colocou-a no bolso interior do casaco. Durante o caminho foi rezando pela conversão do amigo, mantendo  o foco no seu objectivo. Sentia um otimismo e uma energia de tal forma grande que até os passos lhe pareciam mais leves.
Quando chegou a casa do amigo quis ouvir novas sobre o estado dele na primeira pessoa. Manuel das Hortas confirmou o que já tinha dito ao padre sobre a sua saúde. Gerónimo em  momento algum lhe referiu a conversa que tinha tido com o padre, nem o objectivo com que estava ali. Era apenas uma visita de amigo para o confortar. O doente falou durante mais de meia hora. Narrou a sua vida, a sua convicção sobre de que em breve partiria, a família que estava conformada e que não sentia a sua falta. Enfim, falou um pouco de tudo. Quando ele se calou, Gerónimo tirou do bolso a imagem que levava consigo e estendeu-lha.
«Manel, olha que imagem tão linda!» Disse Gerónimo.
Ele pegou nela e virou-a em todos os sentidos.
«O que é isto?»
Gerónimo não respondeu e deixou-o admirar a imagem.
«Isto é para que? É para mim?»
Ele não parava de fazer perguntas, parecendo ignorar completamente aquilo que tinha nas mãos e sem esperar qualquer resposta.
«Isso é a imagem do Sagrado Coração de Maria. Vês como é bonita! É para ti. Fica com ela.»
Manuel das Hortas reteve a imagem na posição vertical durante alguns segundos e depois disse simplesmente.
«Olha Gerónimo, eu gostava de me confessar.»
O amigo não o questionou sobres os motivos, nem fez qualquer comentário. A sua missão estava cumprida.
«Quando te queres confessar? Pode ser amanhã?»
«Amanhã está bem. Pode ser a seguir ao almoço?»
Gerónimo prontificou-se a falar com o padre da aldeia para saber da disponibilidade deste e ao fim de uma hora a confissão estava agendada. O Manuel das Horas faleceu alguns dias após estes factos, tendo partido na paz do Senhor.
Gerónimo não deixou de se interrogar sobre o que teria motivado a decisão súbita do Manuel das Hortas em se confessar. Podia ter sido apenas uma coincidência, mas, para ele, a imagem do Sagrado Coração de Maria tinha tido um papel decisivo na questão. O poder da oração tinha feito o amigo ver a bondade que a imagem transmitia a quem verdadeiramente olhava para ela. Ele tinha sido apenas um instrumento: a intervenção divina tinha feito o resto.


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