A CAMINHO DA ESCOLA
Os primeiros dias de Junho vieram
quentes e secos. Apesar disso, as noites eram frias, ou não estivéssemos no
norte de Portugal, mais precisamente, em Vila Real. Alberto tinha-se levantado
de madrugada e, juntamente com os pais, tinham enxofrado as videiras entre as
cinco e trinta e as sete da manhã. Depois de um banho rápido e da ingestão de uma malga
de sopa, meteu os pés ao caminho. Caminhava apressado carregando os livros na
mão direita e um pequeno balde na esquerda. Enquanto ele se preparava para a
escola, a mãe tinha apanhado um balde de morangos, para ele levar ao Joaquim.
Era o seu melhor amigo e, ocasionalmente, ele almoçava em casa dele, quando a
cantina da escola, por alguma razão, não providenciava refeições aos alunos. Apesar
do esforço físico Alberto estava feliz por ter-se levantado tão cedo. Ver o dia
clarear era uma experiência maravilhosa. Era normalmente a hora mais fria da
noite e as ervas e plantas, estavam cobertas com uma espessa camada de orvalho,
o que os obrigava a usar fatos de chuva. Sendo o mais velho dos cinco irmãos,
cabia-lhe ajudar os pais na agricultura, pois eram os proventos desta que lhe
permitiam estudar. Os seus colegas e professores não faziam ideia daquilo que a
vida exigia dele e ele não se queixava, nem sequer partilhava essas
vicissitudes com ninguém. O horizonte começava por ficar um pouco mais claro e
depois assumia um tom entre o rosado e o vermelho. Até a bola de fogo pálido aparecer.
Era uma sensação estranha olhar para aquela bola de fogo e não sentir o conforto
do seu calor. Parecia que o próprio sol necessitava de se livrar primeiro do
manto da noite, para que os raios solares tivessem o poder de espalhar a sua
energia. Isso só acontecia depois de levar uma vara de altura.
Como o dia estava bonito ainda teve a
tentação de deixar a camisola em casa e afrontar o fresco da manhã, apenas com
o aconchego do polo de manga curta, mas a mãe pôs fim à ideia em dois segundos.
Para chegar à escola tinha de percorrer aproximadamente quatro quilómetros, que
fazia todos os dias, a pé, na ida e no regresso. O passo era largo, pois tinha
que completar o percurso em quarenta minutos. Isso nem era muito exigente para
ele, mas como tinha de passar primeiro pela casa do Joaquim, que embora ficasse
a caminho, sempre lhe roubava uns cinco minutos, tinha de apressar ainda mais o
passo.
Ao chegar à ponte dos patos, uma ponte
romana cuja irregularidade da calçada dava ideia do estado de degradação em que
se encontrava, a camisola deixou de ser um elemento de conforto. Tinha que a tirar,
senão ia ficar todo suado. Parou um instante, para fazer a mudança e olhou à
sua volta. Os campos estavam cobertos de um tapete de verdura que assumia formas
e tonalidades diferentes, consoante fossem as árvores dos pomares dos Viveiros
Riba Douro, as batatas, ou o milho, a dar-lhes a cor. O pequeno afluente do
Cabril ainda não mostrava o fundo e no poço, junto à ponte, os patos bravos
deliciavam-se com o banho matinal. O rio passava impávido e sereno por baixo
dela, como fazia há centenas de anos, guardado pelos amieiros que pareciam
velhas sentinelas, debruçando-se sobre o seu leito. As margens estavam cobertas
de juncos e ervas e viçosas, que refletiam a luz do sol, nas gotas de orvalho,
que durante a noite ali se acoitaram. Depois de subir a Calçados dos Quinchosos,
uma subida íngreme, que o elevava uns bons vinte metros de altitude, deu mais
uns passos e desembocou na estrada nacional N15. O grupo de três jovens tinha
um comportamento barulhento e ostensivo. Vinham cheios de energia e procuravam
briga mesmo sem motivo. Chegaram ao fim da ponte do Cabril ao mesmo tempo que
Alberto e ele percebeu de imediato o que se ia passar em seguida. Apesar de
detestar brigas já tinha dado uma lição a dois deles, mas hoje vinham
acompanhados de um terceiro, que aparentava ser um ano ou dois, mais velho. Aos
catorze anos de idade isso fazia toda a diferença. «Logo hoje que venho
carregado com a porcaria dos morangos!» Pensou Alberto. Quando o viram eles
atravessaram a estrada e vieram ter com ele.
«Então
campónio! É hoje que vamos ajustar contas?» Disse o mais franganote, passando
instintivamente a mão pelo pescoço, que Alberto tinha apertado, fazia algumas
semanas.
Alberto não respondeu. Estava com
pressa e não queria largar o balde, que felizmente estava tapado o que tinha
evitado que vissem os morangos.
«O meu
irmão falou contigo ó espertalhão. Se não respondes a bem responde a mal.»
Alberto acelerou mais o passo, mas eles
não o largavam. O melhor era dizer qualquer coisa.
«Estou
cheio de pressa e vocês também devem estar, pois a aulas no liceu também
começam às oito e dez. Podemos discutir esse assunto no fim das aulas.»
«Eu é
que digo quando e como vamos discutir isso, seu filho da …» Disse o mais velho
«Cuidado
com as ofensas, elas nunca dão bom resultado.» Retornou Alberto, interrompendo
o outro.
«Querem
ver que o franganote me está ameaçar!»
As palavras foram proferidas com raiva,
ao mesmo tempo que lhe dava um murro numa omoplata. Felizmente Alberto estava
ligeiramente adiantado e desviou-se, por isso o impacto foi reduzido. Em
contrapartida o rapaz desequilibrou-se e enfiou o pé esquerdo na valeta, indo
de encontro ao muro. O grito e o jorro de sangue foram praticamente simultâneos.
Alberto olhou para trás e a primeira reação foi acelerar o passo, mas o quadro
que se apresentava à sua frente era desastroso. Nenhum deles sabia o que havia
de fazer. Logo à frente existia uma bica, de uma nascente onde esse ano ainda
corria um fio de água. Ele pegou no pano que cobria os morangos, rasgou um
bocado e humedeceu-o com água. Depois correu em direção a eles. Os dois mais
novos fugiram com medo e o mais velho encolheu-se, segurado o nariz que
sangrava abundantemente. Alberto limpou-lhe a cara e as mãos e deu-lho o pano
húmido.
«Levanta
a cabeça e coloca isso no nariz até o sangue estancar. Não precisas de ficar
parado e o melhor é ires andando senão ainda perdes a primeira aula.»
O outro não sabia o que havia de dizer
nem fazer, mas não queria dar parte de fraco e uma vez que Alberto não se
vingou do murro, encheu-se de fanfarronice.
«Não
penses que escapas. Agora estou com o nariz assim, mas quando nos voltarmos a
encontrar, ajustamos contas.»
«Fica
acordado. Isso significa que vais ajudar-me de alguma forma da próxima vez que
me vires!» Disse Alberto com um sorriso trocista.
O outro percebeu o ridículo da situação
e respondeu-lhe com um palavrão e uma maldição. Alberto pôs-se a caminho sem
dizer absolutamente mais nada. Era certo que iria chegar atrasado à primeira
aula, mas a lição que o destino tinha dado àqueles três devia ser suficiente
para o deixarem em paz. Isso valia muito mais do que a aula de Matemática
inteira. Felizmente a professora deixou-o entrar, ainda que estivesse atrasado e retirou-lhe a
falta. Talvez o facto de ele ser o melhor aluno da turma tivesse alguma coisa a
ver com o assunto.
Mais tarde, nesse dia, a professora de português que era também a
diretora de turma, disse-lhe que no fim da aula tinha que ir com ela ao
conselho diretivo. Ele não se recordava de ter feito algum disparate, por isso
só podia ser um assunto relacionado com o facto de ser delegado de turma.
Alberto foi levado à sala de professores e a presidente do conselho diretivo
deu-lhe um elogio público. Aparentemente, ela vivia na quinta que ficava ao
lado da estrada onde se tinham dado os acontecimentos da manhã. A quinta
ficava a um nível três metros acima da estrada, mas a professora tinha escutado
a discussão e presenciado a forma como Alberto tinha ajudado o rapaz, depois de
este o agredir. Alberto tinha ganho
duplamente o dia!
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